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OPINIÃO

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GERAIS/OPINIÃO

GERAIS/OPINIÃO

eSPAÇo joRNAlISTA MARTINS de VASCoNCeloS

organização: ClAudeR ARCANjo

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HORA DO BAILE

lIlIA SouzA

Escritora, preside a academia Paranaense da Poesia. É autora, entre outros, do livro Estórias de Trevol do Nada. liliasouza@uol.com.br

Há horas, desperta, nesta longa noite de inverno. Pela mesma porta que fugiu o sono, entraram os pensamentos, em turbilhão de alvoroços, algazarras, maliciosos cochichos; trouxeram lembranças e reflexões, inquietações sem conta. Ao meu lado, o tranquilo ressonar de quem não costuma ter duelos com o sono. Queria me levantar para escrever; e esta era mais uma luta, longa e árdua, para sair do ninho quentinho, cheio de cobertores. Então venceu o outro elemento das batalhas que travo comigo: dona Inspiração praticamente me arrancou dos braços das cobertas. Cá estou, bem antes que amanheça.

Conto-lhes um pouco do que dançava no salão do complexo cofre sob os cabelos – que andam mais crescidos do que estiveram por muitos anos.

Lembranças de criança: as atrações do circo que chegava a minha cidade de interior, anunciadas em um caminhão decorado, com alegres vozes e coloridas criaturas; as idas ao parque infantil, onde as crianças corriam, entre risos e volteios, na descontraída disputa pelos brinquedos; as idas ao cinema, com papai, no primeiro domingo de cada mês, quando acontecia o festival de filmes infantis; os passeios ao horto, junto ao riacho e queda d’água, entre folhagens cheias de vida e segredos. Chegaram lembranças de carnavais antigos, na cidade interiorana em que morava uma tia: o Bloco do Pijama madrugava o sábado de carnaval, arrebanhando integrantes pelas ruas dos bairros, saídos das camas, com suas roupas de dormir – e os que optavam por ficar de bom grado apreciavam, debruçados nas janelas das casas, cantando e festejando; à tarde, o Bloco de Sujos arrastava gentes de todas as idades, principalmente a meninada, feliz, vestida com velhos lençóis. Levantaram a voz as lembranças de datas comemoradas na escola, com atividades várias; as festas da padroeira, com procissões e quermesses, além das celebrações que enchiam a igreja. As festas juninas, que ocorriam em vários espaços pelo bairro – e eu participava de todas: na escola e na igreja, sempre ajudava antes, com o preparo da decoração; nas festas, dançava quadrilha, vendia cachorroquente, deslumbrava-me com os chuviscos de luzes subindo das fogueiras, bailando pelos ares e enfeitando a noite fria.

Hoje, nestes tempos de reclusão, na Curitiba que me adotou, cheia de praças e parques – grandes, pequenos, floridos, alguns cheios de atrações –, penso que os espaços públicos, tantos e tão belos, carecem da correria das crianças, dos muitos moradores que desfrutavam de suas pistas de caminhada, dos passeios de amantes de mãos dadas, dos visitantes que apreciavam seus encantos. Não há festas juninas nos colégios, nas igrejas, nos clubes. Não houve bailes de réveillon, de carnaval. Nem jantares de namorados enchendo os muitos restaurantes desta cidade gastronômica. Não há jovens reunindo-se nas praças de alimentação dos shoppings, nas escolas não existe a algazarra de crianças na hora do recreio. Nas igrejas, os padres celebram para seus ajudantes, televisionados para os que receiam sair da poltrona. E os mortos, às centenas de milhares, escorrem da vida, como enxurrada para os bueiros e rios de lágrimas para os que ficam.

Em meio a estes tristes tempos, em que a alegria parece ter fugido para um lugar paradisíaco e imaginário, as poucas pessoas que vão para as ruas tentam identificar conhecidos, por trás das máscaras com que cruzam pelas calçaSem ligar à tristeza dos humanos, à falta de público, à fuga da alegria, mantendo suas funções, o sol continua a despontar do decote da serra, inaugurar a manhã, trazer sua luz e calor – aqui, convenhamos, quando sol há, quando calor há...

das, mercados, farmácias.

A natureza, contudo, está à vontade para cumprir o seu ciclo. Ainda que sem o deslumbramento de que sempre foram alvo, os parques e praças permanecem exuberantes, cheios de cores e viço. Em algumas semanas, ainda que poucos testemunhem, parques e muitas ruas da cidade se cobrirão com o rosa ou lilás das mimosas cerejeiras – delicado e belo espetáculo que dura poucos dias, pois, em cerca de duas semanas, as árvores se despem completamente de seus trajes de baile de inverno, deixando no chão as esgarçadas sedas róseas que as cobriram. Às vezes chego mesmo a pensar que, nesse curto período, em cada madrugada, enquanto a urbe dorme, as cerejeiras bailam, em animadas festas sazonais; seria desconcertante tanto esmero nos trajes e toalete, sem um forte motivo; imagino que realizem concursos de beleza à luz da lua – prateada e radiante cúmplice.

Sem ligar à tristeza dos humanos, à falta de público, à fuga da alegria, mantendo suas funções, o sol continua a despontar do decote da serra, inaugurar a manhã, trazer sua luz e calor – aqui, convenhamos, quando sol há, quando calor há... –; e, ao fim da tarde, reinventa espetáculos, em combinações de cores e luzes, para o deleite dos que podem apreciar, ao menos, pela janela.

Precisamos aprender com as lições da natureza e dos astros, em permanência, realização, beleza e poesia. Ainda que sem vitrine e sem plateia, sem a proximidade de tantos que amamos, ainda que com as dores do mundo, precisamos manter o curso da viagem, tudo preparar com esmero, dançar cada baile, realizar com perfeição cada espetáculo. Deixar brotar a poesia, neste imenso salão. Celebrar a vida. Vamos bailar?

dI reçÃO geral: César santos dIretOr de redaçÃO: César santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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