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O precOnceitO nasce de paradigmas que naturalizam generalizações falsas

a éci O c ândid O professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com só se rende aos clarões da manhã, aí próximo dois homens conversam. Um, no interior do seu pequeno comércio; o outro, na calçada. Escuto do primeiro um resto de frase: “... é travesti, trans, como chamam hoje”. O outro arremata, bêbado dos porres diários de Bíblia: “Deus ABOMINA o efeminado”, diz com autoridade, como se Deus tivesse terminado de falar com ele.

Paro, como se tivesse tomado um choque de 220 volts. Sempre me assombra a falta de humildade das criaturas que se tomam por mensageiros de Deus. Quis me dirigir ao homem para lhe perguntar: foram criadas por Deus? E gente com menos de um metro e sessenta também foi Deus quem criou?” E poderia ter feito uma última pergunta, talvez mais herética: “E o transexual, meu senhor, como ser humano, não foi feito à imagem e semelhança de Deus?” casa, o casamento não se sustenta”; “As mulheres que não aceitam o domínio masculino são mal-amadas ou não gostam de homem”).

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Manhã de sol, calor pegajoso, caminho pela rua Coronel Cascudo, no Centro de Natal, à procura de alguém que conserte panela de pressão. É sábado, a manhã ainda está em sua primeira metade e muitas pequenas lojas continuam fechadas. Mas não é só a hora que explica o movimento ralo. A crise no comércio do Centro é visível a olho nu. Mais à frente, na Avenida Rio Branco, muitos avisos de Aluga-se e de Vende-se, colados nas fachadas, deixam claro a intensidade da crise. Não é só em Natal que o Centro agoniza. Em quase todas as capitais e nas maiores cidades do país a situação se repete. O modelo de expansão urbana que se elegeu no Brasil seria burro, se o que se buscasse com ele fosse o bem-estar das pessoas, a vida mais descansada, unindo dois lados bons da vida: as facilidades e interações da vida urbana à tranquilidade da vida rural. Algumas grandes cidades do mundo conseguiram essa proeza. No Brasil, não. Entre nós, a expansão urbana é conduzida pela indústria imobiliária, e esta se move pelo lucro, evidentemente. Abandonar a infraestrutura habitacional dos centros e ir construir nas periferias, esticando artificialmente o território, não é falta de lógica. Esse modelo nos dá de lambuja engarrafamentos, insegurança, perda de tempo e feiura.

Mas não é do comércio claudicante nem de expansão urbana atropelada que pretendo falar, é de outra coisa. Próximo à boca do Beco da Lama, reduto boêmio da cidade, onde dezenas de bares e pequenos restaurantes alimentam o burburinho noturno e onde o comércio fechado não é sinal de crise, mas da longevidade da noite, que

“Meu senhor, o senhor acredita que o travesti é um ser humano? Ou que é, pelo menos, um ser vivo? E não foi Deus quem criou todos os viventes? Se Ele abomina, por que criou? Ou Ele criou sem saber o que estava criando? Pessoas de olhos verdes

Não me dirigi ao homem, retomei o passo e continuei à procura de um especialista em conserto de panela de pressão. É de momentos como este, que não aconteceram mas que poderiam ter acontecido, que trata o filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo. E que dão razão a Fernando Pessoa: “O meu passado é tudo o que não consegui ser”.

A Bíblia é a fonte de pensamento desse homem. É o seu paradigma. Paradigma é aquele conjunto de pensamentos, de afirmações e de negativas, tão verdadeiros para o indivíduo, tão evidentes por si mes- mos, que em nenhum momento ele duvida deles. De posse de um paradigma, vamos traduzindo o mundo, dando sentido a cada coisa que encontramos nele. Claro que o paradigma, no seu conjunto de proposições, pode ser completamente falso, porque assentado em pilares frágeis, ou pode conter afirmações falsas, mas, imerso nele, dificilmente o indivíduo se dará conta disso. No paradigma do homenzinho que conversava na calçada, o travesti é abominado porque a sexualidade para a qual ele aponta é antinatural, vai contra o que a natureza estabelece: o sexo capaz de fazer a espécie se reproduzir. É este paradigma que também afirma: “Crescei e multiplicai-vos”? Dessa base de verdades instaladas derivam previsões conspiratórias (“Os gays vão destruir a família”) e conclusões para o dia a dia (“Se o homem não for a força da

Muitos grupos humanos se alimentam de uma base mental religiosa restrita, composta de postulados esquemáticos, que tudo explica, ainda que sem sustentação real, mas que fornece a segurança e o conforto emocional que todos precisam para viver.

Um paradigma fechado, que se autoexplica, que não suporta a ideia de debate e de cotejamento, é muito provável que fomente uma seita. A seita é um grupo com uma visão de mundo completamente apartada de outros grupos. O grupo se enxerga como escolhido, como portador de uma verdade e de qualidades que nenhum outro grupo possui.

Desde o século XVII que se vem afirmando, baseado no conhecimento dos muitos grupos humanos espalhados pelo globo, que o humano é um ser diverso, que ele inventa muitas e diferentes formas de satisfazer suas necessidades. Formas de cultivar a terra, de repassar conhecimentos, de usufruir da amizade, de buscar o amor são muitas e diversas. A antropologia, que é a ciência que se ocupa do estudo das culturas, há muito já concluiu que o que caracteriza o viver humano é a diversidade, a variação de formas de responder às mesmas questões essenciais da vida.

A seita não aceita o diverso. Nem aceita nem está disposta a fazer um esforço de compreensão. Porque, para o indivíduo preso a uma seita, não há diverso; há errado, há desviado. O cristão primitivo e o cristão medieval viam-se como únicos portadores da Salvação, como puros, únicos no caminho da verdade. Os outros, como pagãos, infiéis, descrentes estavam condenados ao castigo eterno. O crente neopentecostal recupera a apartação do mundo, a recusa do outro e a crença na salvação exclusiva.

Neste sentido, também o bolsonarismo tem características de seita. O “patriota” bolsonarista não quer saber de nada que não seja ele mesmo e seus pares. Não quer saber de nenhuma realidade outra que não seja aquela que ele imagina que deve ser. Sua Bíblia é o grupo de WhatsApp. E boa parte deles junta as duas bíblias: a tradicional e a moderna – o grupo do WhatsApp.

Um versão light de seita são as “bolhas”, que cimentam o mundo contemporâneo, as tribos urbanas de várias naturezas.

Por essas e outras, o que não se contava é que o século XXI desenterrasse o que há de pior na história da humanidade: a junção do delírio religioso com a crueldade política. É esse o espanto registrado na frase do grande escritor israelense Amós Óz: “Quem poderia imaginar que depois do século XX viria o século IX?” direçÃO geral: César santos diretOr de redaçÃO: César santos gerente administratiVa: Ângela Karina dep de assinaturas: alvanir Carlos www.defato.com e-maiL: redacao@defato.com tWitter: @jornaldefato_rn | redaçÃO e OFicinaS: Sede: Avenida Rio Branco, 2203, Centro, Mossoró-RN – CEP: 59.063-160 teLeFOneS: (084) 99836-5320 (Mossoró) | cOmerciaL/aSSinaturaS: (84) 99956-4810 - (84) 99485-3685

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