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OPINIÃO

eSPaÇo JoRNaLiSTa maRTiNS de VaSCoNCeLoS

Organização: CLaudeR aRCaNJo

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COVID IV

RaimuNdo aNToNio de SouZa LoPeS

é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com

Ilustrativa

Confesso que uma das coisas que mais gosto de fazer é ficar em casa, sozinho, deitado, lendo, vendo televisão, escrevendo, ou simplesmente sem nada para fazer. Sim, só que com um detalhe: sem ser obrigado a fazer isso. Assim, entrar no quarto por obrigatoriedade, e impedido de sair por quatorze dias, não era do meu gosto de jeito nenhum. Aliás, nada que nos tire a liberdade de fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, é salutar. Por isso, a partir daquele momento, o quarto se transformou numa espécie de prisão. Admito que estou subestimando a condição de privação de um detento. É claro que não faço nem ideia do que seja ser privado da liberdade de ir e vir, de sentir-se pleno, de optar por querer, ou não, algo ou alguma coisa, embora uma vez, quando fazia parte da pastoral carcerária da minha paróquia, eu tenha frequentado a Penitenciária Estadual algumas vezes e entrado no bloco dos internos do regime fechado e, podem acreditar, é agoniante conviver naquele espaço dois por três, para duas pessoas. Multiplique isso por dezenas de celas, cercadas por um gradil de entrada, com um guarda armado e, por cima de tudo, uma tela de aço inoxidável para evitar que mesmo que alguém consiga sair do corredor, passar pelo portão de aço fechado com vários cadeados e um guarda armado depois dele, adentrar o pátio onde é tomado o banho de sol, mesmo assim ainda vai encontrar essa tela de proteção que o impossibilita de qualquer sonho de liberdade. Não sem antes, claro, pagar o que deve à sociedade. Da mesma forma, quando fui professor no Presídio Federal, vi que a segurança é multiplicada por cem, e o risco de alguém ganhar a liberdade antes do tempo estabelecido por lei é quase zero. Infelizmente, não posso detalhar como é lá por dentro. Só posso dizer que durante o tempo que passei dando aula na unidade, nunca entendi como eu conseguia chegar onde se encontravam os internos. Vinte horas em uma cela individual, duas horas tomando banho de sol, e todo o tempo do mundo para se arrepender e converter-se do modo de vida pregresso.

Olhei para o meu espaço, talvez uns 16 metros quadrados, com um bom banheiro, cama confortável, todos os acessórios dos quais iria precisar, inclusive, álcool 70%, álcool em gel, água sanitária para banheiro, detergente misturado com água sanitária (para lavar a louça que fosse utilizando), sacos para estocar roupa suja e o lixo que ia ser produzido após as higienes; enfim, em cima de uma mesinha de cabeceira coloquei os remédios, garrafa com água, termômetro, oxímetro (para medir a saturação), uma caixa de vitamina C… E parei para olhar tudo aquilo. Agora, e podem acreditar no que estou dizendo, o que mais me impressiona é o olhar das pessoas quando estão diante de algum momento cruciante, onde há a probabilidade de algo dar errado. O pensamento já faz um juízo antecipado, criando suas próprias possibilidades do que pode vir a acontecer. É impressionante como não se consegue disfarçar o quão delicada é a situação, do perigo - de vida - que aquela pessoa que eles estão olhando corre. Vi isso nos olhares tristes da minha esposa e do meu filho. De longe e de máscaras, eles acompanharam a porta se fechar atrás de mim…

Dizem que a maior privação de liberdade é a morte, frase pronunciada pelo prefeito de Curitiba Rafael Greca, em março de 2021. E no seu pronunciamento, ao destacar as medidas preventivas contra a covid em seu município, ele disse: “O morto não fatura, o morto não compra, o morto não vende, não se encontra, o morto não ama, o morto não faz ginástica, não vai ao parque, não tem nem a liberdade de negar a pandemia. O morto não milita politicamente.” E completou com uma frase que achei sensacional: “A maior liberdade é a saúde.”

Verdade. Talvez ver o sol nascer quadrado, por estar cumprindo uma pena judicial, não seja a maior falta de liberdade, pois há a possibilidade e a esperança de que um dia isso acabe. A morte, não. Ela acaba com qualquer esperança. Por isso que os prisioneiros do corredor da morte sabem que só um milagre os salvará. Foi o que pensei. Aquele quarto, guardadas as devidas proporções e analogias, representava, em primeiro plano, um corredor da morte e a minha sentença, não a judicial - a que estava me privando da liberdade de ir e vir, de ser um cidadão pleno -; em segundo plano, a sentença aplicada por uma doença que tinha o poder de, também, acabar com qualquer possibilidade de liberdade. Pesava, claro, positivamente, os avanços para conter a covid, como as vacinas, porém tudo ainda representava uma incógnita - pelo menos para uma grande parcela de infectados. Seria eu, no caso, uma dessas parcelas em que ele, o vírus, representava a incógnita? Havia lido, não sei mais por onde - acredito não ser fake news - que portadores do Rh A positivo são mais propensos a desenvolverem a forma mais grave da doença. Se assim fosse, eu estava, mais uma vez, "em eternas emoções”, pois é esse o meu tipo sanguíneo. Bem, a partir daquele momento em que a porta se fechou atrás de mim, que eu me vi solitário no quarto, acreditar na medicina e, portanto, nos medicamentos prescrevidos, era a chave para que aquela porta que estava atrás de mim voltasse a se abrir em quatorze dias, crendo, e tendo certeza, de que a ciência funciona. Essa convicção passou a ser o meu lema de liberdade.

Antes de ir dormir, fui alimentado e tomei a dose necessária de remédios para aquela noite. Como a febre ainda persistia, um antitérmico básico. Em seguida, um antibiótico e um xarope para a tosse, essa insistente, perturbadora, irritante e incômoda. Fiz a higiene tradicional e me deitei.

Não sei se dormi acordando ou se foi acordando que consegui dormir um pouco. Uma noite horrível. A febre ia e voltava. Não era alta, mas se me deixava um pouco, voltava em seguida para me dizer que tivesse cuidado. Tive pesadelos. E me vi na Unidade de Pronto Atendimento do Bairro Belo Horizonte, e conversava com a médica, com a chefe da unidade e com a assistente social. De vez em quando, passava uma enfermeira e me olhava como querendo dizer: “Esse daí vai voltar daqui a um ou dois dias… todos voltam.” De repente, eu via a sala com respiradouros, um monte de gente com aqueles aparelhos acoplados em suas cabeças. Todos me olhavam. No final do corredor, o “eternas emoções” sorria para mim….

Continua...

DI reçÃO geral: César Santos DIretOr De reDaçÃO: César Santos gereN te aDMINIS tra tIVa: Ângela Karina DeP. De aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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