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OPINIÃO

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GERAIS/OPINIÃO

GERAIS/OPINIÃO

eSPAÇo JorNALISTA mArTINS de VASCoNCeLoS

O FeIJÃO Na ÁgUae NO Sal

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Organização: CLAuder ArCANJo

rAImuNdo ANToNIo de SouzA LoPeS

é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com

O meio-dia assinalava o retorno ao lar. A cabeça doía. Porém, não doía nem de mais nem de menos do que a dos dias anteriores. A dor era, certamente, em consequência da fome, há muito instalada, pelas horas que seu corpo já contava sem comida, uma vez que a rotina era: acordar com o cantar do galo, levantar-se da rede puída, ainda com os olhos semicerrados, quase em estado de sonambulismo; abrir a parte de cima da porta, receber a brisa fria da madrugada que, pela hora, estava prestes a se encerrar, espreguiçarse e abrir a boca em diversos bocejos. Era o normal diário. O friozinho daquela hora fazia bem, ajudava-o a ficar desperto todos os dias. O ato seguinte, comum a todos os amanheceres na sua jornada de menino sonhador, era o de abrir a parte de baixo da porta da frente, pisar na terra adubada pelos bichos criados pelo dono da casa - e que passavam justamente por ali antes de entrarem no curral em que dormiam todas as noites -, ir até a bomba manual ao lado da cerca, bombear algumas vezes até encher uma lata de 18 litros, levá-la para um banheiro, cujas paredes eram de palhas de carnaúbas e o seu piso, duas pedras calcárias de, mais ou menos, 30x30 cada uma, e teto a céu aberto! Em seguida, derramar o conteúdo sobre si, acordando seu corpo. Isso terminava por ativar, de vez, o seu metabolismo. Ao sair do banheiro de corpo lavado, a metade da casa já estava em movimento. Isso auxiliava-o no retorno para o seu interior. A casa já estando de pé, evitava que ele, muitas das vezes, tivesse de se abaixar para passar por debaixo das redes dos irmãos até chegar no camiseiro onde estava a camisa e a calça da farda do Grupo Escolar onde, dali a pouco, cerca de quarenta e cinco minutos, no máximo, o menino sonhador estaria sentado em uma de suas carteiras. O desjejum seria feito não em casa, mas durante o caminho até a escola. Uma goiaba aqui, uma pinha acolá… tinha até desjejum de manga, só dependia da época. Na escola não havia, no tempo dele, a tal da merenda. No máximo, uns potes grandes, feitos de barro, cheios de água, uma caneca de alumínio para tirar o líquido de dentro e alguns poucos copos de plásticos, para que o aluno pudesse beber a sua cota diária, no intervalo. Mas isso não era impedimento, ou desculpas, para não prestar atenção às explicações dadas. Aulas das 07h às 11h30. Pelo menos para ele não era. Os seus sonhos eram bem maiores do que um simples roncar de bucho vazio.

Na volta, junto com o sol inclemente daquele pedaço de torrão nordestino, vinha o pacote de areia, pedra, buraco, poeira, suor e cansaço. Esporadicamente, um caminhão, que levava os cassacos para trabalharem em açudes e pontes, parava e o levava, a ele e mais uns cinco ou seis meninos, que moravam na mesma localidade. Quando isso acontecia, ele diminuía, em trinta minutos, a sua chegada à casinha de taipa. E a camisa não chegava tão suada. Isso significava que, ao colocar para lavar, não precisaria esfregá-la tanto.

O melhor da volta, porém, sem sombra de dúvidas, era comer o que tinha reservado para o dia, que, aliás, era o mesmo cardápio dos dias anteriores: feijão na água e no sal. O sabor, entretanto, este sim, variava de dia para dia. Só precisava que ele exercitasse o pensamento e, incluísse, no seu paladar, de uma forma positiva, complementos que somente a criatividade podia conceber naquele momento.

Assim, todas as vezes em que pegava o já descascado prato de ágata, devido ao seu uso constante e ao tempo também, e se dirigia para o fogão, que fora moldado na parede da cozinha, o feijão que se encontrava na panela de barro já não era somente cozinhado na água e no sal. Ao abrir a tampa da panela, o cheiro que ele exalava continha todos os ingredientes de uma feijoada servida no melhor restaurante que ele podia imaginar. E como ele sabia ser necessário se alimentar bem (e “bem”, naquele momento, significava quantidade) ele enchia o prato com duas conchas do feijão macassar, devidamente escorrido (evitava o “caldo”). Na pequena despensa ao lado da cozinha, ele encontrava uma lata de óleo. Colocava duas “fileiras” da gordura vegetal por cima da leguminosa e se dirigia para a sala, onde se sentava à mesa grande, que cabia doze pessoas com folga; porém, naquele momento, ele se sentava sozinho. Em cima dela, já à sua espera, um pedaço de rapadura preta do Cariri. Numa vasilha de plástico, a bendita farinha dos nordestinos. Sem elas, naquela casinha, nenhuma comida tinha o sabor adequado. O ritual seguinte consistia em misturar bem o feijão com o óleo. Feito isso, o segundo passo: pôr a farinha de mandioca por cima do feijão. Depois, raspar um pedaço de rapadura e colocar por cima do feijão e da farinha. Mas, ainda havia uma outra opção: ao invés de raspar um pedaço de rapadura, ele podia simplesmente ir comendo-a, em dentadas, junto com cada colherada posta na boca. E o “cardápio” nunca era igual ao do dia anterior. Não, não era. A mente criativa daquele jovem, na hora das refeições, em especial, a do meio-dia, não permitia que o feijão cozinhado, na água e no sal, com duas fileiras de óleo vegetal, farinha e rapadura preta do Cariri, fosse apenas isso. Desta forma, cada colherada se transformava na galinha à cabidela com macarrão, arroz, farofa… até “raspar” o prato, descascando, com isso, mais um pouco do utensílio doméstico. Um copo de alumínio cheio de água, retirada do pote feito de barro cozido, completava o manar. Ali, naquela mesma mesa, dali a pouco, o caderno surrado, um livro mais surrado ainda, serviriam de companhia para os exercícios de casa. Aí, sim, todos os dias eram iguais…

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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