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OPINIÃO

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POLÍTICA

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LUIZ SCHWARCZ E A DOR DAS COISAS QUE PASSARAM

EDMílSoN CAMINhA

Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com

Sempre admirei a aguda e lancinante consciência com que pessoas escrevem sobre as próprias patologias mentais, como Van Gogh nas Cartas a Theo, Lima Barreto no Diário do hospício e Maura Lopes Cançado em Hospício é Deus. Nomes a que agora se junta Luiz Schwarcz com O ar que me falta (São Paulo : Companhia das Letras, 2021). São muitos os limites autoimpostos, da natural resistência a que estranhos tenham acesso ao íntimo até a força dos preconceitos sociais quanto a sofrimentos psicológicos e a moléstias psiquiátricas, atitudes discriminatórias que tendem a desaparecer. Hoje, procura-se o psiquiatra quase tão tranquilamente como se vai ao oftalmologista.

Já na capa, o subtítulo – “história de uma curta infância e de uma longa depressão” – apresenta um Schwarcz disposto a mergulhar nos mistérios de si mesmo, nos abismos do passado, em busca das fontes primeiras dos traumas que lhe atormentam a vida. Porque não há perturbações mentais que flutuem como folhas na superfície das águas: são plantas com raízes grossas que alcançam as profundezas do rio do tempo, enterradas no lodo dos complexos, das interdições, dos recalques, das memórias reprimidas.

Sem cilindro de oxigênio, o adulto desce ao encontro do pequeno Luiz, marcado para sempre pela tragédia do avô Laios, judeu húngaro de quem herdaria o nome aportuguesado, e pela angústia do pai András, milagrosamente salvo do trem que conduzia os dois para a morte no campo de concentração nazista de Bergen-Belsen. András virou André no Brasil, casou-se com Mirta e gerou Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras, casa que instituiu um novo parâmetro de excelência na produção editorial brasileira. Marido da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, pai de Júlia e Pedro, poucos sabiam que por trás do empreendedor bem-sucedido oculta-se um homem a carregar e a sofrer, ao longo de toda a vida, “a grande dor das coisas que passaram”, como no verso de Camões.

Ao resgatar e escrever sua história, o autor vai além da válvula de escape que, aberta, reduz pressões a níveis pelo menos suportáveis: por comparti-la, ajuda quem se vê também a lutar contra desordens mentais democraticamente cruéis, pois que vão da base ao topo da pirâmide social e do dinheiro que se possa ter na bolsa; corações que disparam ao pressentir os olhos vermelhos, a boca aberta, a língua pendente, a baba viscosa do “cão negro”, como na página impressionante em que Carlos Lacerda representa a depressão de que era vítima.

O esforço a que se lança o memorialista é trabalho que talvez nunca chegue ao fim, a exemplo dos versos de Drummond que escolheu para uma das epígrafes: “Procuro sempre, e minha procura / ficará sendo / minha palavra”. O pai André, com a paranoia que lhe rouba o sono, é rio que sente correr desde a juventude, as pernas do velho a bater na cama noite adentro, a íris verde a boiar em lágrimas que não caíam nunca, o remorso torturante por não haver morrido com quem ficara no trem:

Aprendi o sentido da palavra “culpa” desde muito jovem, como algo que fundava minha existência, algo que passava além dos olhos ou das pernas do meu pai. Sua culpa por ter sobrevivido a meu avô, de não o ter salvado ou acompanhado na morte, não permitia descanso, ou mesmo os bons sonhos que ele, junto com a minha mãe, me desejava toda noite à beira da cama. Meu pai provavelmente não dormia nem sonhava porque o passado voltava como vigília absoluta.

Mais tarde, Luiz descobre que o pai vivera em estúdios abandonados da Cinecittà, a Hollywood romana, história verdadeiramente cinematográfica incluída em um romance que o filho não chegou a publicar:

Os judeus e outros refugiados ficavam em cubículos construídos ao lado de cenários que tinham sido usados nos filmes de exaltação ao regime fascista. (...) Além da descrição do tamanho dos cubículos erguidos com tapume, havia fotos exibindo a proximidade entre eles e os cenários e figurinos abandonados. Era nesses minúsculos quartos improvisados que famílias judias e de outros sobreviventes da guerra moravam enquanto esperavam que algum país os aceitasse como imigrantes.

Uma velha judia lembra a elegância do amigo com a farda de oficial da SS, a thing of beauty, como no poema de Keats, que faz esquecer o ódio aos alemães, o horror do holocausto, a tragédia pessoal:

Entre tantos outros detalhes da vida em Óstia de Roma e na Cinecittà, Magda contou que presenciou a atuação de meu pai como extra num filme, nas ruas de Roma. Falou que André teve que vestir, para a filmagem, um uniforme nazista. Emocionada, mostroume os números tatuados em seu braço e disse: “Luizinho” – ela até hoje me chama pelo apelido – “eu sobrevivi a Auschwitz, mas tenho que confessar, seu pai estava lindo naquele uniforme”.

Memórias a que se somam o asfixiante sentimento de que dele, filho único, dependia a felicidade dos pais, cuja separação o marcaria para sempre; a frustração religiosa de nunca haver sido o judeu que gostaria, como André em jejum na sinagoga durante o Yom Kipur, Dia do Perdão... Substâncias do caldo onde se choca o ovo de serpente da depressão, desgraça pior que o tirano Júlio César no teatro de Shakespeare, pois não pode ser morta na casca, como planeja Brutus:

Quem tem depressão vive apenas em função do momento. O julgamento é sempre absoluto e no presente. Estamos deprimidos ou não? Fora das sessões de psicanálise ou terapia, fugimos das lembranças ou interpretações. (...) Na maioria das vezes, inexplicavelmente, a velha senhora chega sorrateira. E tira minha respiração. (...) As expectativas do deprimido se renovam a cada consulta, ou a cada troca de médico, mas fora desses momentos o tratamento de uma crise depressiva significativa é muito lento e sofrido. O paciente fica perdido, não só quando toma atitudes radicais ou nos períodos mais agudos de falta de controle. A turbulência é tão intensa que o paciente parece estar sempre por um fio. Os remédios mexem com o organismo, e a instabilidade acentuada torna completamente vã a esperança de cura rápida. E assim, no começo do tratamento, o fosso só faz aumentar.

Com honesta franqueza, arrepende-se do murro que deu em uma pessoa que o insultara na Festa Literária de Paraty: “Ainda não superei o episódio. Chego a pensar que serei conhecido por aquele soco desferido em público e não pelos livros que publiquei”. Lamenta o dia em que gritou com uma colega da Companhia das Letras: minutos depois, escreveu uma carta com pedido de desculpas a todos os funcionários, e a revelação de que era bipolar.

Ao concluir O ar que me falta, o menino e o homem se encontram no testemunho do sobrevivente que surge em meio às ondas, a minutos do instante em que desapareceria para sempre. Exausto, sem fôlego, mas vivo:

Este livro foi construído sobre uma longa história de silêncios. O silêncio presente na personalidade de Láios, nos seus cultos clandestinos, e na sua vida como prisioneiro de um campo de extermínio. O silêncio duradouro de André depois de ter deixado seu pai salvá-lo, quando caminhava para a morte em Bergen-Belsen. O meu silêncio como filho e neto único, temeroso da fragilidade dos pais. E agora, apesar de a depressão estar controlada, há muito mais silêncio em minha vida. Não é apenas uma consequência do que ocorreu. É também uma opção. O silêncio me é útil profissionalmente. A leitura se dá em silêncio, e o trabalho de um editor basicamente é saber ler.

ilustrativa

Comentário da escritora Vera Lúcia de Oliveira, amiga fraterna, autora de brilhantes ensaios de cunho psicanalítico: “Curioso que o avô se chame Laios, mesmo nome do pai de Édipo – morto pelo filho –, pois André sofreu igualmente como se tivesse matado o pai. E Luiz, versão de Laios, carregou a culpa do pai, André, muito pesada para ele. Tem tudo que ver com a tragédia grega, cuja característica principal é uma geração ‘pagar’ pela outra. Comparo com o pecado original, pois nascemos todos culpados pela morte do Cristo.”

dI ReçÃO ge RAL: César Santos dIRetOR de RedAçÃO: César Santos ge ReN te Ad MINIS tRA tIVA: Ângela Karina deP. de ASSINAtURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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