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OPINIÃO

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GERAIS/OPINIÃO

GERAIS/OPINIÃO

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: CLAUDER ARCANJO

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O MITO DE NAPOLEÃO EM CRIME E CASTIGO

VERA LÚCIA DE OLIVEIRA

Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-DF) veraluciaoliveira@hotmail.com

O romance Crime e castigo (1866), de Dostoiévski, começa com a fome de Raskolnikóv: dois dias sem comer. Mas não foi essa a causa dos assassinatos que viria a cometer. O que o levou ao gesto extremado foi o desejo de ser um homem ousado, firme, decidido, corajoso, extraordinário, acima dos homens comuns: queria ser Napoleão. Foi o que ele disse duas vezes.

Assim como Napoleão ultrapassou as fronteiras da França, Raskolnikóv ultrapassou as leis da Rússia e dos homens, violou o quinto mandamento “Não matarás”. Identificou-se, portanto, com o mito que suplantou todos os poderes e passou a fazer parte do imaginário de todos, até dos russos, por quem, no entanto, foi vencido e humilhado. Napoleão pôs fim à monarquia e deu início ao império na França. Dominou a Europa. É provável que o que mais impressionou o jovem Raskolnikóv foi o aspecto psíquico da coragem e do senso de justiça do general francês que explodiu as velhas hierarquias, que trouxe a Declaração dos Direitos do Homem e o Código Civil a países submetidos até então ao arbítrio, nas palavras de Renato Janine Ribeiro, na apresentação do Napoleão, de Stendhal, obra bicentenária. Pois é da coragem de passar ao ato, baseado no seu senso de justiça, que o jovem estudante, com as próprias mãos, irá cometer o crime contra a velha usurária, Alíona Ivânovna, e, de quebra, contra a bondosa Lisavieta Ivânovna, que não tinha por que entrar na história, pois era também vítima da exploração da irmã.

Raskolnikóv era “cliente” de Alíona Ivânovna, que vivia de penhores e agiotagem, com quem havia penhorado o velho relógio de prata que herdara do pai. Era seu último pertence, assim como o relógio foi o último pertence que Napoleão vendeu em sua fase de penúria em Paris, como nos conta Stendhal em seu Napoleão (2002). Assim, também na penúria, o jovem estudante tenta conseguir algum trocado com a velha usurária.

E como Napoleão Bonaparte, Raskolnikóv foi um homem à parte, não se parecia com ninguém: solitário, introspectivo, triste, silencioso. Raskolnikóv alimentava secretamente a teoria dos homens superiores, aqueles aos quais tudo é permitido, pela razão autoexplicativa: são superiores.

“Não, aqueles homens não foram feitos assim: o verdadeiro soberano, a quem tudo é permitido, esmaga Toulon, faz uma carnificina em Paris, esquece um exército no Egito, sacrifica meio milhão de homens na campanha da Rússia e se safa com um calembour em Vilna; e, ao morrer, é transformado em ídolo – logo, tudo lhe é permitido. Não, pelo visto esses homens não são de carne, são de bronze!” (In: Frank, pág. 596)

Como Napoleão, repetimos. Ruminava essa ideia em seu quarto-cela, que funciona como índice da narrativa, quarto que em tudo lembra o do homem do subsolo – personagem icônico de Memórias do subterrâneo (1864), obra-prima que antecedeu a publicação de Crime e castigo – seja pela pobreza, seja pela dimensão minúscula, que mal cabia Raskolnikóv de pé, e mal dava para se caminhar dentro dele. Um quarto chamado pelo narrador de “tugúrio”, “pocilga”, “gaiola”, cubículo que escancara a sua situação precária – e que tem papel simbólico na narrativa –, onde ele dormia mal (diferentemente do ídolo Napoleão que, segundo Freud, dormia bem). Pobreza que o aviltava. Continuação do personagem do homem do subsolo? Pensamos que sim, como a personagem Sônia, também de Crime e castigo, parece ser continuação de Lisa, de Memórias do subterrâneo, ambas muito jovens e que, por obra da miséria, foram jogadas na vala comum da prostituição, pois não tinham com que viver. Duas personagens criadas por Dostoiévski para fazer contraponto aos exploradores e inescrupulosos que estão em toda a sua obra. São “Os miseráveis” de Dostoiévski. Como não pensar na adolescente Fantine, de Os miseráveis (1862), de Victor Hugo, jogada na prostituição, assim como a também adolescente Sônia com sua família Marmeliádov em pobreza abjeta? E ainda a cena impactante da carroça que esmaga Marmeliádov como naquela de Jean Valjean em Os miseráveis?

Se a ideia do herói, da identificação com o mito, é o que move Raskolnikóv, a miséria, no entanto, é o pano de fundo da narrativa. Desde a ideia de assassinar a velha usurária para conseguir dinheiro, passando pela trágica família Marmeliádov, até a pobreza que humilhava também a mãe e a irmã de Raskolnikóv, todos estão a um passo de morrer de fome. Sem esquecer o desejo de querer salvar a mãe da pobreza (preocupação seriíssima também do jovem Napoleão em fazer fortuna ao ver a mãe, viúva, e, de repente, jogada na miséria), e a irmã, de um casamento desonroso, sacrifício que faria para salvar a família da fome. A pobreza como humilhação. Mas o sofrimento de Raskolnikóv ultrapassa a fome física, pois a angústia que o acomete é da natureza do que Freud chamaria mais tarde de mal-estar na civilização, uma sensação psicológica de impotência diante da sociedade que o limita em suas ações; e ainda a sensação de sufocação física do seu quarto, pois era tão baixo que um homem alto como ele parecia dar com a cabeça no teto. Vivia recluso: “Tinha-se retirado resolutamente de todo o convívio humano, vivia como uma tartaruga na sua concha” (...) (Pág. 38). Quarto mais pobre e miserável que o do famoso quadro de Van Gogh, artista da fome.

O herói Napoleão representa muito para Raskolnikóv. Representa o homem que está acima dos outros, que tem liberdade para agir acima da lei, inclusive tem o direito de matar. Com certeza, ele guarda em seu imaginário a figura do general intrépido, decidido, que usava o chapéu virado para se destacar dos soldados, para ser identificado rapidamente pelo seu exército. E Raskolnikóv, com seu gorro velho enterrado na cabeça, também caído para o lado, faz-nos vê-lo apenas como um negativo do herói. Diz para si mesmo: “Com estes farrapos, a única coisa que diz bem é o gorro, mesmo velho, e não este espantalho. Ninguém traz outro semelhante, vê-se à distância de uma versta, fica gravado na memória...” (Pág. 11 e 12). E é essa identificação com o mito, sua estrela-guia, que vemos na análise psicanalítica de Freud:

“A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. (...) a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.” (Pág. 115 e 116).

E diz ainda: “(...) um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego [superego] que se diferenciou do ego. Nos delírios de observação, como demonstramos em outro lugar, a desintegração dessa instância tornou-se patente e revelou assim sua origem na influência de poderes superiores e, acima de tudo, dos pais.” (Pág. 119).

Essa identificação e glorificação desses seres superiores remete-nos ainda a Nietzsche, cujo comentário esclarecedor do grande psicanalista Otto Rank extraímos de O mito do nascimento do herói, obra fundamental, de 1909: “Para Nietzsche, esses seres superiores, Übermenschen, surgem como um repúdio a qualquer norma, como uma espécie de antítese à mediocridade e à estagnação do espírito humano, representando um ataque ao conceito do homem normal. Por outro lado, o Übermenschen do filósofo alemão remonta ao hyperantrophos que já se encontrava inserido nos escritos do poeta cômico Luciano de Samósata (125-180 d. C.).” (Nota 2, pág. 14).

Desse quarto para a cela em que ficará preso na Sibéria serão poucos dias. Depois do crime, começa o jogo de gato e rato entre o criminoso e o comissário de polícia. Como nas batalhas de Napoleão, os movimentos de avanço e recuo para ludibriar o inimigo são um ponto forte da narrativa com a cidade de São Petersburgo como espaço de livre circulação incessante das personagens; livres até certo ponto, uma vez que a experiência em solucionar crimes faz com que o comissário aja como que jogando o anzol no peixe deixando-o debater-se até perder as forças antes de ser fisgado. Também um jogo de xadrez. Até que, encurralado, Raskolnikóv só tem uma saída: entregar-se, pois já se tornara escravo de seus pensamentos, o que faz o romance ser, na verdade, mais sobre o castigo. Castigo que começa com o sofrimento: misto de culpa, desconforto, desassossego do espírito e que perdura até o clímax da narrativa, quase no final do romance. Há o castigo autoinfligido psicologicamente, e o outro, aplicado pelas leis da sociedade, que será mostrado no longo epílogo: Raskolnikóv está na prisão. Desterrado na Sibéria, como Napoleão em Santa Helena, irá cumprir longa pena. Nessa nova condição, está acompanhado de Sônia, que por amor o seguiu e instalou-se na pequena cidade próxima ao presídio. É jovem, tem vinte e quatro anos; mais sete e estará livre para recomeçar a vida. Os sete anos, como os do pastor Jacó, nada seriam diante da promessa de felicidade. Transcendeu o sofrimento: agora não haverá mais castigo. Como na ressurreição de Lázaro, que tanto o emocionou e à Sônia, no Evangelho de João, a vida ressurgiu para Raskolnikóv como um milagre.

Raskolnikóv tem muito do autor Dostoiévski, do seu tempo, da sua experiência de vida também em uma prisão na Sibéria. Muitos elementos, personagens, foram trazidos da lembrança do autor para compor as cenas de solidão, miséria, doença e sofrimento do protagonista do romance, bem como a presença dos estudantes pobres e inteligentes representados por Raskolnikóv, nova geração com revolucionários considerados perigosos, uma nova Rússia que emerge nos anos 1860.

Crime e castigo é um romance que eleva o tema do crime ao mais alto patamar de indagação sobre a natureza humana. Nele, não há alegria, mesmo porque não há espaço para efusões nessa história, nem tristeza mórbida ou fingida. Há uma tristeza dolorosa, pois a dor humana aí revelada é verdadeira. Dostoiévski ultrapassa a lei da verossimilhança da literatura e atinge a verdade. Cremos estar diante de pessoas reais, e não de personagens.

Para encerrar com Camus, que nos diz em seu magnífico O homem revoltado (1951): “Não importa o que fazemos, a desmedida conservará sempre o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão. Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, e, sim, combatêlos em nós e nos outros.” (Pág. 345).

Ilustrativa

Obras consultadas:

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. RJ: BestBolso, 2018.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. – Crime e castigo. Tradução de Natália Nunes. SP: Abril Cultural, 1979.

FRANK, Joseph – Dostoiévski. Tradução de Pedro Maia Soares. SP: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. Obras Completas. Vol. XVIII. RJ: Imago, 2006.

RANK, Otto. O mito do nascimento do herói. SP: Cienbook, 2015.

STENDHAL, Napoleão. SP: Boitempo Editorial, 2002.

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