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OPINIÃO

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GERAIS/OPINIÃO

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eSPAÇo JorNALiSTA MArTiNS de vASCoNCeLoS

Organização: CLAUder ArCANJo

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Gentidade e autonomia de nita Freire

JoSÉ de PAivA reBoUÇAS

é escritor e jornalista josedepaivareboucas@gmail.com

Próximo das comemorações do aniversário de 100 anos de nascimento de Paulo Freire, a convite do jornalista César Santos, produzi e editei nova edição da revista Contexto em homenagem ao educador. Entre os assuntos abordados, precisava entrevistar Nita Freire, sua última esposa e herdeira legal de seu patrimônio intelectual. Fiz contato com ela e esperei alguns dias, até que respondeu marcando a hora que podia me atender. Sabia que àquela altura, julho de 2021, sua vida devia estar sendo uma correria. Aproximando-se o centenário de Paulo, toda a imprensa do Brasil e de outros países deveria estar solicitando a atenção dela, ainda assim consegui um horário para uma excelente conversa por telefone. Antes do papo, no entanto, é importante destacar que foi com o incentivo de Nita que, nos últimos anos, Paulo reuniu, concluiu e lançou diversas obras. Desde “Pedagogia da Esperança”, Nita vem colaborando com comentários e providenciando o lançamento de outros livros importantes. É ela quem organiza o “Cartas a Cristina - reflexões sobre minha vida e minha praxis”, por exemplo. O resultado de nossa entrevista segue abaixo.

PAIVA - Numa entrevista que a senhora concedeu em 2018 ao jornal O Povo, de Fortaleza, citando o professor Paulo, disse uma frase que ele teria dito: “Não estamos livres de outro golpe, essa democracia brasileira é muito fraca, inconsistente. De 2018 para cá, muita coisa mudou e, novamente, a palavra do professor Paulo Freire estava não só certa, como muito atual”. Como é que a senhora avalia essa clarividência?

NITA - Bom, veja o seguinte, ele tinha uma capacidade de pensar muito grande e ele se enraizava, isso é que ele chama de o pensamento radical, ele se enraizava no presente e analisava os fatos passados. Ele dizia: uma sociedade como se constituiu a nossa, escravocrata até hoje, uma divisão enorme entre as classes sociais, misérias profundas e riquezas imensas. Isso é um país com uma elite muito arrogante e está destinado, infelizmente, a ser uma sociedade massacrante que apela sempre para o direito que eles consideram ter, de fazer os seus golpes para governar e ter tudo exclusivamente para eles. Paulo me dizia isso. Nita, a elite do Brasil é a pior elite que eu já vi no mundo todo que eu viajei. Paulo viajou a muitos lugares do mundo e ele disse: nunca pude ver uma coisa igual a essa do Brasil. Então, Paulo tinha essa inteligência de um certo adivinhar, não é? Não é o adivinhar, ele não tinha clarividência, não adivinhava, mas pelo raciocínio que fazia, pelas incertezas que ele tinha, trabalhava com algumas incertezas, ele não dizia, ‘vai ter um golpe’, às vezes dizia: eu tenho como certeza que nós não estamos livres de golpes militares. Infelizmente tá a coisa aí.

P - Na sua visão de educadora, qual é a grande falha do modelo educacional brasileiro hoje. Ele tem a ver com o que estamos vivendo?

N - Olha, veja o seguinte: nós estamos num governo muito autoritário, muito autoritário. Então eles só querem que as crianças falem, pensem e andem como eles querem. Então, é um modelo que não se adapta à condição humana, todo ser, desde criança, quer liberdade, a liberdade de aprender, a liberdade de se expressar. Então, é preciso que se dê essa chance; a compreensão de educação de Paulo era isso: fazer a criança pensar criticamente. Ela pode não gostar de uma certa matéria na escola, ela tem liberdade de dizer: olha, eu não gosto disso, eu não sei porquê; não sei se é o meu professor, não sei sou eu que eu estou me adequando. Então a criança tendo liberdade de expressão vai aprendendo a ser crítica, vai aprendendo a ver a realidade, o que raramente ocorreu no Brasil. Quando Paulo foi secretário de educação do município de São Paulo, no governo Erundina, as crianças tinham plena liberdade de expressão dentro da civilidade, dentro do respeito e da seriedade. É claro, quer dizer, não é possível a pessoa chegar, como acontece hoje, e dizer toda a série de impropérios de nome feios, como se diz, de coisas absolutamente repugnantes. Dizer e ficar por isso mesmo. Quer dizer, uma educação responsável isso não é possível. Então, quando Paulo incentivava a autonomia das crianças era nesse sentido: uma liberdade pessoal que esteja dentro da liberdade dos outros também. Não tem essa história: ah, eu tenho liberdade até certo ponto, quando esbarro com a liberdade do outro não sou mais livre. Essa coisa não existe. Então a liberdade é essa que a gente tem, mas que expressa um desejo comum da comunidade.

P - A senhora consegue traçar um paralelo da pessoa que a senhora conheceu quando era criança, ainda lá na escola de seu pai, até o homem que a senhora viu partir?

N - Ele era a mesma pessoa, mas foi crescendo, foi se transformando, foi ficando mais maduro, foi tendo mais criticidade, foi tendo mais domínio da leitura de mundo que ele fazia. Uma pessoa que se notabiliza por sua inteligência, por sua criatividade. Ele é o mesmo e não é o mesmo, ele cresceu; Paulo cresceu em genialidade, em tudo! Agora, ele sempre foi, desde aluno, uma pessoa diferente dos outros. Ele não era um lugar comum como todos os outros, sempre tinha as suas ideias, os seus atos diferenciados.

P - Como era o professor Paulo quando vocês estavam descansando, tirando um dia de folga. Ele tinha tempo pra ver TV, ou sempre estava discutindo, lendo, trabalhando...

N - Não, não, Paulo fazia um pouco de um milagre, como sempre. Ele lia muito, mas por exemplo, raramente depois do jantar ele ia pro escritório fazer alguma coisa, só quando ele estava muito inquieto, quando ele tinha de pôr no papel a ideia que estava tendo, mas, senão, ficávamos na sala conversando, coisas comuns, de todo dia, o dia a dia do Brasil. Víamos televisão, víamos os jornais de notícias e, algumas vezes, até Paulo dizia: bota uma novela aí para eu me distrair um pouco. Então, se distensionava tanta preocupação, tanta tensão com as coisas do mundo e do Brasil. Então, Paulo foi em casa um homem, vamos dizer assim, comum. Sábado e domingo que a gente não tinha ninguém para ajudar em casa, ele dizia assim: eu vou forrar a cama, depois você vê tá? Eu te chamo. Aí forrava e me chamava: Tá boa, tá bem forrada? Eu sempre dizia que estava. Não era tola de dar excesso de decepção a ele de ser um intelectual que não sabe forrar a cama (risos). Então, sempre dizia que estava muito bem forrada. Ele era uma pessoa que dizia assim: o que tu queres, Nita, que façamos juntos hoje? Se você pensar, esses grandes filósofos que se fala por aí, nenhum deles diz uma coisa dessa. Por isso, filósofos europeus me dizem: Nita, uma coisa incrível que a gente acha é que Paulo cita o seu nome nos escritos dele, ele te chama pra mesa junto quando ele tá fazendo conferência, isso é uma coisa que não existe na Europa. Quer dizer, conheço intelectuais que até hoje não sei se são solteiros ou casados. Nunca falam, nunca estão com suas mulheres. Paulo foi muito diferente nisso. Então, Paulo vivia a vida como ela é! Então se ele é casado e gostava da minha companhia, eu estava sempre junto dele fazendo companhia.

P - E quando ele perguntava o que a senhora gostaria de fazer, a senhora tinha alguma coisa predileta que gostava de fazer com ele?

N - Eu sempre escolhia alguma coisa que eu sabia que o agradava. Ele gostava, por exemplo, de sair para um passeio de automóvel, porque ele não dirigia, então eu ia dirigindo por bairros bonitos aqui de São Paulo, bairros que têm uma vegetação, parques com vegetação, íamos ao Parque Ibirapuera ou íamos ao cinema, a um teatro. Então, fazíamos alguma coisa assim. Aquilo que todo homem e toda mulher de bom gosto fazem, é isso. Ter um lazer que se constituem como um ingrediente da riqueza pessoal da gente e que nós vamos nos modificando através disso. Veja o seguinte: Paulo não viajava para Europa, nunca ia ver coisas ou espetáculos; viajava para os Estados Unidos, nunca ia! Então, depois que casamos, eu o levei a show da Broadway, nos Estados Unidos, e, na Espanha, eu disse: Paulo você já foi a uma casa de tablado? ele disse não. Então, nós fomos, pessoal lá conseguiu e nós fomos uma casa tablado e ele ficou maravilhado, é uma coisa lindíssima, uma casa de tablado na Espanha; uma boa casa de tablado onde aquelas pessoas estudaram, sabem dançar a rigor. Então, ele ficou maravilhado, coisas que eles não fazia antes porque tinha uma vida muito mais presa à intelectualidade. No princípio da vida dele, até, vamos dizer, Elza morrer, Paulo lia muito, muito, muito. Nos últimos anos da vida dela, não, ele ficou muito abatido, ela muito doente e ele já lia menos e trabalhava menos porque, a partir do retorno dele ao Brasil, ele publicou a ‘Importância do ato de ler’, que é um livro pequenininho, maravilhoso, em 1982, e só vai publicar outro livro quando já está casado comigo que é a ‘Pedagogia da esperança’, em 1992. Então, Paulo ficou esses anos todos, eu diria, sem ir à sombra da mangueira. A sombra da mangueira é uma metáfora para o escritório dele, onde ele se sentava e escrevia. Paulo não tinha a vontade necessária em se aprofundar ali sozinho. Ele não tinha condições materiais de fazer. Então, foram tempos difíceis para ele, tempos difíceis, e aí, a partir do nosso casamento, ele volta a escrever. Ficou dez anos sem escrever livros pessoais, né? Só tinha livros falados, como ele dizia, que eram instigados pelas perguntas, sobretudo de Sérgio Guimarães. Sérgio estimulava e eles fizeram vários e vários livros.

P - Professora, ele comentava se tinha alguma mágoa, alguma coisa a respeito dos anos difíceis que passou em 1964, sobretudo ter de sair do Brasil ou ter de conviver com a sociedade que não compreendia essa “pedagogia da afetividade” que era a base da teoria dele?

N - Não. Hoje eu acho que é uma das virtudes maiores dele, ele dizia: eu me nego a piedade de mim mesmo, eu não tenho pena de mim mesmo. A gente sofre as coisas na vida, as injustiças como ele sofreu. Aquele golpe contra Goulart, o governo sério honesto que levava o Brasil a um desenvolvimento social e econômico, foi posto abaixo pelos Estados Unidos e pelo empresariado brasileiro junto com os militares brasileiros. Então, Paulo dizia: sofri aquilo tudo sem nunca dizer: eu estou magoado, eu estou zangado, eu procurei incorporar aquilo e transformar - toda essa crueldade que fizeram com o Brasil e com ele e com outros intelectuais e outros políticos - isso numa nova energia para continuar lutando por um Brasil melhor. Paulo, realmente, eu digo, não é um ser comum igual a gente. Eu acho que ele tinha motivo suficiente para estar revoltado, em se queixar e falar mal, sobretudo no estrangeiro, onde não tinha mais perigo de ser preso, ele podia ter falado horrores e ele nunca falou contra. Quando Paulo voltou do exílio, quase dezesseis anos depois, ele desembarcou em Viracopos, em Campinas, e a filha mais velha dela o convidou ir lá, que ela tinha preparado um almoço, e tal, e aí tinha muitos canais de televisão, jornais, todo mundo invadiu lá e aí perguntaram: professor o que é que o senhor diz voltando pro Brasil? Todo mundo queria que ele falasse mal do regime militar, todo mundo, aí Paulo diz assim: olha rapaz, eu tô numa cidade louca, eu tô sentindo o cheiro da minha terra, eu tô pensando no suco de cajá que eu acabei de tomar, entende? Aí começa a falar dessas coisas absolutamente banais, mas que faz uma diferença enorme para quem está no exílio e não tem essas coisas.

direçÃO Geral: César Santos diretOr de redaçÃO: César Santos Gerente ad Mi niS tra ti Va: Ângela Karina deP. de aSSinatUraS: Alvanir Carlos um produto da Santos editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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