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OPINIÃO

esPAÇo JorNALIstA mArtINs de VAsCoNCeLos

Organização: CLAuder ArCANJo

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COVID XII

rAImuNdo ANtoNIo de souZA LoPes

é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com

13º Dia

Seis horas da quarta-feira, dia 10. O despertador do celular me assustou. Deitado, sem querer testar se estava tudo bem, tipo, querer levantar e ir ao banheiro, eu acionei o Evangelho do Dia.

Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas (Lc 17,11-19): Aconteceu que, caminhando para Jerusalém, Jesus passava entre a Samaria e a Galileia. Quando estava para entrar num povoado, dez leprosos vieram a seu encontro. Pararam a distância e gritaram: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” Ao vê-los, Jesus disse: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes”.

Enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados. Um deles, ao perceber que estava curado, voltou glorificando a Deus em alta voz; atirou-se aos pés de Jesus, com o rosto por terra, e lhe agradeceu. E esse era um samaritano. Então Jesus lhe perguntou: “Não foram dez os curados? E os outros nove, onde estão? Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, a não ser este estrangeiro?” E disselhe: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou”. Ouvi e repassei para o grupo que havia criado.

Depois fiquei imaginando o quanto somos ingratos! Apenas um, de dez, voltou para agradecer. Nós também fazemos isso todos os dias. Pedimos a Deus e agradecemos ao mundo. É mais fácil. Talvez eu faça o mesmo, assim que fique bom. A alegria vai voltar, repartirei com os familiares, amigos e vizinhos essa dádiva da cura e me esquecerei de quem, de fato, foi o responsável por colocar suas mãos sobre mim. Somos ingratos por natureza… Resolvi tentar me levantar. A fisiologia do meu corpo implorava o vaso sanitário. Ao tentar levantar a cabeça, o mundo girou trezentos e sessenta graus, imediatamente.

Um zumbido nos ouvidos, uma palpitação, quase uma taquicardia, agitou-me. A tremedeira aumentou e os suores passaram a banhar-me por completo. Estava empapado em cima do colchão da cama. Vixe, está pior do que ontem. Acho que não terei forças para me levantar. Vou chamar Pedro, pensei. Depois raciocinei que se Pedro entrasse no quarto e me ajudasse, provavelmente seria contaminado. E eu não queria isso. Tinha de tentar me levantar sem precisar da ajuda dele ou de dona Dora. Reuni todas as forças que ainda me restavam e fiz um movimento lateral, o que me possibilitou fazer uma alavanca com o cotovelo do braço direito para me impulsionar e me fazer ficar sentado. Deu certo.

Sentado, já com os pés sobre o chão, com as palmas das mãos firmadas no colchão, feito alicerces para equilibrar o corpo ereto, esperei um instante e quando diminuiu um pouco o palpitar e a tontura fiz força com as mãos e as pernas. Levantei-me. Olhei para a parede de entrada do banheiro e com as mãos em sua direção aproximei-me. Agarrado à parede ficou mais fácil. Entrei no banheiro e me sentei no vaso sanitário. Foi nesse momento que achei que o fim estava próximo. Enquanto excretava os resíduos que já não me eram mais úteis, percebi que o organismo também expulsava, num volume muito grande, um líquido avermelhado. Descia em cascata, como se fosse uma torneira aberta, com um jato de alta pressão. O vaso ficou tomado de sangue. Tentei relaxar, porém o fluxo sanguíneo não parava. Vou morrer, profetizei.

Dizem que o ser humano quando se vê diante da morte revê, em flashes, o filme de sua vida. Acho que no meu caso não deu tempo. Na verdade, eu só pensei em como parar aquele sangramento. Muni-me de muito papel higiênico, fiz uma proteção, tapando o local, e me levantei, indo para o chuveiro. Esqueci a fraqueza. Esqueci tudo. Liguei o chuveiro e deixei a água cair e lavar tudo. O cheiro era forte, pois havia mistura de sangue, fezes e urina. E agora, o que eu faço? A coisa está se complicando e é urgente que eu tome uma decisão. E a melhor, imagino, é ir para o pronto-socorro, pensei. Convicto de que era a melhor alternativa, pedi a Deus que fizesse aquele sangue parar. E ainda tinha a questão das narinas. O medo de que elas sangrassem me fez desistir de assoálas de novo. Aos poucos o sangue foi estancado. Em compensação, o peso do corpo havia dobrado. Estava praticamente sem forças para sair do box. Levantar um pé para dar a passada era penoso ao extremo. Mas eu precisava voltar para o quarto. Com as mãos “segurando” as paredes em volta, dando suporte para o equilíbrio do corpo, voltei para o quarto e para a cama. E agora, o que eu faço? Se eu disser o que está acontecendo vão me levar para a UPA da

Ilustrativa

covid, no Bairro Belo Horizonte, onde lá, com toda certeza do mundo, serei intubado. Deus me livre! E se eu não disser nada corro o risco de “bater as botas” sem ter me dado a chance de outras opções, dentre elas, de ir ao pronto-socorro, ser medicado e, se fosse o caso, ser intubado, pensei. Se bem que não estava sentindo falta de ar, graças a Deus, e isso poderia ser um indício de que intubar não seria necessário. De repente, o celular tocou. Era dona Dora. Perguntou-me como eu estava. Deu vontade de contar tudo, mas só saiu “não estou muito bem hoje”. Ela, na santa ignorância do que realmente estava se passando comigo, sem ter a noção da gravidade, claro, disse que “o café ia me ajudar a recuperar as forças”. Sei lá, de alguma forma, e pelo fato de não saber da gravidade, ela me deu forças. Mais uma vez me calei e não relatei o perigo em que me encontrava. Será que quando alguém está pendurado num galho frágil, em um precipício de quinhentos metros de altura, dá tempo de alguém ver, voltar correndo, pegar uma corda e tentar içar a pessoa para cima? Acho que não… Por isso fiquei calado.

O café veio. Usei então o mesmo método do dia anterior: forcei o máximo a minha vontade de me recuperar. Sabia que a única forma de sair da situação em que me encontrava era me fortalecendo. Por cima de pau e pedra, consegui engolir um pouco de tudo que veio. Mais a vitamina. Porém não deixei de equilibrar com as proteínas e os carboidratos. Na verdade, o duro estava sendo, após me alimentar, fazer a higiene pessoal, lavar e higienizar copos, pratos e talheres. Penoso, doloroso e cansativo. A cada movimento dos braços, a sensação de que não completaria o processo; a cada necessidade de me deslocar de um lado para o outro, as pernas pareciam não querer obedecer. Na verdade, continuava a sensação de que eu estava me esvaindo, de que uma força externa estava retirando de dentro de mim todas as minhas energias, sangue, músculos, ossos… Horrível!

Quando terminei de lavar e higienizar os utensílios, levei-os para fora do quarto, não sem antes borrifar álcool em todos eles. Voltei para o meu leito. Deitado, o coração palpitando, como se o simples esforço de me levantar, comer, levar e lavar a louça fosse algo extremamente hercúleo, fiquei esperando me acalmar, estabilizar o ritmo cardíaco. Ainda bem que os batimentos, embora acelerados, estão cadenciados, sem disritmia, concluí. A fraqueza, misturada com o pressentimento de desmaio, me colocou no patamar do torpor e eu passei a criar imagens como se estivesse num delírio entre o real e o virtual. Com isso, e mesmo o suor voltando a fazer morada em meu corpo, continuei a viajar nesse universo que, se não é o passaporte para o além, é a fronteira tênue que delimita suas ações estruturais. O corpo pesava e, ao mesmo tempo, parecia flutuar. De repente, algo parecido com uma luz percorria o meu corpo. Isso me causava estremecimentos. Mas passava logo e eu me recuperava, já esperando a próxima passagem dessas estranhas sensações.

Meio-dia. Dona Dora me chama pelo celular. Pergunta se quero o almoço. Digo que sim, porém faço as ressalvas de apenas duas colheres de arroz, uma de feijão, um pedaço de frango, duas rodelas de tomate e três rodelas de cebola. Aproveitei, logo após o pedido de cardápio, para me deslocar até o banheiro e tomar mais um banho. Olha, levantar, mesmo fazendo um esforço tremendo, não é tão ruim assim. Ruim mesmo é a palpitação que acelera os batimentos cardíacos. É tanto latejar, no peito e nas têmporas, que chega a causar quase um desfalecimento.

Tomei banho. Como das outras vezes, enxugar o corpo molhado, nem pensar. Não dava, sinceramente. Molhado, apenas passei a toalha pelas costas e pelo peito e, claro, até a altura dos quadris, evitando curvar o corpo. Se curvasse, seria um problema. Talvez não “desse” para ficar ereto depois. O almoço não demorou. Do pouco que veio, a metade foi, infelizmente, para o cesto de lixo. Voltei para a cama. A fraqueza era tão grande que em poucos minutos já estava delirando. Tinha o seu lado bom: o tempo passava mais rápido. Se era para ficar bom, não sabia; se fosse para me encaminhar para a plataforma de embarque do trem da vida, também não sabia. O mistério, portanto, era o meu destino.

A incógnita do “daqui a pouco tudo vai melhorar” parecia distante da minha realidade. Eu não fazia nem ideia se as minhas decisões, as apostas que fiz - de não ir para o pronto-socorro ou de não contar o que estava acontecendo, prevenindo a minha esposa e o meu filho -, tinham sido as mais acertadas. Assim, continuei em delírios…

Continua...

DI reçÃO geral: César Santos DIretOr De reDaçÃO: César Santos gereN te aDMINIS tra tIVa: Ângela Karina DeP. De aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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