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OPINIÃO
from Jornal De Fato
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
Organização: CLAUDER ARCANJO
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OS NOVOS ADEPTOS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
AÉCIO CÂNDIDO
professor da UERN, aposentado. Autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com
De repente, todo mundo começou a se interessar pela liberdade de expressão. Os bolsonaristas, de um dia desses pra cá, só depois que uns blogueiros da tropa de choque do presidente começaram a enfrentar a resistência das instituições encarregadas de defender a democracia; os não bolsonaristas letrados, desde que aprenderam a ler. O tema, depois do século XVIII, entrou na predileção dos filósofos, mas agora chegou às ruas, entrou nos bares e nas salas domésticas. O momento político vivido pelo país transformou todos os espaços, públicos e privados, em uma grande ágora. Com uma diferença crucial: o debate na ágora grega era qualificado, isto é, presidido pelo esforço de se compreender os temas em discussão para se poder chegar a uma conclusão aceitável. O bolsonarismo é o pai desse fenômeno misterioso: quem nunca se interessou pela discussão política hoje é PhD em economia, sociologia, filosofia e política. Também em história. Também em biologia, engenharia genética e bioquímica. Falam com desembaraço sobre democracia representativa, conflitos entre os Poderes, eficiência de vacinas e imunidade de rebanho. Sem gastar tempo nem dinheiro, esforço ou dedicação, o bolsonarismo transformou milhões em especialistas em tudo.
Só os muito ingênuos ou os propensos a ditador pensam que cabe no conceito de liberdade de expressão o direito de dizer tudo, e no de liberdade individual, o de fazer tudo. O jornalista alemão Jürgen Schmieder resolveu viver em 2010 uma experiência poucas vezes tentada: durante 40 dias ele experimentou ser absolutamente sincero. Ao pensar seu autoexperimento, o rapaz pensou menos no viés político da liberdade de expressão e muito mais no viés filosófico e antropológico da sinceridade como virtude desejável. Sinceridade como o oposto de mentira, mas não como sinônimo de verdade.
O jornalista, jovem de 30 anos à época, sabia, sim, que sinceridade não é o mesmo que verdade: você pode ser completamente sincero e dizer uma mentira. Os bolsonaristas que defendem raivosamente a liberdade de expressão não sabem disso. Eles acham que, porque dizem exatamente o que pensam, estão absolutamente corretos e não dizem senão verdades.
Jürgen Schmieder resolveu ser absolutamente sincero, expressar seu mundo interior, dizer, sem nenhum tipo de autocensura, tudo que sua consciência sentia, avaliava, desejava ou concebia. Deu-se muito mal. Em 40 dias, foi xingado, levou tapas, quase perdeu a mulher, estremeceu amizades, perdeu dinheiro, levou carreiras... E chegou à conclusão a que filósofos e sociólogos tinham já chegado: a mentira, como a identidade e a esperança, também faz parte do cimento social. A experiência foi contada no livro Sincero (Campinas: Verus, 2011).
Mas voltemos à liberdade de expressão. A liberdade de expressão é uma das liberdades mais caras ao pensamento político liberal. “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até à morte vosso direito de dizêlas”. A frase não foi escrita por Voltaire, uma das vozes mais vibrantes do Iluminismo, mas traduz de forma abreviada boa parte do seu pensamento, e foi essa a intenção de sua biógrafa ao lapidá-la. O bolsonarismo é, em todos os sentidos, a negação mais completa do ideário político liberal (independência dos poderes, sistema de pesos e contrapesos, uso do Direito como mediador de conflitos, etc.), mas os bolsonaristas mais assanhados descobriram agora a liberdade de expressão e se transformaram em seus maiores defensores. Da boca pra fora, claro. O conceito deles não é o mesmo conceito da tradição filosófica. O deles é a concepção individualista dos autoritários: liberdade é o meu direito; o dos outros é atrevimento.
Dizer que o outro é canalha, é ladrão e merece levar uma surra ou uma bala no meio da testa é liberdade de expressão? Não, é apenas insulto, afronta. Você pode dizer que Fulano é ladrão, desde que prove. Se não prova, é calúnia. E calúnia é crime. Não existe direito à difamação e à calúnia. Estas são noções que funcionam como contrapesos à ideia de liberdade de expressão como direito absoluto.
Não se vacinar faz parte da liberdade individual, aquela que reconhece ao indivíduo o direito de fazer o que lhe apraz? Não, não faz. O direito de correr o risco de transmitir o vírus choca-se com o direito do outro à segurança sanitária, à preservação da saúde. Todos sabemos o que queremos dizer quando nos referimos a saúde pública. Quem reivindica o direito de decidir sobre vacinar-se ou não (e atentar contra a vida alheia) deveria também, por coerência, defender o direito de dirigir bêbado (é possível que defenda) e o direito de fazer uso de qualquer droga (por que um médico não pode fazer uma cirurgia ou um piloto de avião não pode voar depois de fumar um baseado, tomar 3 doses de uísque ou cheirar uma carreira de pó?). Proibir isso não seria um atentado aos direitos individuais do médico? E o direito ao aborto, não deveria ser uma bandeira do bolsonarismo, o direito de usar o corpo como quiser, de tirar de dentro dele um feto, igual ao de não injetar nele uma vacina?
A liberdade de expressão tem como pressuposto maior a busca da verdade, de uma verdade objetiva, que possa ser debatida. Os bolsonaristas libertários defendem a desinformação: as fake news e a distorção das palavras (começaram pela palavra mito). George Orwell, no clássico 1984, mostra muito didaticamente como os regimes totalitários corrompem as palavras, com o fim de promover a confusão semântica. Revira-se o sentido original e rigoroso e dá-se a elas o sentido contrário, muitas vezes paradoxal. “Guerra é paz”. “Liberdade é escravidão”. “Ignorância é força”. Estas expressões são do livro de Orwell. Mas um bolsonarista, em 2021, pode lhe dizer: “Mito é verdade”.
O risco embutido no direito de não se vacinar anula-o como direito. Ele se choca com um direito absoluto: o direito à vida. Por que um direito absoluto? Porque, objetivamente, cada um só tem uma vida; se perdida, não há como se recuperá-la.
A liberdade de expressão é fruto de uma negociação social. Todos têm direito a ela, os fortes e os fracos. Por isso é relativa, porque é um bem coletivo e não individual. A liberdade absoluta é a liberdade do ditador, que, arbitrariamente, baseado apenas em suas razões, pode calar a liberdade alheia.




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