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OPINIÃO

eSPAÇo JorNALiSTA MArTiNS de vASCoNCeLoS

organização: CLAuder ArCANJo

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OSSINOS dA MAtRiz dE NoSSA SENhoRA dAS MERCêS

AéCio CâNdido

professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com

Muito cedo a igreja de Cuité entrou em minha vida. Como casa de oração, claro, vindo eu, como venho, de uma família católica com pelo menos três gerações de praticantes convictos, mas sobretudo como obra arquitetônica. A emoção maior estava aí, no impacto que as proporções e beleza da construção me causavam.

A igreja se distingue por sua fachada singular. Não encontrei até hoje, ao vivo ou nos livros, nenhuma outra igual a ela. É única. Uma torre solitária, em forma de cruz, bem proporcionada e harmoniosa em relação ao volume do conjunto. A maioria das torres de igreja são pontiagudas, duplas, triplas ou mais, convergindo as linhas para o final das pontas, buscando uma continuidade que se projeta para o céu, em busca de Deus. A cruz se projeta em todas as direções. Podemos fazer um pouco de teologia: se Deus está em todos os lugares, todas as projeções O encontram. E a afirmação pode ter outro sentido, mais terreno e sociológico, se tomarmos o substantivo “projeção” em seu sentido psicológico, e não físico.

Além da fachada, dominada pela torre singular e imponente, emocionava-me o piso, com seu tapete geométrico de mosaicos. O mosaico, um avô da cerâmica, mais robusto e longevo do que esta, tinha a vantagem, do ponto de vista econômico, de ser um produto da indústria regional. Além da beleza, a durabilidade. Ainda hoje, mais de 60 anos depois, o piso continua intacto, com o brilho discreto de sua espécie, que, se não dá para ver a cara como prometem alguns tipos de porcelanato, não decepciona se o trato com alguma cera lhe chegar de tempos em tempos.

Mas, mais do que tudo isso, talvez, a igreja de Cuité me marcou pelo som personalíssimo dos seus sinos. Não há outros na região e no estado com a mesma tonalidade e pureza de som. Eram dois sinos, um grave e um bem mais agudo. O uso de apenas um, a mistura dos dois, o intervalo e a velocidade das badaladas davam um ritmo que distinguia os toques: de finados, de anjos (enterro de crianças), de chamada para a missa, de sinalização da elevação da hóstia e outras comunicações sonoras perfeitamente compreensíveis por todos. - Quem morreu? – era a pergunta que se fazia ou se ouvir o toque. Que morrera alguém todos compreendiam.

A cidade vivia em torno dos ritos religiosos e o toque dos sinos fazia parte da vida comunitária. Aprendi a tocar os toques mais simples, como o de anjos e o da elevação.

No silêncio do roçado, ajudando minha avó em algum trabalho agrícola, me chegava com nitidez o som deles e eu podia perceber sua pureza. O sítio, perto da cidade, é hoje um quarteirão de ruas.

E já que falo de sinos, em 1994, fui convidado a tocar os da Catedral da Santíssima Trindade, catedral anglicana da cidade de Québec, no leste do Canadá. Um carrilhão pesado, de muitos sinos, movido a cordas e que exigia pelo menos três pessoas para fazê-lo soar. Os “tocadores” tinham que se firmar fortemente, para não serem elevados do solo. Era inverno e havia neve nos beirais da torre – a torre não contava com aquecimento, aberta que era pelas arcadas do carrilhão, e o inverno de Québec mantém durante o dia sempre temperaturas mais baixas do que 10 graus negativos, chegando nas madrugadas a menos 20, menos 25º C. O convite, uma distinção simpática, partiu de um amigo neozelandês criado na Inglaterra. Militante numa federação de associações gays, ele já me convidara antes a uma reunião com o bispo, apoiador decidido da causa LGBT, quando este recebeu um deputado federal defensor dos direitos de homossexuais.

Meu irmão trabalhou na pintura da igreja, quase no final da década de 1960. Não lembro se escalava os 25 metros de altura da torre para dar uma mão de tinta nela, mas, se ele não, outros adolescentes o faziam. A sensibilidades sociais que se espantam com adolescentes trepados a dezenas de metros do chão, carregando baldes de tinta e pincéis de agave, lembro que os tempos eram outros e tudo que devemos fazer hoje é apenas não repetilos, quando boas lições podem ser tiradas deles. Era também um tempo em que adolescentes e pré-adolescentes tomavam banho nus no Açude de Seu Jaime, a pelo menos 3 km da cidade, ou na Lagoa de seu Jovino. Menos na lagoa do que no açude, porque contra aquela havia restrições, não restrições morais, mas sanitárias: dizia-se, e nós acreditávamos, que o lixo do hospital corria todo para dentro dela nos tempos de enxurrada. Ganhou-se a restrição ao trabalho infantil e o cuidado com a segurança no trabalho, perdeuse a espontaneidade dos banhos e um bom grau na liberdade das crianças.

Quem foi o arquiteto da igreja? Já me disseram que foi padre Luiz Santiago, um padre inventor, de inteligência fulgurante e personalidade controversa, que morreu idoso e suspenso das ordens. Fui, em algum momento da década de 1990, com minha mãe e minha avó, conhecer a Fazenda Ubaia, em Barra de Santa Rosa, onde ele viveu até sua morte. É um lugar impressionante, pela imponência da arquitetura no meio da caatinga pedregosa e desnutrida e pela quantidade de soluções inventivas presentes na casa de morada, como um elevador e um sistema de água encanada.

E aqui há uma ruptura na história dos sinos. Eles ainda hoje estão lá, mas perderam a sonoridade e a limpidez; estão roucos, desfigurados. Fiz a observação a minha mãe. Eles passaram recentemente (recentemente, na minha percepção contemporânea do tempo; na verdade, há talvez já uma década) por um conserto e voltaram assim, me disse ela. Falo no plural, mas já nem sei se são dois ou se resta apenas um. O fato é que não escuto na cidade nenhuma conversa sobre o tema. As pessoas perceberam a mudança ou os ouvidos atuais já não dão a menor atenção a sons de sinos? Parece que sim, não dão: pouca gente é capaz de associar o substantivo “dobre” e o verbo “dobrar” à palavra sino. Quantos compreendem de imediato o título do romance famoso de Hemingway “Por quem os sinos dobram”?

Certamente ninguém hoje tem mais tempo nem interesse para uma conversa sobre a afinação de um sino. Tempo e interesse são consumidos em acreditar no que as redes sociais propagam. Gostaria de ouvir os sinos dobrarem pela miséria intelectual que atravessamos. Seria o anúncio de uma boa morte.

dI reçÃO geral: César santos dIretOr de redaçÃO: César santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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