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OPINIÃO

eSPAÇo JorNALISTA mArTINS de VASCoNCeLoS

organização: CLAuder ArCANJo

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BaUdelaIre NOS SeUS 200 aNOS

VerA LúCIA de oLIVeIrA

escritora, membro da academia de Letras do brasil - (brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com

Baudelaire nasceu em Paris em 1821 e lá morreu em 1867. Foi o maior poeta do seu tempo. E continua a ser o maior da França do século 19. Elevou a poesia a um patamar inacreditavelmente alto que outros não conseguiram alcançar. Foi comparado a Dante Alighieri pelo arrebatamento e sonoridade de seus versos de cobre. Explorou os mais recônditos e sombrios lugares, as regiões noturnas da alma. Não foi por outra razão que se tornou leitor, tradutor e divulgador de Edgar Allan Poe na França e na Europa em trabalho gigantesco. Identificou-se com a arte do americano que tanto expressava horror e mistério quanto refinamento. Assim também foi: cruel, macabro, refinado. Por isso mesmo foi censurado em seu livro icônico As flores do mal, que traz a elevação espiritual e o demoníaco entrelaçados, na verdade, duas faces humanas numa só como na fita de Moebius; livro que teve o mesmo destino de Madame Bovary, romance do amigo Gustave Flaubert, indo parar nas barras do tribunal, em 20 de agosto, também no ano de 1857, acusado igualmente pelo terrível Dr. Pinard de ofensa à moral pública. Teve seis poemas censurados e pagou trezentos francos de multa. A imprensa fez sua parte ignorando-o ou maldizendo-o. Em meio aos apupos, recebeu, no entanto, a solidariedade de escritores como Victor Hugo que, do exílio, apressa-se a lhe dizer:

Meu caro Baudelaire, as suas Flores do Mal resplandecem e deslumbram como estrelas. Continue. Grito bravo!, com todas as minhas forças, ao seu espírito vigoroso... Recebeu uma das raras condecorações que o regime pode oferecer.

Hugo também fora vítima de Napoleão o Pequeno, como o apelidou. Baudelaire foi o primeiro punk da história com seus cabelos pintados de verde, cheio de atitudes quando jovem. Foi também um dândi que demorava duas horas e meia fazendo a toilette antes de sair à rua, pois herdara da mãe o gosto pela elegância. Expôs a teoria do dandismo no ensaio “O pintor da vida moderna”, estilo de vida profundamente arraigado nos intelectuais da época, uma verdadeira filosofia. Era solitário: tinha o sentimento da solidão e da melancolia desde a infância. Mesmo na decadência financeira, com trajes remendados e sapatos furados flanando pelas ruas de Paris, poderia ser reconhecido como um homem de classe (distinção que herdou do pai), como aquele cavalo de fina raça que, embora atrelado a uma pesada carroça, é reconhecido pelo olho do amador, como disse em “Um cavalo de raça”, um de seus poemas encantadores. Assim era ele com sua aura e presença única na cena artística parisiense. Buscou sempre a originalidade. Foi o primeiro poeta da modernidade, observador da vida urbana, da multidão, do progresso e das mudanças da cidade. Reparou nos párias, nos pobres que olhavam através das janelas de vidro a comida farta dos ricos sobre as toalhas brancas nos cafés e restaurantes dos novos bulevares da Paris de Haussmann iluminada pelo gás. Escreveu “Os olhos dos pobres”, poema em prosa em que um homem com dois filhos pequenos, todos em trapos, encantamse com as toalhas rutilantes das mesas, com o brilho dos espelhos, os dourados das cornijas, com todo o esplendor do restaurante:

Os olhos do pai diziam: “– Como é belo! como é belo! Dir-se-ia que todo o ouro do mundo foi transportado para estas paredes.” Os olhos do menino: “– Como é belo! Como é belo! Mas é uma casa onde só podem entrar pessoas que não são como nós.” Os olhos do menorzinho, esses, de tão fascinados, revelavam apenas uma alegria estúpida e profunda.

Diante desses olhos, o narrador confessa:

Eu não só me sentia enternecido com essa família de olhos, senão também um pouco envergonhado de nossos copos e nossas garrafas, maiores que a nossa sede.

(Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.)

Foi nesse momento que a amada do narrador, num gesto típico dos insensíveis, pede que afastem dali aquela gente insuportável. É, pois, nessa cena urbana que Baudelaire escancara, com ironia rascante e compaixão, o contraste dos olhos dos ricos e dos olhos dos pobres se cruzando, numa distância eliminada pelo vidro, cuja transparência deixa o indivíduo ver e ser visto. É a modernidade da cidade grande expondo as suas mazelas sociais.

Baudelaire ficou órfão de pai aos seis anos de idade e sofreu horrivelmente quando sua linda e jovem mãe casou-se em segundas núpcias com um militar severo, a quem odiaria pelo resto da vida por ter interrompido a sua infância calma e serena. Ele que era filho de um pai velho, bondoso, artista, agora teria de conviver com um “impostor” que lhe roubara a mãe. Era sonhador e de natureza artística e, em tenra idade, já amava as artes plásticas tornando-se mais tarde grande e respeitado crítico. Fez também crítica literária, a exemplo do extenso artigo sobre Madame Bovary, de Flaubert, em que viu aspectos inusitados da personalidade da personagem. Tornaram-se amigos os dois “malditos”. No primeiro poema de As flores do mal, “Benção”, coloca-se como o Poeta que irá encontrar a resistência da mãe, apavorada com a carreira que o filho escolhera: artista da palavra. Diz o eu-lírico:

Quando por decreto dos poderes supremos,

O Poeta aparece neste mundo enfadonho,

Sua mãe horrorizada e cheia de blasfêmias

Cerra os punhos para Deus, que dela se apieda:

– Ah! Por que não pari todo um ninho de víboras

Em lugar de amamentar essa derrisão!

Maldita seja a noite aos prazeres efêmeros

Em que meu ventre gerou minha expiação!

(...) (Tradução de Margarida Patrio-

ta.)

Baudelaire escreveu Pequenos poemas em prosa – o spleen de Paris, livro publicado postumamente em 1869. Não há adjetivo que possa qualificar satisfatoriamente essa pequena obraprima. Tudo nele é único, original, impecável, feito com o mais perfeito senso do Belo, poesia que canta os êxtases da alma e dos sentidos; obra em que a verdade poética está em primeiro lugar, sem nenhuma preocupação com o modismo dos manuais do gosto burguês mediano. É um livro de poesia pura, em estado bruto, porém lapidado com a elegância e o apuro da língua de Racine. É como a escultura de Michelangelo, feita com o melhor mármore de Carrara e com a mais perfeita técnica. Assim seus poemas que falam dos humildes, dos escroques, das prostitutas, do ópio, do tédio, do grotesco, dos gatos (sua paixão), dos relógios, do bas-fond em que tudo é degradação e corrupção da existência; mas, também, do mundo de sonho do Oriente, aonde foi e se extasiou com as cores e os perfumes, tema do poema “Convite à viagem”, em que “tudo é belo, rico, tranquilo e harmonioso, onde a felicidade se casa ao silêncio”, numa evidente ânsia de evasão romântica para os paraísos artificiais, para o país da Cocanha, “onde tudo é limpo e brilhante como uma bela consciência”. Como não se encantar ainda com “À uma hora da manhã”, em que o narrador, fatigado do longo dia, de tudo e de todos, sobretudo de si mesmo, passa uma volta dupla na fechadura do seu quarto para ter certeza de que se distanciara do mundo? Depois de recapitular os acontecimentos desse dia tedioso e antipático, encerra o seu pensamento numa comovente espécie de oração, no silêncio e na solidão da noite:

Almas daqueles a quem amei, almas daqueles que cantei, fortalecei-me, amparai-me, afastai de mim a mentira e as emanações corruptoras do mundo; e vós, Senhor meu Deus!, concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que me deem a certeza de que não sou o último dos homens, de que não sou inferior àqueles a quem desprezo! (Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.)

Além dessa passagem de tirar o fôlego, temos a bela passagem de “Embriagai-vos”, em que o narrador convida o leitor a embriagar-se “De vinho, de poesia ou de virtude”, como preferir, para não ser martirizado pelo Tempo, que nos abate e nos faz pender para a terra.

Baudelaire, que dedicou a vida à palavra, morreu sem voz, “engoliu” a língua e a língua francesa, tragado pela doença, a sífilis que devastou o seu corpo e a sua mente. Foi acompanhado por raros amigos ao cemitério. Lá estavam Verlaine, Manet, Nadar, entre eles. Morreu incompreendido, solitário e triste, mas certo do valor de sua obra, do reconhecimento futuro. Disse em carta à mãe que não dava importância aos imbecis, pois o seu livro As flores do mal triunfaria na memória do público letrado. Acertou. A herança de sua poesia simbolista chegaria a todos os países. E todos beberiam na sua fonte, como o nosso extraordinário Cruz e Sousa. O culto a Baudelaire no Japão é quase tão vivo quanto na Europa, pela beleza, força e atemporalidade de sua poesia. Mas, por ironia do destino, o poeta foi enterrado no túmulo onde jazia o padrasto, o general Aupick (a quem teria fuzilado, se pudesse, quando pegou em arma e lutou ao lado dos rebeldes no golpe de 1848), fazendo-lhe funesta companhia por toda a eternidade. Tinha quarenta e seis anos, mas era um velho há muito cansado da obrigação de viver vinte e quatro horas por dia. Suas asas de gigante, como as do seu albatroz, impediam-no de andar...

dI reçÃO geral: César santos dIretOr de redaçÃO: César santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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