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OPINIÃO
from Jornal De Fato
eSPaço JorNaLISTa marTINS de VaSCoNCeLoS
organização: CLauder arCaNJo
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dIr-Se-Ia qUe NINgUéMMaIS, à ExCEção dE TEMER, USA A MESóCLiSE
aéCIo CâNdIdo
professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com
Tinha especial admiração pela mesóclise, quase devoção. Achava uma solução linguística inventiva e charmosa aquele pronome oblíquo jeitosamente colocado no meio de um verbo no futuro. Muitos que passaram pela escola, e até alguns que concluíram um curso superior, nem sabiam do que ele estava falando. “Esclarecê-los-ia, se ainda me restasse paciência para tanto”, pensava. Gostava da mesóclise e lamentava seu desaparecimento. A elite ilustrada, por populismo linguístico, renunciou ao uso; os outros, por ignorância e falta de estímulo, não procuraram aprender.
Culpa dos linguistas, acusava, que invadiram os cursos de Letras, apropriaram-se do ensino da língua, calaram os gramáticos e os teóricos da literatura. Todo mundo sabe, ou seja, quase ninguém sabe, que os linguistas são uma espécie de etnógrafos da fala, coletores da língua natural. Eles fazem com a língua o que botânicos e zoólogos fazem com plantas e animais: coletam amostras da natureza. Naturalistas da fala, consideram a língua apenas como instrumento de comunicação. Beleza, apuro, inventividade, em suma, trabalho com a língua, isso não importa para eles.
Admirava os gramáticos. Esses compreendiam a estruturação da língua, esforçavam-se por sua sistematização, destacavam as repetições cristalizadas em regras. Iam além da catalogação, do naturalismo e espontaneísmo dos linguistas.
Os gramáticos miram na língua pensada, conscientemente usada; na frase cuidadosamente armada. Enfim, na língua lapidada, polida, esmerilhada. A gastronomia é a alimentação enriquecida pela criatividade humana; a gramática é a linguagem temperada, cozinhada lentamente nos caldeirões da razão. Os linguistas não querem saber disso.
Nem populista nem ignorante. Nesta questão, ele se enquadrava em outra categoria: na dos covardes. Ficava entre os que renunciaram ao combate pela língua: conhecia as regras, sabia usá-las, gostaria de usá-las, mas não tinha coragem. No caso da mesóclise, tinha medo de parecer esnobe. Ou conservador. Ou reacionário. A mesóclise virou uma agressão pública. Talvez se arriscasse numa mensagem escrita, a depender do destinatário e do assunto. Na linguagem oral, jamais. Mas não, nem por escrito, em textos mais formais. Definitivamente, a mesóclise foi banida, destronada, se é que em algum tempo ocupou um trono, nem na linguagem escrita é mais admitida. - Você é um professor, lhe dissera certa vez um amigo português da Ilha da Madeira, a propósito de um assunto menos polêmico: o uso da segunda pessoa do singular, o tu. Nem era o da segunda pessoa do plural, o vós. No português do Brasil, a segunda pessoa do plural só é usada no Pai Nosso e na Ave Maria, nos vocativos parlamentares e pronomes de tratamento do alto protocolo (“Vossa Excelência é um crápula!”). Recitadas mecanicamente, ninguém presta muita atenção nos versos da prece e o vós passa batido. A propósito, foi na Ave Maria que introduziram uma expressão bem estranha ao português, que parece uma tradução descuidada do verbo ser, proveniente do francês ou do inglês. Infelizmente, o narrador nada conhece do latim para opinar a respeito, e talvez venha daí a construção esdrúxula. O português possui dois verbos, ser e estar, para comunicar um estado passageiro ou permanente. O francês e o inglês só possuem um (être e to be, respectivamente) para os dois estados. Daí, soa estranha a expressão “o Senhor É convosco”, quando o anjo, que deveria conhecer bem a língua do lugar, poderia ter dito “o Senhor ESTÁ convosco”. Se o caso fosse hoje, mas sobretudo se as moças de nosso tempo ainda engravidassem de deuses, o anjo certamente diria: “Ôi, Maria abençoada, o Senhor está contigo; és bendita entre as mulheres”, e por aí seguiria. Mas sempre se pode argumentar que o anjo, bastante educado, não queria parecer superior ao tratar Maria com uma informalidade que só a intimidade permite ou que, para certa espécie de gente, o senso de superioridade impõe, e por isso foi formal, tratando-a por vós. - Você é um professor!, lembrou-lhe o amigo português, censurando-o por sua covardia. Ele acabara de informar, como justificativa para seu comportamento resignado, que na linguagem diária e coloquial da maior parte dos estados nordestinos não se usa o tu. E quando se usa (esteve tentado a dizer “e quando se o usa”), a concordância se desvia, despreza a segunda pessoa e vai concordar com uma terceira, ali inexistente. “Tu comprasse o livro?”, é assim que se diz corriqueiramente e não “Tu compraste o livro?” E nas escolas parece que os professores da língua acham que há coisas mais importantes a ensinar do que concordância de verbo com sujeito e alguns parecem entender que a língua é um assunto privado, cada um cria a sua e que, nesse caso, é mais fácil inventar do que conhecer para adotar, e desde que o outro entenda, e nem sempre entende, cada um fale como quiser e achar melhor.
O amigo português, também ele professor, não faz concessão: a gramática, em primeiro lugar. Aprender as regras da gramática é aprender as regras do pensamento, completava. Quem quiser ser bem compreendido e falar com desenvoltura, que aprenda as regras da língua. E professor, seja lá do que for, por precisar da língua para se comunicar, deve ser um guardião dela. É obrigação do professor, profissional da palavra, como o advogado, o padre e o político, conhecer a língua para bem usá-la e transmitir aos alunos o respeito por ela. Que é, enfim, o respeito pelo pensamento claro e bem estruturado. Era assim que pensava e era assim que expunha seu pensamento.
Ele próprio tinha provas da correção desse ponto de vista. Muito jovem , aí pelos 13 ou 14 anos, como muitos adolescentes do seu tempo, foi dado a cometer poemas. Parnasianos, por força da insistente herança desse estilo de época. A descoberta, nas aulas do 7º Ano, das regras de colocação de pronomes foi para ele um deslumbramento e, como se dizia, uma mão na roda. Conhecendo a relação dos pronomes oblíquos com os outros termos da frase, ficou mais fácil enquadrar o pensamento na cadência da métrica.
Mas o amigo português não sabia que, no Brasil, a má compreensão de algumas teorias rigorosas e bem fundamentadas, na pedagogia, na sociologia e na ciência política, desembocou em populismos rasteiros, repassados aos alunos.
O ex-presidente Temer foi o último falante brasileiro a utilizar corriqueiramente a mesóclise. Sua simpatia linguística poderia alcançá-lo, não fosse a pequenez ética das deslealdades de Temer e sua defesa anacrônica de um Estado patrimonialista. Decididamente, a mesóclise não os aproximava.


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