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OPINIÃO

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Organização: CLAuder ArCANJo

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A CEIA DA CANAQUINA

CLAuder ArCANJo

escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras. clauderarcanjo@gmail.com

Nem tudo se resumia ao Fantasma de Licânia, havia uma corrente de negacionistas que incentivava o uso indiscriminado da canaquina, como única estratégia de prevenção contra o vírus. Antes que fossem concluídos os estudos que transcorriam na Fazenda Eldorado, alcunhada de “O Butantan de Licânia”, um grupo de extremistas já pregava o seu uso, de forma ampla, geral e irrestrita.

Quando o nosso protofilósofo João Américo soube da artimanha pseudomedicinal, ele concluiu: — Isso deve ser coisa de algum aproveitador cu de cana metido a cientista.

De pronto escalou o Companheiro Acácio para descobrir o quartel-general desses “celerados”: — Acácio, largue Dante e cuide de desvendar essa diabólica comédia. Se eles se precipitarem no uso da canaquina, antes de realizarmos todas as etapas da pesquisa, no lugar da cura poderemos colher o desastre. Em nome da ciência e do bem comum, o futuro de Licânia está nas suas mãos!

Acácio quis argumentar, mas foi demovido pelo candente discurso de João Américo: — Melhor, em sua mente de investigador provinciano. Use e abuse de todos os conhecimentos adquiridos por você no curso por correspondência do Instituto Universal Brasileiro (IUB). Mostre aos seus críticos que é realmente digno da alcunha de O Sherlock Holmes de Licânia, e que você não se trata de um impostor. Ao fim dessa investigação, salvam-se a ciência e o seu prestígio.

Aquelas palavras encheram o Companheiro da fúria do bom combate. Ele inchou o peito e, antes de sair, asseverou: — Saibam todos: o Acácio Holmes voltou!

Companheiro montou no lombo da primeira jumenta selada que encontrou pela frente (tal conversa se dera no terreiro do Eldorado) e saiu com seu trote quixotesco no rumo da cidade.

Dona Maria Djanira logo rezou uma salve-rainha pela sorte dos licanienses. Seu Zequinha, ao canto, ponderava com João Américo se não seria o caso de antecipar a conclusão dos estudos da canaquina, que se davam na fazenda Eldorado. João Américo não quis conversa: — Com a ciência não existem rodeios nem atalhos, caro Zequinha. Quando se serve à ciência admite-se tão somente o reinado das provas às teses levantadas. Cientista que se preza, amigo, não serve a nenhum deus de ocasião. Não se curva a nenhuma crendice, ou “teoria” imposta.

Horas depois, com as partes íntimas sofridas e em fogo, nosso investigador se aproximou dos limites de Licânia. Quis dispensar a jumentinha, batizada de Sancha no caminho, porém se estabelecera entre o muar e o Companheiro uma parceria que não acabaria tão fácil. — Seguirei agora a pé, cara Sancha, preciso me aproximar com a máxima discrição, sozinho. Sua missão já foi cumprida, pelo que lhe sou eternamente grato — soprou-lhe Acácio, enquanto tentava tangê-la no rumo de volta.

Qual nada!, o animal permanecia ao seu lado. Nascia ali algo incomum, ou seja, uma singular dupla investigativa: Companheiro Acácio, o Sherlock Holmes de Licânia, e sua assistente, a jumentinha Sancha. — Tudo bem, marchemos então. Mas nada de zurros, Sancha, a discrição é a maior arma do sucesso de uma boa dupla de detetives.

A jumentinha concordou, elevando e baixando a orelha direita.

Acácio seguiu, acompanhado de perto por Sancha.

No Caneco Amassado Acácio recebeu informações valiosas de onde se encontrava o grupo de canaquinicidas. Este neologismo, caro leitor, nasceu de um discurso inflamado da gestora do prostíbulo, aparteado por um zurro da valente assistente Sancha.

Acácio e Sancha deixaram a noite cair, e depois seguiram para o sítio indicado pelas servidoras do Caneco Amassado. Nas proximidades, os dois colheram os primeiros sinais de que estavam na pista certa: centenas de garrafas de aguardente e caixas de cloroquina vazias no entorno. — Elementar, minha cara Sancha.

A jumentinha arregalou os olhos, postando-se de orelhas em pé na retaguarda de Acácio. Num misto de medo e expectativa.

Quando se aproximaram da parte de trás da velha casa, ouviram uma voz forte, em tom de palavreado messiânico: — Minhas irmãs e meus irmãos, estamos aqui numa experiência humana singular. Com Deus e com a canaquina baniremos esse vírus. — Amém! — respondiamlhe.

Pela fresta da janela, Acácio percebeu que a mistura indicada pelos especialistas estava sendo adulterada: em vez de um litro de pinga para cinco comprimidos de cloroquina, aquele grupo colocava um comprimido em cada dez litros de aguardente. Bem como a prescrição: uma dose grande a cada meia hora.

Não precisou de muito tempo para perceber o objetivo primeiro daquela celebração. O orador conclamava a todos a esvaziarem seus bolsos, contribuindo regiamente para a “Cura de Deus”. — Esta é uma santa ceia, a Ceia da Canaquina. É hora de nos desapegarmos da matéria e do vil dinheiro, só assim seremos dignos da vida em plenitude, saúde e harmonia.

Mulheres e homens, alcoolizados, limpavam suas carteiras e bolsos perante o púlpito. Enquanto novas doses da adulterada canaquina lhes eram servidas como o “vinho da cura”.

Acácio intrometeu-se, disfarçado entre a multidão, e arriscou todas as suas fichas quando, fingindo-se de crédulo, pediu: — Minhas irmãs e meus irmãos em Cristo, sugiro, em louvação por nossa cura, nesta ceia memorável, rezarmos um terço. Aleluia!... — Amém! Amém!... — bradaram os presentes. — Que o nosso venerável orador reze o primeiro mistério! — emendou Acácio.

O dito-cujo nunca rezara uma ave-maria na vida, e cuidou de fugir pelos fundos, levando o saco de dinheiro recolhido em sua canaquinística pregação.

Quando saltou a janela dos fundos, o meliante foi recebido por um coice celestial de nossa jumentinha Sancha.

Dentro de casa, aturdidos, homens e mulheres deram-se conta do engodo. Antes que arrancassem o couro do pregador de araque, Acácio pediu-lhes que, junto com ele, prendessem os demais assistentes, aqueles que manipulavam o falso preparo.

Ainda na madrugada, cabo Jacinto Gamão recebeu a todos de portas abertas na cadeia pública. E, com todo o zelo, amansou o espírito daquela turma de usurpadores da boa-fé dos licanienses, prescrevendo um coice de Sancha e duas admoestações com o cacete de jucá no lombo dos impostores de hora em hora.

Antes que o sol surgisse, deuse um milagre na cadeia de Licânia. Todos clamavam por Cristo: — Valei-nos, nosso Senhor Jesus Cristo! — Para sempre seja louvado! — aparteava-os cabo Jacinto, após mais duas bordoadas e um coice educativos.

Pouco depois Licânia despertava sob a luz de uma alvorada festiva. Ao som do passaredo e da bênção dos sinos da Matriz de Sant’Anna. — Acácio Holmes voltou!

Ilustrativa

DI rE çÃO gE rAl: César Santos DIrEtOr DE rEDAçÃO: César Santos gE rEN tE ADMINIS trA tIVA: Ângela Karina DEP. DE ASSINAtUrAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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