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OPINIÃO

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: CLAUDER ARCANJO

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NENHUM ESPELHO REFLETE O SEU, O MEU, O NOSSO ROSTO

ÂNGELA RODRIGUES GURGEL

Escritora e vice-presidente do ICOP angelargurgel@gmail.com

Ano passado estive em Natal e z uma visita a minha querida e talentosa amiga Rizolete Fernandes. Além de uma agradável tarde regada a café, boa prosa e algumas gargalhadas, saí de lá com um presente na bolsa – o livro Nenhum espelho re ete seu rosto, de Rosângela Vieira Rocha, Editora Arribaçã. Um romance que costura, de forma magistral, duas tramas que se entrelaçam e contam uma história dentro de outra revelando dramas e angústias “reais” enfrentados pelos personagens, mas, também, por um sem-número de outras mulheres que enfrentam os mesmos furacões psicológicos vividos pela personagem central. Não quero aqui fazer uma resenha, não tenho competência para tal, mas falar das impressões sobre a inteligente abordagem da autora acerca do tema; infelizmente, sempre atual – a violência contra a mulher, esse “estelionato sentimental e afetivo” tão presente em nossa sociedade.

A autora, ao longo de toda a narrativa, deixa claro o domínio na técnica da escrita e dos estilos literários e vai esgarçando as fronteiras entre o real e o ctício, construindo sua narrativa com uma linguagem envolvente onde o leitor é arrebatado pelas vozes que oscilam entre discurso direto e indireto e os ecos internos que gritam o mundo lá fora. Tais recursos estéticos conferem à trama uma lógica que nos aju-

Através de uma narrativa sensível e dinâmica, usando uma linguagem burilada pela empatia, Rosângela Vieira Rocha transforma a leitura em lentes cristalinas

da a olhar além dos fatos narrados e perceber o quanto a literatura nos ajuda a perceber o mundo de uma forma mais clara. É como se a cção traduzisse, de forma mais objetiva, a realidade. Os dramas de Helen – personagem central – ressaltam a culpabilidade das vítimas que tentam relativizar os ataques narcisistas e criminosos sofridos por milhares de mulheres. Esse crime, quase invisível aos olhos dela, salta aos olhos do leitor que percebe o quanto a atitude dela reforça a e ciência do ataque psicológico e, de algum modo, tenta inocentar os canalhas agressores, imputando-lhes uma doença psicológica.

Nenhum espelho re ete seu rosto, sem sombra de dúvida, mais que uma narrativa de qualidades literárias elevadas ou um romance visceral que re ete os dramas de sempre, é uma obra que cumpre, de forma brilhante, uma das funções da literatura ao longo da história – a de informar. Mesmo atuando nas esgarçadas teias da cção, ela consegue promover o encontro “entre o ctício e o imaginário”. Livre da plasticidade dos “fatos e notícias” a obra nos propõe a olhar além discurso ctício e provocar um abalo no que está posto, nos tirar da zona de conforto sistematizada pelas estruturas dos achismos e desmascarar a ideia de romantização de relações abusivas, muitas vezes veiculadas em publicações de grande alcance, sem nenhuma preocupação com o caráter criminoso de suas narrativas que legitimam e “suavizam” as violações emocionais, mentais e físicas embotadas nas linguagens clichês, contaminadas pelo discurso piegas que tenta “amenizar” a violência contra a mulher. Não é difícil encontrar essas obras que romantizam ou normalizam o abuso emocional e físico e tentam fazer o inaceitável parecer uma escolha pessoal, um acordo entre duas pessoas, sem nenhuma ligação com o contexto histórico, social, econômico e cultural que favorece a violência contra a mulher. Que vão legitimando, no imaginário feminino, a aceitação da violência como ideia de amor romântico. O livro de Rosângela apresenta aspectos fundamentais dessa visão distorcida dos “fatos” e nos leva à compreensão das nuances psicológicas mais sutis dessa violência.

Através de uma narrativa sensível e dinâmica, usando uma linguagem burilada pela empatia, Rosângela Vieira Rocha transforma a leitura em lentes cristalinas que revelam os obscuros véus sociais que protegem a milenar e sutil violência promovida pela cultura da banalização dos abusos praticados contra a mulher. Ela cumpre bem o papel de usar a literatura para informar, sem deixar de ser arte.

DI RE ÇÃO GE RAL: Cé sar San tos DIRETOR DE REDAÇÃO: César Santos GE REN TE AD MI NIS TRA TI VA: Ân ge la Ka ri na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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