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OPINIÃO

ESPaÇO JORNaliSTa maRTiNS DE VaSCONCElOS

Organização: ClaUDER aRCaNJO

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aVida coM o coMPanheiro de todaS aS horaS

DUlCE CaValCaNTE

Escritora, autora das obras Bicicletas de papel e ...um chão para memórias soltas dulcinea.acs@gmail.com

Às vezes fico olhando Edgar e me ocorre um frio na espinha, uma lágrima teimosa me surge, sem o devido consentimento destes olhos esquivos. O que fazer se a nostalgia é uma companheira que, de tão constante, realmente se tornou inseparável? Nada, apenas entregá-lo nas mãos d’Aquele que sabe de todas as coisas. Essas divagações surgem mais à noite, e nós nos assemelhamos mais quando o lusco-fusco e as sombras nos igualam nas diferenças ou nos afastam da realidade e não deixam nenhuma dúvida. Estou hoje vivendo tal realidade solitária? Nem tanto. Edgar e eu, penso que, o que foi de muita alegria e companheirismo, está se transformando lentamente, evoluindo para um plano em que o humano e o espiritual se equivalem na incapacidade de aceitar e entender. À noite essa transformação é mais evidente e me comove tão naturalmente quanto se fosse palpável tal divagação. Andando pela sala, procurando algo, é quando o Edgar mais se parece comigo, meio perdida em infinitos, turbulentos embora silenciosos pensamentos. Vejo-o agora trêmulo, indeciso. Cambaleante. E como eu, tonta, cuidadosa. Também cambaleante, vagueio pela sala, me apoiando no espaldar das cadeiras e sofás, a fim de executar as últimas tarefas, mínimas, mas importantes para me recolher com independência.

Ele já entende esses meros movimentos como um convite, e é o primeiro a chegar no meu quarto e ficar lá no cantinho preferido, que ele entende como seu. Abro o sorriso e digo cá com os meus botões: meu companheiro fiel, aparentemente conformado com as comorbidades tão suas. E tão minhas, um tanto iguais, nas quais as peculiaridades se tocam.

Calar é virtude dos velhos, eu penso assim, e cada dia comprovo, quando me vejo calada. Ensimesmada ante velhas e novas circunstâncias, para não ser incomodada ou ferida pelas desaprovações. Com o Edgar não é diferente, daí ele torna-se cada vez mais sombra, cada vez mais mudo. Invisível, como sinto tantas vezes. Antes as manifestações, como o seu rabo feliz e os latidos de alegria pela casa, eram uma constante. Hoje, apenas grunhidos quase inaudíveis, mascarando a alegria ou a externar as dores da velhice, porque envelhecer dói.

A saúde dele estar a debilitar-se muito rápido nos dois últimos meses, embora nossos cuidados tenham sido redobrados. Infelizmente a vida nos aponta toda a veracidade do quanto não tem volta, a finitude. Solidão e silêncio, um par de asas que me acolhe e resguarda os pensamentos. Todos sabemos dessas limitações e abstraímos. Nesses momentos eu tenho a sensação do quanto nos parecemos, levando em conta todas as similitudes a nos separar as castas. Talvez achem que são delírios de uma cronista, porém não me engano; há, com certeza, mais evidência nas parecenças nesse plano do racional ao irracional, como divide a ciência.

Não quero concordar ou discordar, apenas contar esta história do meu jeito. As discórdias nas opiniões eu as aceito e tiro proveito do que realmente é razoável. Quantas vezes suspirei de tristeza, sendo essa tristeza testemunha de uma condição muito mais profunda que não me cabe analisar, pois foge a um consenso aceitável. Ah! meu amigo não me larga, sempre perto, sempre ao redor da minha cadeira ou no pé da cama onde estou, em tempo de me derrubar quando levanto para qualquer coisa. Quando vou beber água, ele me acompanha, sendo dia, sendo madrugada. Na minha chegada de viagens e passeios, ele grunhe, talvez um misto de dor, entrelaçada com alívio, como se eu pudesse ser a solução para os seus sofrimentos. (É risível tal pensamento?) Também acho; no entanto, são divagações, como falei.

Antes nós estávamos sempre prontos a dar uma volta no quarteirão da minha rua. Hoje nos foi vetado esse prazer; eu, por não assegurar a eficácia de uma caminhada sozinha, sem cair, e ele por eu não me responsabilizar pela sua segurança, pois apesar de velhinho ele ainda tem força, e eu não o domino. Pobre de nós! Será?

Não somos mais apoio físico um do outro, mas apoio de outra natureza, que também me foge à racionalidade e se dá no plano dos questionamentos mais ilógicos; a vida é assim, surpreendente, sem roteiro, sem nexo, para uma história que embora me pareça comum e sem graça, embora me encha dessas melancólicas e gratas constatações.

Estamos aqui, então vamos aguardar, eu e o meu companheiro Edgar, o que o destino nos preparou.

direção geral: César Santos diretor de redação: César Santos gerente ad Mi niS tra ti Va: Ângela Karina deP. de aSSinatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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