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OPINIÃO

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POLÍTICA

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organização: CLauDER aRCaNJo

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JAZZ, O SÉTIMO INSTRUMENTO DE JÔ

EDMíLsoN CaMINha

Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com

Acordo no dia 5 de agosto com a notícia de que Jô Soares morrera. Vou à minha coleção de CDs (assim como o humorista, Ruy Castro e eu ainda os compramos) e pego para ouvir Jô Soares e o Sexteto, gravado ao vivo na casa de espetáculos Tom Brasil, em SP, nos dias 17 e 18 de novembro de 1999. Compunham o grupo Jô Soares (bongô e piccolo trumpet), Osmar (piano), bateria (Miltinho), baixo (Bira), sax e flauta (Derico), guitarra (Tomati) e trompete (Chiquinho). Além de comediante, ator, roteirista, diretor de teatro, escritor e artista plástico, esse verdadeiro “homem dos sete instrumentos” era, também, profundo conhecedor de jazz: de 1988 a 1996, apresentou, na Rádio Eldorado de São Paulo, o programa Jô Soares Jam Session, de segunda a sexta-feira, das 17 às 18h. Foi o seu batismo no rádio, como disse na estreia do programa: diferentemente da maioria dos colegas, que começou nos estúdios radiofônicos e terminou na televisão, ele fizera o caminho contrário... Com a leveza de grande comunicador e a didática de mestre que conquista os alunos, deu verdadeiras aulas sobre a música de Louis Armstrong, Billie Holiday, Benny Goodman, Ella Fitzgerald, Robert Johnson, Duke Ellington, Sarah Vaughan, Muddy Waters, Count Basie, B. B. King, Miles Davis e outras lendas do jazz e do blues.

Não poderia ser outro, diria um astrólogo, o destino de José Eugênio Soares: no disco, depois de cantar o clássico “Summertime”, Jô conta para a plateia que nascera em 16 de janeiro de 1938, um domingo, dia em que, na distante Nova York, o clarinetista e bandleader Benny Goodman apresentava o primeiro concerto de jazz no Carnegie Hall, até então um templo da música erudita. No exato momento em que viera ao mundo, às 10h da noite, a big band tocava “Don’t be that way”, com Babe Russin no sax tenor, Harry James no trompete e Gene Krupa na bateria. Mera coincidência, dirá quem não crê que essa trilha sonora já lhe vaticinava a paixão pelo jazz...

Em Jô Soares e o Sexteto, ouvem-se obras-primas como “Night in Tunisia”, “On the sunny side of street”, “Caravan” e “Stormy monday blues”. Ao anunciar “Let’s get lost”, Jô lembra como o estilo de cantar de Chet Baker influenciou nosso João Gilberto; “St. James Infermary”, comenta, é um dos tantos blues inspirados na pobreza e no sofrimento dos negros americanos; “Makin’whoopie” dá-lhe a oportunidade de dizer que o sentido da expressão, em inglês, é “fazer amor”. O espetáculo encerra-se com ele a cantar a engenhosa tradução que fez de “One meat ball”, em que a almôndega da letra passa a ser croquete, em português.

Esse, o lado menos conhecido do homem que tive o privilégio de conhecer, quando me entrevistou em 2016. Abaixo, a crônica que à época escrevi, “A solidão no Programa do Jô”, que acabou por dar título ao livro em que se encontra, publicado pela Tagore Editora em 2019.

Então fotógrafa do Gshow, o site de entretenimento da TV Globo, minha filha Carol Caminha sugeriu aos colegas do Programa do Jô: “Por que vocês não entrevistam papai? Ele tem muita coisa interessante pra contar.” Na semana seguinte, recebo telefonema da produção, para uma longa pré-entrevista com perguntas sobre minha experiência de ghost writer de deputados, a relação com Drummond, os livros que publiquei... Dias depois, a informação de que Jô autorizara o convite, um produtor cuidaria da emissão de passagens e da reserva do hotel – as despesas com acompanhantes, Ana Maria e nossa filha Mariana, seriam, claro, por nossa conta. O motorista à espera no aeroporto lembra, a caminho do hotel, o comentário que há tempos lhe fizera Ariano Suassuna: “De tudo que eu queria na vida, só faltava ser entrevistado por Jô, agora posso morrer em paz...” Não me sentia assim tão realizado, mas confesso que estar com ele era um dos meus desejos.

Como chegaríamos ao estúdio às quatro da tarde, haveria tempo de uma soneca após o almoço, as meninas ansiosas, o senhor não está tenso? “Eu não, lá só acontecerão coisas boas. Nervoso estaria se fosse interrogado por Sérgio Moro, como réu na Lava Jato...” No camarim, mesa com frutas, doces, café e um termo a ser assinado, para o livre uso da gravação. O outro convidado, naquele dia, é Tony Ramos, com quem converso à porta da sala de maquiagem, para uma escova no cabelo e a base que compensa o brilho da pele. Homem culto, da geração de atores que conhecem as grandes obras literárias, lembro-lhe duas minisséries: Grande sertão: veredas, de 1985, em que interpretou o jagunço Riobaldo, e, três anos depois, O primo Basílio, em que fez Jorge, casado com Luísa. A conversa com o Conselheiro Acácio (papel do também excepcional Sérgio Viotti), quando lê as cartas que confirmam a traição da mulher, vale, digo-lhe, por todo um curso de teatro, pelo talento com que nos transmite a dor de saber-se enganado e o amor que o faria perdoá-la. Chega a hora. Celular desligado, microfone na lapela, teste de som, tudo ok. Uma produtora me acompanha pelo estreito corredor nos fundos que leva ao palco, à frente do cenário os músicos, mais adiante a bancada em que estarei. “Vou deixá-lo só, o senhor fica aqui, em silêncio, quando for anunciado entra, cumprimenta o Jô e se senta próximo a ele. Boa sorte.” Foram os minutos mais solitários de minha vida, eu comigo, ninguém mais, dependeria só de mim sair-me bem no principal talk show da televisão brasileira, quantas figuras importantes passaram pelo programa, esperaram o momento de entrar exatamente ali, onde me encontr... “Atenção! Silêncio!” E a voz do apresentador: “Ele já escreveu mais de dois mil discursos para parlamentares, em 22 anos de trabalho. Eu vou conversar com o jornalista Edmílson Caminha. Vamos lá!” Ouço a música, entro e abraço o Jô, que me parece bem, melhor do que no vídeo, para os 80 anos que fará em breve. Eu levara alguns dos livros que publiquei, entregues pelo assistente de palco, e um exemplar do romance Assassinatos na Academia Brasileira de Letras, para que me autografasse, o que fez ali mesmo.

Quando pegou o meu No Pen Clube do Brasil, a Casa de Villaça, começamos a falar sobre o memorialista de O nariz do morto, entrevistado em 1993. Com a importância e o prestígio que o consagram, Jô ignora roteiros e vai por onde quiser. A pergunta no teleprompter, vejo, era qual o discurso mais difícil que eu escrevera para um deputado, mas lhe pareceu melhor trocarmos ideias sobre Antonio Carlos Villaça, a vida que viveu e os livros que deixou, se era verdade que, ao abandonar o mosteiro, decidira nunca mais tomar banho... Por haver entrevistado muita gente, logo me dei conta do desvio que ameaçava a conversa, para a higiene precária do escritor, o mau cheiro percebido por quem dele se aproximava, e cuidadosamente mudei de assunto. O saber de experiência feito mostra que o rumo e o teor de uma entrevista, o sucesso ou o fracasso que possa colher dependem, claro, do entrevistador, mas também, e muito, do entrevistado, que se deixa ou não levar pela corrente, que se dispõe, ou não, a jogar a partida. Apresentador do 60 minutes, espécie de Programa do Jô da rede norteamericana CBS, dizia o jornalista Mike Wallace que não há perguntas indiscretas: as respostas é que podem ser...

Diferentemente do que me alertavam os amigos, Jô não quis falar mais do que eu, não me cortou a palavra, a conversa fluiu bem por quase 19 minutos, com tempo para a literatura e para as tantas vezes em que, na Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, escrevi a favor de algo e, horas depois, contra. Simpático, o apresentador leu, no fim do programa, o poema com que Carlos Drummond de Andrade presenteou, em 1984, a recém-nascida Carol Caminha. “Um fofo”, como diz a homenageada.

Gostaria de ter dito publicamente a Jô, na última temporada do programa, o quanto ele marcou o dia a dia de milhões de brasileiros, ligados na televisão para ver Sebá, Gardelón, Reizinho, Capitão Gay e seus famosos bordões: “Você não quer que eu volte!”, “Muy amigo...”, “Que é que eu sou, que é que eu sou, que é que eu sou? Sois rei! Sois rei! Sois rei!”... Abençoados por Deus, os comediantes sabem que há uma felicidade maior do que rir: é fazer rir, como Jô Soares com seu humor pleno de criatividade, de riqueza humana e de inteligência. Pelo muito que nos alegrou a vida, deveria responder à despedida com que nos dava boa-noite e carinhosamente mandar um “beijo pro Gordo!”

DI RE çÃO gE Ral: César Santos DIRETOR DE REDaçÃO: César Santos gE REN TE aDMINISTRa TIVa: Ângela Karina DEP. DE aSSINaTURaS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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