5 minute read

OPINIÃO

eSPaÇo jornaLiSTa MarTinS de VaSConCeLoS

organização: CLauder arCanjo

Advertisement

aéCio Cândido

professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com

Quando criança, minha mãe nos levava, a mim e irmãos, a visitar nossas tias nos sítios São Domingos e Gurjaú, distantes 10 e 12 quilômetros da cidade de Cuité. Íamos a pé, a viagem era uma pequena aventura e um grande exercício de sociabilidade camponesa. Ao longo do caminho, entrávamos em dezenas de casas e em todas elas experimentávamos a acolhida farta, em sentimentos e comida.

No último terço do caminho, cruzávamos a divisa entre os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Era uma linha imaginária, como todas as fronteiras, localizada no cabeço de uma ladeira. Brincávamos, postados em estados diferentes, experimentando um diálogo de gritos, como a viver uma impossibilidade. Não havia diferenças profundas entre os dois lugares: a mesma geografia, o mesmo solo, fauna e flora iguais. As divisões geopolíticas nem sempre expressam diferenças geográficas.

E algumas diferenças geográficas, leves ou acentuadas, ocorrem sem divisões geopolíticas. A chã da Serra de Cuité, plana e de solo profundo, diferenciava-se de outras unidades geográficas do seu entorno. Maria Beato, nossa vizinha, referia-se a seu sítio, onde tinha roçado de milho, feijão, fava e outras miudezas, como “A Grota”. Seu sítio ficava “na Grota”. Era uma região nos contrafortes da serra, de relevo e solo diferentes dos da chã. Minha avó chamava o povo que vivia a alguns quilômetros do sopé da serra de “povo da Caatinga”. Viviam “na Caatinga”. Eram expressões correntes: “Maria hoje foi trabalhar na grota”. Ou “As terras da caatinga são boas pra plantar pinha”.

As divisões geopolíticas de um mesmo território têm algo

AO CONTRÁRIO DA JUVENTUDE, A VELHICE NÃO É PASSAGEIRA

Imagem meramente ilustrativa

em comum com as fases da vida: são importantes como sinalização, mas não indicam mudanças de vulto, pelo menos num primeiro instante.

Para quem espera mudança brusca, é meio decepcionante completar 18 anos, atingir a maioridade: não acontece muita coisa. Do mesmo modo, chegar aos 60 anos, e “oficialmente” cruzar a fronteira da velhice, não traz decepção, mas algum espanto. A velhice não chega aos 60, bruscamente; ela vai chegando, devagar, porém sem interromper o passo.

Aos 60 anos não me senti velho. Nem me sinto agora, aos 66. Sinto-me envelhecendo, e os sinais são muitos. Senti-me, aos 60, inteiro fisicamente, com o corpo funcionando sob o domínio da vontade. Se a vontade era subir uma escada, apressar o passo, curvar-se para apanhar algo no chão, o corpo atendia, obedientemente. Três ou quatro anos mais à frente, começa a aparecer uma ou outra dorzinha insistente. Branda, contudo insistente. Uma dor não precisa ser intensa para ser sentida, basta que um órgão se faça notar para que o incômodo se gere. Não percebemos que temos dedos, mãos ou joelhos, até que eles comecem a doer, mesmo que delicadamente. A percepção do órgão, a consciência de que ele existe e se localiza numa dada área da anatomia, é, por si só, incômoda. O órgão falha em sua normalidade, que é o anonimato. Só percebemos que andar, sentar-se ou estirar a mão para apanhar alguma coisa são movimentos que se decompõem, quando a sequência apresenta algum problema. Quando uma pontada na articulação ou em algum tecido nos faz interromper o movimento, isto nos traz à consciência a complexidade dele e os passos necessários para realizá-lo. O movimento, que era automático, precisa agora começar do zero, partindo do desejo e projetando-se na sequência que o contém: para pegar algo, preciso agachar-me, mas devagarinho, uma perna não muito distante da outra, estender a mão, projetar os dedos que segurarão o objeto... A racionalização de um ou outro movimento antes automático, e que se dava à revelia da consciência, é um dos incômodos sinais da velhice.

Mas se por um lado o corpo se torna dependente de um aprendizado novo em relação a alguns movimentos, a mente, levando o corpo junto, se liberta do peso de alguns instintos, como o sexual, que não desaparece, mas afrouxa consideravelmente suas garras. Ele não pesa mais tanto nas decisões, na constituição dos prazeres e na organização do tempo como pesou em outras épocas. O tempo agora se abre para outras fruições, a maioria delas gratuitas, oferecidas pela natureza e pelo convívio com as pessoas. Muitas emoções vêm do sol e das cores que ele espalha; da tarde, da manhã, do caminhar das pessoas, do traçado das ruas, da inventividade das fachadas, do florescimento das árvores, da harmonia dos jardins, das conversas com as pessoas – muito das conversas com as pessoas – do observar as crianças e os velhos, do enredo dos livros – muito do enredo dos livros. O mundo contém uma beleza que parecia escondida e, agora, se revela com esplendor, mas sem alarido: uma praia, a linha do horizonte, o movimento das águas, o colorido do céu, a granulação da areia, a majestade da montanha, a desenvoltura da planície; a alegria dos encontros, a felicidade alheia – e a nossa, claro –; tudo é motivo de êxtase, tudo é espetáculo disponível aos olhos que não se cansam de ver.

O declínio do corpo encontra compensação no despertar da mente para muitas novas sensações. Claro que quando o corpo não atende mais aos comandos do dono, ou atende em proporções ínfimas, tudo que poderia ser graça deixa de sê-lo. Ou, que sei eu, outras percepções mais sutis e entranhadas nas coisas se revelam e dão um colorido a um corpo que quase já não se movimenta. Diz um verso do bois-de-reis que “a pior vida do mundo é melhor do que morrer”. A vida, enquanto corre, mesmo lentamente, descobre vias por onde possa correr e finda por achar que “tudo vale a pena se alma não é pequena”, e que a alma pode se reinventar com as debilidades do corpo. Talvez seja por isso que a eutanásia não vira uma epidemia.

De todo modo, com “a dor e a delícia” que cada um conhece bem ao ser o que é, a velhice é um assunto de velhos. Um jovem, por mais sensível e inteligente que seja, não pode saber da velhice senão suas generalidades. Um jovem não se antevê velho. E é bom que assim seja, porque, ao contrário da juventude, a velhice não é passageira e, depois de se entrar nela, só se escapa com a morte.

DI RE çÃO GE RAL: César santos DIRETOR DE REDAçÃO: César santos GE REN TE ADMINISTRATIVA: Ângela Karina DEP. DE ASSINATURAS: alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

This article is from: