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OPINIÃO
from Jornal De Fato
eSPaÇo jornaLiSTa MarTinS de VaSConCeLoS
organização: CLauder arCanjo
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aéCio Cândido
professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com
Quando criança, minha mãe nos levava, a mim e irmãos, a visitar nossas tias nos sítios São Domingos e Gurjaú, distantes 10 e 12 quilômetros da cidade de Cuité. Íamos a pé, a viagem era uma pequena aventura e um grande exercício de sociabilidade camponesa. Ao longo do caminho, entrávamos em dezenas de casas e em todas elas experimentávamos a acolhida farta, em sentimentos e comida.
No último terço do caminho, cruzávamos a divisa entre os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Era uma linha imaginária, como todas as fronteiras, localizada no cabeço de uma ladeira. Brincávamos, postados em estados diferentes, experimentando um diálogo de gritos, como a viver uma impossibilidade. Não havia diferenças profundas entre os dois lugares: a mesma geografia, o mesmo solo, fauna e flora iguais. As divisões geopolíticas nem sempre expressam diferenças geográficas.
E algumas diferenças geográficas, leves ou acentuadas, ocorrem sem divisões geopolíticas. A chã da Serra de Cuité, plana e de solo profundo, diferenciava-se de outras unidades geográficas do seu entorno. Maria Beato, nossa vizinha, referia-se a seu sítio, onde tinha roçado de milho, feijão, fava e outras miudezas, como “A Grota”. Seu sítio ficava “na Grota”. Era uma região nos contrafortes da serra, de relevo e solo diferentes dos da chã. Minha avó chamava o povo que vivia a alguns quilômetros do sopé da serra de “povo da Caatinga”. Viviam “na Caatinga”. Eram expressões correntes: “Maria hoje foi trabalhar na grota”. Ou “As terras da caatinga são boas pra plantar pinha”.
As divisões geopolíticas de um mesmo território têm algo

Imagem meramente ilustrativa
em comum com as fases da vida: são importantes como sinalização, mas não indicam mudanças de vulto, pelo menos num primeiro instante.
Para quem espera mudança brusca, é meio decepcionante completar 18 anos, atingir a maioridade: não acontece muita coisa. Do mesmo modo, chegar aos 60 anos, e “oficialmente” cruzar a fronteira da velhice, não traz decepção, mas algum espanto. A velhice não chega aos 60, bruscamente; ela vai chegando, devagar, porém sem interromper o passo.
Aos 60 anos não me senti velho. Nem me sinto agora, aos 66. Sinto-me envelhecendo, e os sinais são muitos. Senti-me, aos 60, inteiro fisicamente, com o corpo funcionando sob o domínio da vontade. Se a vontade era subir uma escada, apressar o passo, curvar-se para apanhar algo no chão, o corpo atendia, obedientemente. Três ou quatro anos mais à frente, começa a aparecer uma ou outra dorzinha insistente. Branda, contudo insistente. Uma dor não precisa ser intensa para ser sentida, basta que um órgão se faça notar para que o incômodo se gere. Não percebemos que temos dedos, mãos ou joelhos, até que eles comecem a doer, mesmo que delicadamente. A percepção do órgão, a consciência de que ele existe e se localiza numa dada área da anatomia, é, por si só, incômoda. O órgão falha em sua normalidade, que é o anonimato. Só percebemos que andar, sentar-se ou estirar a mão para apanhar alguma coisa são movimentos que se decompõem, quando a sequência apresenta algum problema. Quando uma pontada na articulação ou em algum tecido nos faz interromper o movimento, isto nos traz à consciência a complexidade dele e os passos necessários para realizá-lo. O movimento, que era automático, precisa agora começar do zero, partindo do desejo e projetando-se na sequência que o contém: para pegar algo, preciso agachar-me, mas devagarinho, uma perna não muito distante da outra, estender a mão, projetar os dedos que segurarão o objeto... A racionalização de um ou outro movimento antes automático, e que se dava à revelia da consciência, é um dos incômodos sinais da velhice.
Mas se por um lado o corpo se torna dependente de um aprendizado novo em relação a alguns movimentos, a mente, levando o corpo junto, se liberta do peso de alguns instintos, como o sexual, que não desaparece, mas afrouxa consideravelmente suas garras. Ele não pesa mais tanto nas decisões, na constituição dos prazeres e na organização do tempo como pesou em outras épocas. O tempo agora se abre para outras fruições, a maioria delas gratuitas, oferecidas pela natureza e pelo convívio com as pessoas. Muitas emoções vêm do sol e das cores que ele espalha; da tarde, da manhã, do caminhar das pessoas, do traçado das ruas, da inventividade das fachadas, do florescimento das árvores, da harmonia dos jardins, das conversas com as pessoas – muito das conversas com as pessoas – do observar as crianças e os velhos, do enredo dos livros – muito do enredo dos livros. O mundo contém uma beleza que parecia escondida e, agora, se revela com esplendor, mas sem alarido: uma praia, a linha do horizonte, o movimento das águas, o colorido do céu, a granulação da areia, a majestade da montanha, a desenvoltura da planície; a alegria dos encontros, a felicidade alheia – e a nossa, claro –; tudo é motivo de êxtase, tudo é espetáculo disponível aos olhos que não se cansam de ver.
O declínio do corpo encontra compensação no despertar da mente para muitas novas sensações. Claro que quando o corpo não atende mais aos comandos do dono, ou atende em proporções ínfimas, tudo que poderia ser graça deixa de sê-lo. Ou, que sei eu, outras percepções mais sutis e entranhadas nas coisas se revelam e dão um colorido a um corpo que quase já não se movimenta. Diz um verso do bois-de-reis que “a pior vida do mundo é melhor do que morrer”. A vida, enquanto corre, mesmo lentamente, descobre vias por onde possa correr e finda por achar que “tudo vale a pena se alma não é pequena”, e que a alma pode se reinventar com as debilidades do corpo. Talvez seja por isso que a eutanásia não vira uma epidemia.
De todo modo, com “a dor e a delícia” que cada um conhece bem ao ser o que é, a velhice é um assunto de velhos. Um jovem, por mais sensível e inteligente que seja, não pode saber da velhice senão suas generalidades. Um jovem não se antevê velho. E é bom que assim seja, porque, ao contrário da juventude, a velhice não é passageira e, depois de se entrar nela, só se escapa com a morte.

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