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OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPAÇo JorNALISTA mArTINS DE VASCoNCELoS
organização: CLAuDEr ArCANJo
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ANNA GrIGOrIevNA DoStoiEvSkAiA, AFiELESCUDEiRA
VErA LúCIA DE oLIVEIrA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
No dia 24 de dezembro de 1877, Fiodor Mihailovicht Dostoievski anotou no seu diário as tarefas literárias que desejaria realizar:
“Memento – Para a vida inteira 1. Escrever o Cândido russo. 2. Escrever um livro sobre Jesus Cristo. 3. Escrever minhas recordações. 1. Escrever o poema Sorokovi-
(Tudo isso, além do último romance e do número “Diário”, ou seja, no mínimo dez anos de trabalho, e eu agora estou com 56 anos)”.
Mas a vida não deixou. Morreu três anos depois, no dia 28 de janeiro de 1881, quando completaria 60 anos. Deixou mulher, dois filhos e uma obra gigantesca, maravilhosa. Morreu no auge da popularidade e reconhecimento, o que o encheu de alegria. Uma vida interrompida pelo enfisema, mal responsável por sua morte. Morreu em casa, cercado pela família adorada, pelos amigos e admiradores. Teve funeral grandioso acompanhado por uma multidão comovida pela partida do maior dos mestres compatriotas. São Petersburgo parou para ver passar o cortejo e dar o último adeus a seu mestre.
Todos os detalhes da vida e da morte do grande autor estão no livro Meu marido Dostoievski, de Anna Grigorievna Dostoievskaia (RJ: Mauad, 1999. Tradução de Zoia Prestes), relato autobiográfico que encanta o leitor pela doçura, simplicidade e seriedade. Desde o seu nascimento, infância, adolescência, formação como estenógrafa até o encontro com o célebre escritor, para quem trabalharia e em seguida se tornaria esposa, Ania, como era carinhosamente chamada por Dostoievski, nos conta, nos mínimos detalhes, cronologicamente, como viveram e sobreviveram a todas as intempéries. Anna foi um anjo que caiu do céu e teve papel decisivo na vida sofrida e na obra monumental do escritor russo, pois “ele me reverenciava como se eu fosse um ser especial, criado especialmente para ele.” (p. 333). E foi. Ela organizou sua vida cotidiana, deu-lhe tranquilidade para criar sua literatura e deu-lhe filhos. Foram quatro, mas somente dois vingaram. Viveram juntos e felizes por catorze anos. Ler esse relato é entrar na casa da família, acompanhar as inúmeras viagens e a penúria por que passaram, muitas vezes sem saber o que comeriam no dia seguinte. Penhoravam tudo: casacos, saias, objetos da casa como vasos e peças queridas, para comer. Dostoievski assinava promissórias mil, fazia empréstimos com amigos e familiares da esposa, pegava adiantamento com as editoras numa tentativa desesperada de manter a vida de escritor e a sobrevivência não só do seu núcleo familiar, como também do enteado folgado (do primeiro casamento) e da viúva e filhos do irmão mais velho Mikhail, adorado por ele. Responsabilizou-se por todos, como homem honrado que era, ele que tinha saúde muito frágil, que sofreu cerca de duzentos ataques epiléticos e tinha dificuldade para respirar devido ao enfisema pulmonar. Viu a morte rondar a família com perdas dolorosas, como a da primogênita Sofia de apenas três meses, em meio à solidão do casal na Suíça, e, depois, do pequeno Alexei, na Rússia. Não dá para imaginar a dor dos pais, sobretudo a do superemotivo Dostoievski. Lutou mesmo assim incansavelmente com as palavras, sua razão de viver existencialmente, e seu ganha-pão, até o momento em que a pena caiu de sua mão para sempre. Morreu trabalhando.
Anna Griegorievna viveu muito para contar. Nascida em 1846, morreu em 1918 em meio à convulsão social da Revolução Russa, deflagrada um ano antes. Assim, já com mais de setenta anos, atendendo às muitas solicitações dos amigos e escritores, escreve esse livro precioso, despretensioso, esclarecedor e que demove inverdades sobre o marido tão amado e admirado por ela, a quem compreendeu como nenhuma outra pessoa seria capaz; foi sua “fiel escudeira”, como a chamava. Ele que era apaixonado por Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança, que também lutou contra os moinhos de vento e contra os inimigos e invejosos do próprio país, vítima que foi muitas vezes do “fogo amigo”, de escritores que frequentaram a sua mesa por décadas, como Strakhov, e que, após a sua morte, denegriram a sua arte e a sua pessoa. (Dizem que a Gratidão é a musa que morre primeiro.) Mas a esposa o defendeu bravamente.
Anna Grigorievna nos conta que nasceu em São Petersburgo na casa que pertencia ao Mosteiro de Alexandre Nevski, onde se casaram seus pais e onde está enterrado o inesquecível marido Dostoievski. Esse Mosteiro se tornaria o seu lugar mais querido. Filha de mãe sueca de mentalidade moderna e liberal, teve boa educação e, desde muito jovem, quis ter seu trabalho e independência financeira. Fez curso de estenografia, destacando-se, sendo indicada pelo professor para trabalhar com o célebre escritor (e viúvo) Dostoievski, de quem já era leitora apaixonada. E iniciou com sucesso: conseguiu ajudá-lo anotando o ditado e revisando o romance O jogador, num ritmo frenético, em exatos vinte e seis dias no mês de outubro de 1866, para cumprir o contrato draconiano de seu editor. Esse romance, considerado menor pela crítica, na verdade é muito rico por seu aspecto autobiográfico, pois nele Dostoievski se expõe corajosamente como jogador viciado na roleta durante muitos anos. Vício que a inteligente Anna Griegorievna compreendeu e aceitou, pois percebeu que, após perder no jogo, ele se empenhava dobrado na sua criação literária trabalhando exaustivamente para compensar o prejuízo financeiro e também para se penitenciar moralmente, numa reparação que mantinha a sua saúde mental e o compromisso com a família. Ela compreendeu com muita perspicácia o seu funcionamento psíquico.
Dostoievski foi muito explorado por editores que se aproveitavam de sua necessidade de dinheiro e lhe pagavam o mínimo que podiam, como diz a esposa:

“As dívidas assumidas por Fiodor Mikhailovitch o prejudicavam economicamente também: ao mesmo tempo em que os abastados escritores (Turguêniev, Tolstoi, Gontcharov) sabiam que seus romances seriam disputados por várias revistas e recebiam quinhentos rublos por folha impressa, o pobre Dostoievski tinha que oferecer ele mesmo seu trabalho. E como quem oferece sempre perde, ele recebia bem menos das mesmas revistas. Assim ele recebeu pelos romances ‘Crime e castigo’, ‘O idiota’ e ‘Os demônios’ cento e cinquenta rublos por folha impressa: pelo romance ‘O adolescente’ – duzentos e cinquenta rublos e somente pelo último romance, ‘Os irmãos Karamazov’, trezentos rublos.” (p. 171).
Como não tinha casa própria, o casal se mudava com frequência, de apartamento em apartamento, sem contar os quatro anos de andanças pela Suíça, Alemanha e Itália, sempre escrevendo, enviando os textos para a Rússia e aguardando pagamento. Mesmo assim, foram anos de felicidade conjugal, segundo a fiel escudeira que só queria viver ao lado do marido carinhoso. E já na Rússia, viajavam com frequência para o interior seguindo recomendações médicas em busca de tratamento para a saúde cada vez mais frágil de Dostoievski.
Finalmente, Ania, cansada do jogo sujo dos editores, foi à luta, inteirando-se pouco a pouco do funcionamento do mercado editorial e tornou-se, com sucesso, editora das obras do marido, vendendo-as diretamente, eliminando os atravessadores. Essa mulher admirável conseguiu estabilizar as contas da família, criou o casal de filhos e foi admirada e amada pelos amigos e familiares. Como diz a jornalista Cecília Lopes no belo prefácio do livro: “Anna Grigorievna foi uma prova de que as mulheres melhoram o mundo.” Pois, ao lado dela “Dostoievsvi escreveu livros que serão lidos por toda a eternidade.”

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