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OPINIÃO
from Jornal de Fato
EsPAÇo JorNALIstA mArtINs DE VAsCoNCELos
organização: CLAuDEr ArCANJo
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AcácIO, um cOmPANheIrO de tOdAs As hOrAs
VErA LúCIA DE oLIVEIrA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
A leitura de um livro começa pela capa. É ela o olho que pisca para o leitor na vitrine da livraria pedindo para ser comprado. É ela que sugere o que está escondido nas páginas a ler. É como a embalagem que diz muito do presente ou do perfume. Assim as capas dos livros.
Pois é já na capa que percebemos o sujeito esquisitão que vamos encontrar nas páginas do mais recente livro de Clauder Arcanjo: A razão de Acácio (Taubaté/SP: Letra Selvagem, 2022), novela em capítulos, à maneira dos seriados.
Casmurro, fechado em si mesmo, contido – é o que parece sugerir a excelente pintura de Júlio Pomar, que tem algo de “O homem amarelo”, de Anita Malfatti, cuja expressão sombria revela o seu desconforto existencial. Já o chapéu, os óculos, o bigode e o perfil magro têm algo de Fernando Pessoa, o fabuloso poeta dos heterônimos. Esse é o Companheiro Acácio, personagem que dá título ao livro e protagoniza as histórias. Título, aliás, que faz pensar em A idade da razão, de Sartre. Mas a identificação para aí, pois o Companheiro Acácio vai da razão à desrazão numa fração de segundos. E, a não ser o nome, nenhuma identificação também com o Conselheiro Acácio de O primo Basílio, de Eça de Queiroz, que só dizia obviedades, a exemplo da frase: “As consequências vêm sempre depois.”. O nosso Acácio é um caso a se estudar psicologicamente: cheio de pruridos, chorão, com seus silêncios que dizem muito, pois o silêncio não mente, deixando o amigo Clauder louco!
Acácio tem um cisco na alma, uma inquietação, um mal-estar no mundo, um estranhamento que o torna melancólico. Ele é não apenas uma espécie de duplo, como também é a alma gêmea de Clauder Arcanjo, o autor que se fez personagem nessas aventuras literárias. Um não vive sem o outro, pois têm mil e uma afinidades, como a paixão pelos livros, pelas citações dos grandes mestres da literatura e história de amizade desde a infância em Santana do Acaraú onde, meninos, brincavam nas areias brancas do amado rio da “aldeia” do autor. Discutem a propósito de tudo, se desentendem o tempo todo, mas estão sempre juntos, numa relação simbiótica evidenciando que algo profundo os liga. São parecidos até fisicamente.
As aventuras acontecem em Licânia, no Ceará, a província dos dois amigos; em Vitória, no Espírito Santo, onde amargaram o isolamento devido ao coronavírus, com passagens divertidas pelas inúmeras trapalhadas do Companheiro Acácio, mesmo em meio à pandemia que aterrorizou o País e o mundo; ainda na capital Fortaleza, onde as presepadas se repetem, indo o Clauder parar até na cadeia, passando um tremendo susto. Mas, ao ser libertado, foi recebido como um rei por um grupo de escritores. (Homenagem carinhosa do autor aos amigos). Tudo por culpa desse amigo da onça...
Além dos livros e leituras, o solteirão Acácio tem paixão pelo gato Nabuco, que não é lá dos mais amistosos. (Foi até aconselhado por Vera Lúcia, leitora e amiga de Clauder Arcanjo, a não confiar no bichano. Melhor um cão, disse ela.).
Com talento para o humor, Clauder cria situações impagáveis em diálogos vivos divertindo o leitor, como o seguinte:
Mal entramos na Pousada do Raul, instalou-se entre nós a semente da cizânia. — Eu não durmo de rede, vou logo dizendo! — protestou o intelectual Carlos Meireles. — Só tem uma cama aqui, e a cama é reservada ao líder! — bradou Acácio. — E que líder é este que não se sacrifica em nome do seu grupo? — devolveu Lourenço. — Miau, mi... — Não se meta em nossa discussão, seu Nabuco. A conversa aqui é pra cachorro grande — exorbitou Companheiro. — Eu tenho problemas sérios de coluna. O meu médico me proibiu chegar perto de uma rede — argumentei, ao canto.
E a confusão tomava assomos de guerra declarada. Ninguém recuava um passo de sua renhida posição. (p. 106)

O humor do mau humor. São páginas e páginas sobre a pandemia do coronavírus em Licânia, onde os amigos ficaram em isolamento social, e o Companheiro Acácio, em estado grave, escapou da morte graças a um procedimento inusitado do amigo Clauder. (Só lendo para saber.). Uns pândegos. Assim, em total solidão, na cidade fantasmagórica, dominada por ordens rígidas, o combate à Covid se intensifica e ganha ares patrióticos. O melhor foi o tratamento com a chamada “canaquina”, invenção do esperto João Américo, que consistia em doses (cavalares) de cachaça, diárias, para os doze pinguços da cidade, na condição de cobaias, isolados na fazenda Eldorado, do bom Zequinha, “rebatizada como o Instituto Butantã de Licânia”.
Finalmente chegou a vacina, que dividiu a população, pois alguns negacionistas recusaram-se a tomála por medo de virar calangos... Essa paródia é muito eficaz na crítica aos brasileiros crédulos de todo o País na famigerada cloroquina, que confundiu muitos e levou outros milhares à morte. Episódio de triste memória. Que não pode ser esquecido. Ridendo castigat mores, lembrando as sátiras do português Gil Vicente, homenageado na pele de um personagem, o rábula homônimo.
Assim, em meio a grande baderna, Licânia, como um barco ancorado às margens do Acaraú, seguiu seu destino testemunhando a vida dos habitantes com suas crenças, seus delírios, risos e lágrimas. E la nave va...

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