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OPINIÃO

eSPAÇo JoRNALIStA MARtINS de VASCoNCeLoS

Organização: CLAudeR ARCANJo

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UM HOMEM CHAMADO ARY

RAIMuNdo ANtoNIo de SouZA LoPeS

é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com

E o trabalho era puxado. Nós íamos para o roçado às seis horas da manhã sem tomar nada. Isso significava dizer que não havia o desjejum. E voltávamos às onze horas para almoçar - feijão, mungunzá e toucinho. Às dozes horas nós voltávamos para a roça e passávamos a tarde inteira. Saíamos, de volta para casa, às seis horas da tarde. Em casa, tomávamos um banho de cuia de uma cacimba que tinha. E, em seguida, comíamos. A comida era feijão, mugunzá - pilado no pilão - e toucinho, que podia ser cozinhado ou torrado. Essa rotina se estendia de segunda a sábado, o ano inteiro. E lá de casa para o roçado, a distância era de, mais ou menos, uns dois quilômetros. (Ary Tomas de Araújo In Ary e Clotilde – assim se fez uma família)

Quando um amigo se vai, vai-se um pedaço de nós... Este ditado, embora seja clichê, reflete muito bem o pensar de todos, quer queiramos ou não. E, mesmo que relutemos em aceitar, nada podemos fazer; já que, por mais que duvidemos e resistamos, um dia qualquer, perderemos a luta para o além. Como temos registrado a páscoa de alguns amigos, vão-se aqueles mais queridos e nós continuamos, de certo modo, imortalizando-os.

Recentemente, há cerca de um mês, foi, para o andar de cima, alguém que tive o prazer de conhecer em dois momentos distintos: primeiro, quando ele era proprietário do melhor restaurante de Mossoró, em cujas mesas, disputadíssimas, agregavam-se profissionais liberais, e de todas as demais profissões existentes nesta cidade de Mossoró. Lá, além de servir uma comida bem-feita e saborosa, sua figura carismática era um atrativo a mais e, consequentemente, autenticava o prazer de uma refeição fora do domicílio familiar.

Foi ali, no ambiente em que ele trabalhava, junto com a esposa e os filhos, que eu o conheci. Bonachão, uma de suas principais características era a de fazer amizades. Quando ele chegava em qualquer ambiente – fora do seu domicílio –, chegava também a alegria, o prazer de dois dedos de prosa e a certeza de uma história bem contada. No restaurante, não era diferente. Assim que o “freguês” descia do transporte, ele já ia preparando a mesa para poder servi-lo da melhor maneira possível.

Por décadas, o seu ponto comercial foi referência em paladar, além de concentrar, às quintas e aos sábados, um grupo de intelectuais que se reuniam para conversar, beber e ouvir, dele, suas histórias dos tempos de menino.

Entre outras coisas, das lendas urbanas que circulavam em torno do seu restaurante, uma delas era que não existia preço fixo e, sim, o preço dado pelo proprietário, na hora do pagamento da despesa. Portanto, a despesa de uma mesa, com o mesmo consumo da mesa servida ao lado, podia ter preços diferenciados. O mais interessante é que ninguém reclamava; pois, se estava sendo penalizado naquele dia; no outro, seria beneficiado. Democracia pura.

O segundo momento, foi quando tive o prazer de ser o seu biógrafo, a convite de seu filho, Dr. Marcos Araújo. Aí sim, eu “juntei” o prazer da convivência – aos sábados, quando ia tomar umas cervejas com a turma do banco em que trabalhava; bem como, aos domingos, quando ia almoçar com a família – com a admiração e o respeito, ao conhecer, em profundidade, a sua história de vida.

E que história! “Quando o galo cantou pela segunda vez,

Cedida

às quatro da manhã, do ano de 1934, no mês de agosto, do dia oito, ele nasceu” – assim disse sua mãe. O seu nome foi em homenagem ao namorado da sua madrinha de apresentação. Deu sorte.

A sua saga, no entanto, foi cheia de aventuras, desde os primeiros anos de vida, quando teve que se mudar, com sua família – saindo de Cruzeta/RN para Janduís/RN. Daí em diante, foram inúmeras as cidades por onde caminhou. Fez-se rapaz e quis entrar no Exército, que ficava sediado em Natal/ RN, mas não conseguiu engajar. Ao voltar da capital, resolveu ir para Fortaleza/CE, onde trabalhou como Guarda-Civil. Depois de dois anos, retornou ao Rio Grande do Norte. Veio direto para Apodi. Quando de lá, junto com um irmão, saiu pelo mundo procurando “serviço”, acabou encontrando o grande amor de sua vida. E como a conquistou? Com a voz de seresteiro de que era dotado, ficou fácil. E como casou? “Roubando-a”. Uma verdadeira aventura sertaneja. Depois... a vida de casado, os filhos, a luta para criá-los, a determinação de pô-los para estudar, as constantes mudanças de domicílios, para que isso fosse transformado em realidade. De Pau dos Ferros – último endereço em que morou no Alto Oeste – para Mossoró, a saga teve alegrias, tristezas, sofrimentos, esperança e felicidade.

O que mais me impressionou, porém, foi sua garra, sua determinação. Um homem semianalfabeto, criado sob a redoma da cruel realidade dos que nascem sem os recursos naturais, que são obrigados a trabalharem, de sol a sol, nas terras alheias – para colherem um pouco para si e entregarem a maior parte para o patrão e senhor da propriedade –, conquista seu espaço contra tudo e contra todos, cria seus filhos, forma-os. Deles tem orgulho e deles recebe o apoio na velhice.

Estivemos juntos por quase seis meses, uma vez por semana. Sentávamo-nos na parte de trás da casa, onde ele morava. Todas as vezes eu registrava nossa conversa. Era um batepapo agradável; regado, depois que terminava cada entrevista, com um suco (que só sua filha sabe fazer), por um café com tapioca e um pedaço de queijo de coalho deliciosíssimo. Era sempre assim.

Na última entrevista, ele me perguntou se ainda ia demorar muito para sua história ficar pronta. Estava ansioso para ler. E ... saí, no último dia de nossas conversas, com uma frase (que está como epígrafe de sua biografia) dita como se fosse um conselho para mim:

Duas coisas que você tem que fazer nesta vida: a primeira, é parar para pensar; a segunda, é pensar para falar.

No lançamento, uma festa inesquecível com a presença de todos os filhos, dos netos, dos amigos mais próximos e dos convidados dos seus familiares. Ele cantou para o público, como agradecimento. Particularmente, revivi todos os momentos de nossos encontros.

Seu Ary, Deus lhe permitiu viver para criar seus filhos, encaminhá-los para a vida adulta, e para receber os dividendos de suas boas ações. E me deu, também, a oportunidade de conhecer um verdadeiro homem passado na casca do alho. Que Deus o tenha recebido em Seu Reino!

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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