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Enviar, receber e leiloar

Municípios no interior do Paraná devem pagar a conta da privatização dos Correios, caso a discussão avance em Brasília

Eduardo Veiga,Giovana Bordini, Mariana Alves e Mariana Toneti

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358 anos de história

Foram quatro anos de relacionamento à distância. De Curitiba a São Paulo, de São Paulo a Curitiba. Após uma viagem, em 1990, o contato se estabeleceu e persistiu. 25 anos depois, após um casamento, dois filhos e um divórcio, o sentimento reencontrou

Walkiria Oliveira por meio de meio de uma caixa antiga - e Walkiria diz ter reencontrado o rapaz de São Paulo naquelas cartas. Ao relembrar hoje, aos 47 anos, a professora de ensino fundamental diz que as correspondências poderiam demorar até 30 dias para chegar ao estado vizinho e às mãos do querido destinatário. Já as cartas para a avó costumavam levar menos tempo para serem lidas. Ela morava em Cruzeiro do Sul, cidade paranaense a 70 km de Maringá.

“Lá só tinha uma agência. Era uma agência pequena, eu cheguei a conhecer porque eu passava as férias lá. O Correio era um ponto de referência. Praticamente tudo naquela cidade pequena girava em torno do Correio, da delegacia e da igreja”, conta Walkiria. Há cerca de um mês, quando ela achou as cartas vindas de São Paulo, decidiu enviar uma delas para São Paulo. “Os Correios estavam em greve. A carta demorou 45 dias para chegar.” Unindo pessoas distantes há mais de 300 anos, os Correios - junto aos conflitos de interesses que o cercam - fazem parte do cotidiano brasileiro. Em 60% dos municípios do país, a estatal é a única representação da União, segundo a autarquia. Em 2019, estimava-se que existiam 508 agências espalhadas pelos 399 municípios do Paraná, com mais de 5,8 mil funcionários. De alguma forma, o destinatário é sempre alcançado, independentemente do local.

Em distantes terras roxas do estado, uma simples entrega de encomendas pode passar por quatro pessoas. É o caso do Cerro da Ponte Alta, em Irati, região sudeste do Paraná. Há poucos anos, o serviço percorria um longo caminho: os Correios procuravam um motorista, principalmente de ônibus, e os mesmos ficavam responsáveis pela entrega - que ainda não seria na casa do destinatário. O segundo passo era encontrar alguém que aceitaria disponibilizar um espaço de sua casa para receber todas as encomendas e cartas da cidade. Por fim, cada pessoa iria até a residência escolhida para pegar o que estava em seu nome.

Nos últimos anos, a estatal encontrou uma solução para esses locais tão afastados do Centro - colocar uma sede terceirizada em uma região próxima dos desertos postais, porém, ainda é necessário ir até as cartas. “As contas eram deixadas na bodega, aí as pessoas iam de carroça até lá buscar”, relata a moradora do Cerro Rosiane Ribeiro. Ela precisou alterar o endereço de entrega para o seu atual trabalho, para não voltar a acontecer de perder o vencimento das contas.

Foi só a partir de 2015, segundo dados levantados pela Revista CDM junto ao Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes), que todos os municípios do Paraná passaram a ter uma agência dos Correios própria, isto é, uma unidade que oferece todos os serviços da empresa.

1500

O primeiro registro de práticas dos Correios foi a carta enviada por Pedro Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, relatando sobre a descoberta do Brasil. 1663

Marco inicial dos Correios.

Dom Afonso VI de Portugal nomeia o alferes João Cavalleiro Cardozo para o cargo de Correio da Capitania, criando oficialmente o serviço postal no Rio de Janeiro e no Brasil. 1797

Um decreto da Coroa Portuguesa estatiza e centraliza os serviços postais, subordinando-os ao Ministério da Marinha e Ultramar.

As últimas duas cidades do estado que receberam uma agência foram Porto Barreiro e Cruzeiro do Iguaçu - localizadas no oeste do Paraná, ambas a pouco mais de 100 km de Cascavel e com pouco menos de cinco mil habitantes. Até 2017, a unidade de Cruzeiro do Iguaçu atendia os moradores apenas três vezes por semana.

No extremo oposto aos serviços postais interioranos - os fundos monetários de Brasília -, a história recente dos Correios exibe lucros. Entre 2001 e 2020, segundo os próprios Correios, a estatal acumulou ganhos na casa de R$12 bilhões, sendo que 73% do total foi repassado diretamente para o governo federal - em princípio, o único proprietário da grande empresa. Entre esses 20 anos, apenas quatro apresentaram prejuízos, com ênfase no período de 2015 a 2017. Perdas, porém, que exigiram um suporte de R$224 milhões do Tesouro, conforme indica um relatório da Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest), do Ministério da Economia. Ou seja, dinheiro público remanejado.

“Antes não tinha internet, essa disponibilidade toda que temos hoje. Faturas digitais, por exemplo. E se tinha também menos concorrência de empresas de logística eficientes. O rei reinava sozinho”, comenta o professor de Economia da UFPR e doutor em Finanças pela FGV Adalto Althaus. Segundo ele, o fato de os Correios não terem acompanhado as mudanças tecnológicas e mercadológicas reforça a ideia de que o serviço postal da empresa chega a todos brasileiros, mas nem sempre é rentável aos cofres públicos.

Embalado pelo clima favorável à discussão - sob a lógica desestatizante

LUCROS E PREJUIZOS DOS CORREIOS NOS ÚLTIMOS 10 ANOS

Dados: Correios

Apesar dos recentes prejuízos, os Correios conseguem se manter com seus próprios recursos

que conduz o discurso econômico do governo Bolsonaro desde seu início -, a privatização dos serviços postais ganhou fôlego no Congresso Nacional. Em setembro, a Câmara aprovou o Projeto de Lei 591/2021, que prevê a “ É uma estratégia de lobby você ter serviços públicos que não sejam 100% efi cientes.”

Adalto Althaus, professor de Economia da UFPR

venda dos Correios para a iniciativa privada. O PL, que ainda depende da aprovação do Senado e da sanção do Executivo, está intimamente ligado ao interesse da pasta econômica do Executivo.

Entre seus pontos mais sensíveis, o projeto de venda da estatal propõe que o dono dos serviços poderá definir as tarifas, seus reajustes e revisões de acordo com as condições de cada lugar. Na prática, o envio de cartas e encomendas poderá variar de região

1822

Com a Independência do Brasil, o serviço postal impulsionou o desenvolvimento do País, e com isso se tornou necessário um novo modelo de serviço postal, pois o setor produtivo do Brasil estava crescendo e não conseguia suprir as necessidades dos usuários. 1835

Início da entrega domiciliar de correspondências. Selo “olho de boi”, de 1843.

1842

Criação do Decreto 255 que usou a palavra “carteiro” pela primeira vez, e também previa a perda da comodidade de receber as correspondências em casa, para aqueles que maltratassem o profissional. 1865

Criação do Decreto 3.443 que aprovou um novo regulamento para o serviço postal do Império que regulava o serviço de Correio Urbano, com pelo menos três distribuições diárias em domicílio.

para região, levando em conta o custo do serviço, a renda média da população e outros indicadores sociais do local.

“O custo com certeza será maior para entregar em uma cidade do interior. Aqui no Paraná, pense na entrega de uma encomenda no meio do Vale do Ribeira, leste do estado, uma das regiões mais pobres do Brasil, que ninguém fala sobre. Uma entrega em uma região dessas é deficitária. Você teria que cobrar tão caro da pessoa, que não compensaria pagar o Correio”, analisa Althaus. O PL determina que o vencedor do leilão da estatal deve garantir que clientes de baixa renda tenham acesso aos serviços básicos. O professor Althaus argumenta que cabe ao comprador dos Correios também “arcar com o ônus” e fazer parcerias para que locais mais distantes das metrópoles não sejam abandonados.

A 1.392 km da metrópole de Curitiba, o debate sobre a privatização se concentra em Brasília, porém sempre com a presença do Paraná. Adaílton Cardoso é o representante do Sindicato dos Trabalhadores nos Correios do Paraná (Sintcom-PR), que participa das conversas nos corredores do Congresso. Segundo ele, o sindicato de cada estado do país enviou um filiado à capital para representar os 100 mil funcionários dos Correios que trabalham em todo o país.

A expectativa de Cardoso é que o PL seja reprovado, uma vez que, segundo ele, a empresa que adquirir a estatal em um caso de privatização não terá interesse em cobrir todos os municípios, gerando os chamados “desertos postais”. “Como a lei foi aprovada no Congresso e com a lei da terceirização, nós temos várias pessoas que prestam serviço aos Correios. Estamos desde 2011 sem concurso público (...), estão fazendo de tudo para precarizar os Correios, para ser vendido. Estamos vendendo a soberania nacional”, conclui Cardoso.

PRIVATIZAÇÃO E OS

FUNCIONÁRIOS

Internamente, uma das maiores preocupações atuais é a chance de perda de emprego em caso de privatização. Caso o PL seja aprovado, os funcionários terão 18 meses de segurança, ou seja, durante esse período, não será permitida a demissão por justa causa. Além disso, é esperado que a estatal “Sinônimo de privatização é demissão.”

Adaílton Cardoso, representante do Sintcom-PR ofereça um Plano de Demissão Voluntária - o PDV. Ao escolher o plano, o funcionário terá uma indenização, plano de saúde e plano de requalificação pessoal. No entanto, a demissão por justa causa durante o período dos 18 meses ainda pode ser possível em eventos extraordinários, caso o funcionário cometa algo grave que justifique o interrompimento do contrato. Após um dia de expediente, com entregas pela região central de Curitiba, um carteiro motorizado, que prefere não se identificar, assume que os Correios passaram de um ambiente saudável, com vários benefícios, para

1888 1890

Ao longo do período imperial, foram muitas as tentativas de se criar uma administração independente para os Correios do Rio. O então Correio da Capital Federal era controlados pelo Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. O primeiro Decreto da República informava que os Correios responderiam ao Ministério da Agricultura, mas quatro anos depois os Correios passaram a responder ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Na Era Vargas, o primeiro movimento na área dos Correios foi o Decreto 19.951 que organizou a questão da separação entre a Direção Geral e a Administração Postal do DF. Durante a ditadura, os Correios passaram a ser dependentes do recém-criado Ministério das Comunicações.

1931 1967

Na Era Vargas, o primeiro movi- Durante a ditadura, os

Mariana Toneti um ritmo de trabalho acelerado demais nos últimos anos. “Com a saída de funcionários por aposentadoria e PDV (Plano de Demissão Voluntária) e a alta demanda de encomendas, precisariam ser abertos novos concursos para a integração de funcionários, para conseguir suprir [a demanda]. Os Correios se tornaram um ambiente de muita pressão”, relata o funcionário da estatal. Além disso, ele ainda menciona que há um tipo de perseguição quando o funcionário

não cumpre o que foi pedido, mesmo que sejam “metas impossíveis de serem cumpridas”.

Em 2 de outubro, centenas de funcionários foram às ruas ecoando o descontentamento com a desestatização por todo o estado paranaense. A mobilização interna é, em grande parte, desfavorável à privatização. “Os Correios vão além da entrega de correspondências. Em muitas cidades do interior, regiões mais carentes, por não darem lucro, terão os serviços suspensos. Deixarão de receber serviços essenciais, como medicamentos”, alega o carteiro.

Estatais que passaram por privatização, como recentemente ocorreu com a Eletrobras, reduzem o quadro de funcionários. A empresa do setor elétrico, ao se preparar para a iniciativa privada, desligou 14 mil funcionários nos últimos anos. Foi estudada, ainda, a possibilidade de realocar funcionários para outras estatais.

Ao ser perguntado sobre uma possível demissão em massa de funcionários dos Correios, com uma futura privatização, o professor Adalto Althaus afirma ser natural que haja um grande corte de trabalhadores.“Será que esses funcionários, ao longo desse tempo, procuraram estudar, se aprimorar, crescer como pessoas e como profissionais? Ou ficaram naquele cabide, naquela rotina?”, questiona.

“Eu, por ser formado e gostar de novos desafios e oportunidades, não tenho medo de perder meu emprego, porém, vejo a privatização como algo totalmente negativo”, explica o carteiro ouvido pela reportagem. Ele ressalta que seu caso não compreende a maioria, feita de “funcionários que ficarão desqualificados para o mercado de trabalho, visto que trabalharam a vida toda como carteiro e não possuem outras experiências profissionais que muitas áreas exigem”, conclui.

Procurados, os Correios-PR dizem que não podem fazer declarações a respeito da privatização.

O salário de carteiro é R$ 1.757,48, segundo dados de 2020 dos Correios.

Logo dos Correios em 1970. Logo dos anos 1990.

1969 Década de 1970

Surgimento da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), trouxe mudanças no modelo postal brasileiro. Assim, os Correios passaram a ser uma empresa pública, de forma a aumentar sua competitividade. Criação do Código de Endereçamento Postal – CEP. Os cinco números trouxeram uma melhoria para os padrões de qualidade dos serviços postais.Em 1977, os Correios se tornaram independentes financeiramente e informatizados. Década de 1990

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos recebeu autorização para a implementação das Agências de Correios Franqueadas – ACF.

O papel do Estado

Priorização de outros serviços públicos pode favorecer a privatização dos Correios

“Dentro dos próximos anos, a União vai ter que injetar dinheiro público [nos Correios]. É dinheiro público. Enquanto isso, nós temos outras necessidades, principalmente saúde”, comenta o professor de Direito da PUCPR e doutor em Direito do Estado Luiz Blanchet. Ele afirma que as privatizações devem ser olhadas caso a caso, sem generalizações - porém, o caso dos Correios é particularmente interessante por envolver discussões a respeito do papel do Estado na sociedade. “Se nós analisarmos o Estado como um todo, as suas funções são saúde, educação e segurança. Talvez, induzir investimentos em estrutura. Talvez essas sejam as funções primordiais do Estado, que ele já não faz bem”, constata o professor Adalto Althaus. Sobre a qualidade do serviço, ele argumenta que a suposta precariedade dos Correios pode ser proposital. “É uma estratégia de lobby você ter serviços públicos que não sejam 100% eficientes. Por exemplo, talvez o Estado não tenha realmente interesse que a educação pública seja de excelência porque, se não, todas as escolas privadas não existiriam”, analisa.

Como foi o caso de Walkiria Silva, mostrado no início da reportagem, o atraso na entrega de correspondências é um dos pontos usados por quem defende a privatização. Dados da própria estatal mostram acúmulo de envios atrasados em estados como o Rio Grande do Sul, com 10,6 milhões de correspondências pendentes.

“O que sobrou para os Correios foram apenas as correspondências. A entrega de mercadorias já não é mais monopólio da Empresa Brasileira de Telégrafos [ECT]. Como ela é uma empresa pública, logo, não há ações de particulares, vai ser a própria União que terá que custear quando ela começar a ter problemas financeiros”, alega o professor Luiz Blanchet. Ele resgata o Artigo 173 da Constituição Federal, o qual define que o país deve explorar atividades econômicas quando elas estiverem relacionadas à segurança nacional ou interessar a toda a população. “Foi por volta de 1600 que foi criada a ECT. Os tempos mudaram, já não precisamos mais tanto de cartas”, conclui Blanchet, exemplificando as facilidades da comunicação via telefone e celular.

“Eu ainda acho que o Correio, até os dias de hoje, é o modo mais fácil de a gente poder mandar uma mensagem para alguma pessoa. Até mesmo resgatar uma pessoa que está longe”, comenta Walkiria, dizendo que você só precisa de um endereço rabiscado na agenda para que a carta possa chegar ao destino. “A carta é uma surpresa muito boa. Quando alguém escreve uma carta para você, ela está querendo, por meio daquele papel, expressar muita coisa, que em um telefonema não conseguimos expor”, conclui.

Logo de 2014.

Década de 2000 2020

Os Correios passaram a abranger em torno de 5.561 municípios brasileiros. Não há registros de que nenhuma outra instituição até então tinha tanto alcance. Em 2002, criação da Ouvidoria dos Correios, para melhorias no atendimento ao cliente. Mais de 55 mil carteiros percorrem, cerca de 435 mil quilômetros por dia, seja a pé, de carro, moto ou bicicleta. Os correios contam com aproximadamente 6,3 mil agências próprias no país. 2021

Privatizar ou não?

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