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Cassio Larotonda Maia

2.2. De Macário à Noite do século: o convite a uma literatura moderna na obra de Álvares de Azevedo

Cassio Larotonda Maia2

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Resumo: o presente trabalho propõe uma análise não apenas estrutural das obras Macário e Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, mas também interpretativo, tomando como ponto de partida a teoria proposta por Antônio Cândido em que defende a ideia de continuidade entre ambas as obras. Pretendemos elucidar os pressupostos presentes na conexão dessas obras da passagem de uma literatura dulce et utile para a natureza puramente estética da literatura após as transformações românticas. O texto pretende demonstrar as preocupações do autor e como ele se relacionou com o ainda permanente utilitarismo presente na obra dos autores românticos brasileiros da geração anterior à sua.

Palavras-chave: gêneros; Romantismo; Álvares de Azevedo; Modernidade.

Abstract: the following work proposes an analysis not only structural of the works Macário and Noite na Taverna, by Álvares de Azevedo, but also interpretative, taking as a threshold the theory proposed by Antônio Cândido in which he defends the idea that both works may be linked. We intend to bring to light the propositions present in such a connection through the paradigm from dulce et utile to a purely aesthetic nature in literature past the romantic transformations. The text aims at demonstrating the preoccupations of the author and how he dealt with the yet to be surpassed utilitarianism present in the works of those before him that also belonged to the Brazilian romantic movement.

Keywords: genre; Romanticism; Álvares de Azevedo; Modernity.

Defender a utilidade da literatura no seio social é uma tarefa ingrata a qual alguns teóricos se dispuseram nem sempre com grande sucesso. De funções sociais e epistemológicas à função conativa, os livros e apostilas do ensino médio conseguem elencar uma série de possíveis justificativas, praticidades para o ensino da disciplina que, nesse ambiente (escolar), frequentemente se caracteriza por uma profunda visão historiográfica.

2 Doutorando no programa de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ. Email de contato: cassio_maia@hotmail.com .

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Antônio Cândido (1995) já problematizava não só a nossa necessidade insaciável de definir uma utilidade para este veículo artístico, como também denunciava que tal sofreguidão demonstra o caráter fugidio de uma definição apropriada. É o próprio Cândido que pregará contra o que chama de "intuitos imperialistas" (CÂNDIDO, 1995, p. 13), ao dizer que, amiúde, sociólogos e psicólogos se julgam capazes de explicar a Literatura apenas lançando mão do aparato teórico de suas ciências. Em A literatura e a formação do homem, Cândido ressalta ainda como uma de suas funções a humanização. Em uma explicação que em partes coincide com a fala de Umberto Eco ao dizer que "o homem é um animal fabulador por natureza" (ECO, 2003, p. 5), Cândido explica que a literatura (entre outras) é capaz de conectar o homem consigo, com seu íntimo, a partir da ficção. Antes mesmo de ser rotulada como tal, conceito que vai emergir em fins do século XVIII (DE SOUZA, 2014), a Literatura já existia, assim como a arte. A história da arte em seus primeiros momentos vai se confundir com a história da religião, da ciência, do mito, crença, dos saberes, enfim. No intuito de garantir a fertilidade, o homem pré-histórico esculpiu musas de seios fartos; no intento de eternizar os feitos históricos permeados pelos deuses e seus mitos, o homem da antiguidade teceu suas epopeias. Durante a Modernidade, muitos desses saberes deixarão de ser "magistra vitae" (termo cunhado por Cícero para referir-se à história como mestra/professora da vida, atribuindo-lhe caráter moral), tornar-se-ão imorais/amorais. É no século XVIII, de nosso maior interesse, que a Literatura passará por esse conflito. Segundo o professor Roberto Acízelo3, século supramencionado caracteriza-se como um "turning point" (termo do professor, traduzido pelo mesmo como "dobradiça"), e é nesse século que se firmarão os conceitos modernos e as artes passarão a encontrar um fim em si mesmas. Em A crítica do juízo (1992), escrito em 1790, o filósofo Immanuel Kant nos possibilita pensar a arte como uma esfera autônoma, servindo como referência intelectual e exemplificação de um momento em que literatura ganha caráter estético. De acordo com Angélica Soares (2007, p. 11), Horácio (65 a.c. - 8 a.c.) põe sobre a literatura o pragmatismo romano e impõe a ela um tom para cada gênero. O

3 Universo Uno | Uma ideia moderna de literatura. Acesso em 25 de Março de 2018, às 16:45 <https://www.youtube.com/watch?v=hnOnKObttec>

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pragmatismo horaciano ressurge (dadas as especificidades de cada momento) durante o Renascimento juntamente com uma leitura da mimesis aristotélica como processo de imitação e não recriação e resiste até o século XVIII, permeando-se, de certo modo, ao Iluminismo/Neoclassicismo. Ainda na virada do século XVII para o XVIII e na primeira metade deste, o brilho e o valor da arte localizam-se na razão, bom senso e no equilíbrio. Para a professora Lígia Cademartori eram imprescindíveis "a fé na razão e na ciência, o culto à racionalidade e a sensibilidade clássicas" e "a relação harmônica de todos os elementos é o modelo de equilíbrio que a arte deve produzir" (CADEMARTORI, 1985, p. 32), sendo sua tônica o decoro, para "ser a manifestação da verdade" (CADEMARTORI, 1985, p. 32). Os poetas, que cantavam tanto o lírico quanto o épico, eram, na Idade Moderna (não confundir com Modernidade), servos prescindíveis à antiga aristocracia cortês, mantidos, não apenas pelo valor de suas obras, mas, ainda mais do que isso, por capricho e prestígio dos senhores. O século XVIII, todavia, também pode se definir como o século em que o número de leitores se eleva de forma grandiosa, trazendo também o surgimento de um novo público leitor com suas próprias demandas. Dos aristocratas financiadores das artes, a leitura oscila para as mãos do público (obviamente de forma incipiente, não comparável aos nossos dias), surgem, então, as bibliotecas itinerantes, a fim de soterrar o poço que existe entre o poder aquisitivo do novo público leitor e o valor ainda exorbitante dos livros. (PUNTER, 1996). Nesse século, ainda permaneciam os valores morais da literatura. O decoro neoclássico propunha no valor literário um tom de harmonia e utilidade, permaneciam aí reminiscências do dulce et utile proposto por Horácio. Uma vez, porém, que o grande público leitor reclama pra si também a leitura – além da educação da mulher como leitora, também característica setecentista -, o caráter dulce se exalta em detrimento do utile, surgem então, juntamente com o Romance - gênero, como veremos adiante, dádiva da Modernidade – estilos literários que, acompanhando o zeitgest, modicamente desprezam o caráter moral, elevando o entretenimento presente nas obras. Um desses estilos é a literatura gótica que

produziu efeitos emocionais em seus leitores em vez de desenvolver uma resposta racional. Excitando, assim, em vez de informar, congelando seus sangues, saciando suas superstições e alimentando

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apetites não cultivados pelo maravilhoso e o estranho, em vez de instruir os leitores com lições morais que inculcaram decência e gosto à literatura (BOTTING, 1996, P. 4, tradução nossa)

Representando uma verdadeira ameaça à virtude e ao decoro neoclássico, o gótico - exaltando o medo e suas expressões correlatas - seria considerado uma manifestação literária de baixo valor, justamente por privilegiar o entretenimento, às fábulas populares, postar-se na intersecção entre o romance realista e o romance de cavalaria. O Gótico, ainda segundo Botting (2013a), representa um mais expansivo e imaginativo potencial para a produção estética. Ao longo do século XVIII seguem discussões implícitas e explícitas dos que defendem o valor moral das artes e da literatura contra os que advogam pelo seu valor estético. É possível, portanto, perceber que, de fato, tal século será uma dobradiça nas mais variadas formas de se perceber o mundo. É nesse momento que o "projeto" de apropriar-se da linguagem artística por parte da Classe Média começa a se concretizar, manifestando padrão artístico próprio. É na virada desse século para o próximo que o medíocre começa a dar lugar ao passional, a "aurea mediocritas" já não pode saciar o ímpeto poético. Tomamos como medíocre aqui a concepção de mediano, aquele que obedece à circunspecção atribuída à arte até pelo menos o Neoclassicismo e sua sobriedade racional. É nesse período que, segundo M.H. Abrams (1971), a imitação/reflexão como padrão artístico vai dar lugar ao sentido de gênio e inspiração. É quando o poeta, o artista enfim, passará a rejeitar o imitatio clássico para valorizar a originalidade da obra, "inviabilizando a concepção de estilo como comunidade espiritual" (CADEMARTORI, 1985 p. 36). A concepção de arte que era, sobretudo, imitar, dá lugar à luz da inspiração e da espontaneidade artística, que irrompem intempestivamente à poesia, em desprezo à contemplação passiva, ganharia destaque então o autor como criador. Por conta disso, diz-nos Ian Watt (2001, p 15), o conceito de originalidade, que antes significava retorno a uma origem comum, a uma arché, passa a ser percebido como criar o inédito. Isso porque, segundo o mesmo autor (2001, p. 14), recorria-se a arquétipos justamente por constituírem um repertório definitivo da experiência humana. Para a nova classe artística, louvar a arché representaria louvar um passado que era, antes de tudo, aristocrata e, portanto, uma Nêmesis. A Relação que o homem moderno

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tem com o passado, pode-se dizer, é comparável a de um homem assombrado por um fantasma do qual tenciona fugir, mas pelo qual também criou uma confusa afeição. O empoderamento do conceito de indivíduo e da individualidade, trazidos pela concepção burguesa de mundo, trará consigo uma nova concepção da compreensão de verdade. Diz Ian Watt:

A grandeza de Descartes reside sobretudo no método, na firme determinação em não aceitar nada passivamente, e seu Discurso sobre o método (1637) e suas Meditações contribuíram muito para a concepção moderna de busca da verdade como uma questão inteiramente individual, logicamente independente da tradição do pensamento e que tem maior probabilidade de êxito rompendo com essa tradição. (WATT, 2001, p. 13)

E prossegue, ressaltando os vindouros frutos:

E com isso (...) uma nova tendência na ficção: sua total subordinação do enredo ao modelo da memória autobiográfica afirma a primazia da experiência individual no romance da mesma forma que o cogito ergo sum de Descartes na filosofia. (WATT, 2001, p. 15)

Todas essas transformações dariam ao século XIX e ao Romantismo o combustível necessário para o individualismo que, segundo Lígia Cademartori é "característica mais marcante do Romantismo" (CADEMARTORI, 1985, p. 37), forma que o autor romântico encontra para salientar sua "independência cultural em relação à Aristocracia", a atenção ao pathos e às emoções são o "resgate de uma minimização sofrida". O autor romântico vai utilizar a sua individualidade e alienação como protesto contra a despersonalização no processo cultural. (1985, p. 37), é apenas após o Romantismo que o caráter individual do ser humano se chocará tão grandiosamente contra o coletivo. É preciso lembrar que a ascensão da Burguesia e o surgimento do Romantismo são fenômenos indissociáveis.

A linguagem romântica opõe-se, assim, ao comedimento Neoclássico. Contrapondo emoções e sentimentos à frieza da razão oitocentista, minando a valorização da forma sobre o tema e a impessoalidade. A forma, um dos bastiões Neoclássicos, passa a ser menos engessada já no século XVIII. O movimento préromântico alemão "Sturm und Drag" tem como dádiva uma força maior da variabilidade dos gêneros (SOARES, 2007, p, 13). À proposta de derrubada da rigidez dos gêneros,

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ganha força um hibridismo perceptível já no prefácio de Cromwell, de Victor Hugo, baseando-se na observação de que se misturam, na vida, o belo e o feio, sendo, portanto, "artificial separar-se a tragédia da comédia" (SOARES, 2007, p. 14). Apesar de erguerse como estandarte desse hibridismo o Drama (também um pilar dos gêneros clássicos), sendo o "gênero dos gêneros" (SOARES, 2007, p. 14), incorporando características de outros gêneros, Watt nos salienta que o Romance e sua ascensão vão impulsionar também esse hibridismo uma vez que engessar o Romance "só pode colocar em risco o seu sucesso" (WATT, 2001, p. 14), e posto que ele "tem por função primordial dar impressão de fidelidade a experiência humana" (WATT, 2001, P. 14). Representavam logo, dentro de suas especificidades, o drama romântico como uma tentativa de subversão de um pilar clássico, a fusão (mudança do estado sólido para o líquido) da rigidez da forma teatral; o romance romântico como insígnia da liquidez moderna dos gêneros. Assim, o primeiro estilo genuinamente burguês, o Romantismo, carrega em si marcas de uma classe artística profundamente descrente dos ideais Iluministas e Neoclássicos do século anterior. Há quem paute que a primeira experiência romântica é o trauma oriundo da Revolução Francesa (PUNTER, 1996). Dos pontos em que converge com os estilos que modicamente já se opunham ao gesso dos gêneros e da forma neoclássico, somando a isso uma flexibilidade dos gêneros que representava a vida como "ela é" e também a fluidez da experiência humana, o Romantismo se firma como um gênero chave na concepção de arte como a modernidade a compreenderia e "inaugura" (ainda que se possa problematizar) uma concepção moderna de gêneros e de função das artes. A isso, acrescentamos que

Com relação à outras espécies literárias, o hibridismo foi também a palavra de ordem. Alexandre Herculano, um dos maiores escritores românticos portugueses, chegou a escrever que sua obra Eurico, o presbítero seria uma crônica-poema. Da mistura dos gêneros resultariam, por exemplo, tragicomédias ou romances líricos (SOARES, 2007, p. 14)

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É a partir do século que se inicia com o Romantismo, por exemplo, que a "nova epopeia", que se volta para o indivíduo e o homem burguês e não ao feito heroico de um povo, genuinamente moderna, o Romance, se firma e predomina. No contexto brasileiro, os românticos da "primeira geração" e os prosadores vão explorar os temas nacionalistas, impulsionados pela independência nacional. Bernardo Ricúpero (RICÚPERO, 2004) salienta que eles vão criar, no intuito de romper com os ideais artísticos europeus, uma tentativa de emancipação da arte nacional, transitando entre o político e o literário, uma vez que muitos dos autores eram também políticos. Concomitante à construção literária, José de Alencar, por exemplo, grande menestrel do empreendimento nacionalista, era igualmente exímio político. Ergue-se, assim, a figura do índio como herói nacional; a natureza brasileira como insígnia do valor intrínseco e natural do país, impondo-se implicitamente como condição sine-qua-non para a expressão de uma literatura genuinamente nacional. Apesar da liberdade, o indianismo ainda se prestava à compostura do estilo que pretende representar uma nação. Além de tentar se desvencilhar de uma literatura europeia e terminar por representar a nação de uma forma marcadamente influenciada pela demanda estrangeira (BOSI, 1994, p. 113) e que ainda bebia da fonte de um estilo clássico que se prestou a retratar a natureza. Além disso, Antônio Cândido (CÂNDIDO, 1989) nos convida a refletir sobre um "mito" (lato sensu) que habita o imaginário do leitor brasileiro, o de que a nossa literatura é produzida da interseção no encontro cultural entre os negros africanos, os indígenas e o colonizador europeu. Verdade é que, por muito tempo, especialmente no âmbito do nosso cânone literário, as duas primeiras importaram tão somente seu folclore, a hegemonia, contudo, ainda que tendo sua sensibilidade influenciada pelos outros dois povos, da nossa literatura jaz na influência europeia mais do que majoritariamente. Havia ainda, no que há de peremptório e arbitrário nos modos intelectuais do nosso Romantismo, o Ecletismo de Victor Cousin:

Graças à proposta de promover a conciliação entre os mais diversos sistemas filosóficos e tendências políticas, o ecletismo foi adotado pelos letrados reunidos em torno de D. Pedro II como a filosofia oficial do Império e como uma única tendência filosófica válida para orientar novos talentos. Seu maior defensor, Gonçalves de Magalhães,

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refutou a convivência com tendências que divergiam de sua orientação e que, em pauta na Europa desde o final do século XVII, ou abalaram a crença na existência de Deus, ou tomaram a subjetividade como o centro a partir do qual se funda o conhecimento. Em “Ensaio sobre a história da literatura brasileira”, ao lado da retomada da tradição indígena e da representação do passado longínquo, Gonçalves de Magalhães postula que filosofia e ecletismo sejam termos sinônimos, única via de acesso, para ele, da evolução da inteligência brasileira e do progresso e das Luzes nacionais (CUNHA, 2004b, p. 121)

A professora Cilaine Cunha nos fala de uma divergência entre Azevedo e a renovação literária indianista (2004b, 123). Contrariando a demanda oficial, Álvares de Azevedo se interpõe explicita e implicitamente a tais mandos epistemológicos. Precisamos, a título de esclarecimento, alertar que tomaremos a proposta de Antônio Candido como verdadeira em nossa análise, a de que Noite na taverna seria uma espécie de sequência dada aos acontecimentos narrados em Macário:

Ouçamos o quê? pensa o leitor. É claro que não se trata de um fim, e o drama pode ter sido suspenso deliberadamente para dar lugar ao seu seguimento, isto é, ao que Macário vai ver pela janela. Ora, o cenário d' A noite na taverna é uma orgia onde estão cinco homens numa mesa e outros deitados bêbados no chão, dormindo de envolta com mulheres. E o seu começo é uma fala, isto é, algo que se ouve, correspondendo ao imperativo da deixa final de Macário ("Cala-te. Ouçamos.") (CÂNDIDO, 1989, p. 14)

Não seria um absurdo tal compreensão, uma vez que, afirma a professora Cilaine Cunha, "(a) hipótese ganha ainda maior probabilidade diante da tendência típica, nesse autor, de remeter uma obra sua a outra." (CUNHA, 2004b, p. 116). Para Antônio Cândido, Álvares de Azevedo pode "ter querido efetuar (com raro malabarismo) uma substituição de gêneros e personagens, passando do drama à narrativa" (CÂNDIDO, 1989, p. 14). Sobre o qual falaremos mais adiante. No plano explícito, Álvares de Azevedo já manifestara seu incômodo diante das imposições intelectuais sobre as quais falamos anteriormente. O autor veiculava em suas palavras a ideia de que, no Brasil, negavam-se pelas mãos da monarquia, promessas de liberdade e instrução pública, Azevedo incitava a mocidade em direção a uma maior liberdade além das impostas por Magalhães em sua adoção da cultura francesa (2004b, p. 122). Não seria absurdo, portanto, perceber que, de fato, há um ultrarromantismo na

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obra azevediana uma vez que pregue uma liberdade e fluidez além do engessamento das ideias, pensamento essencial e indissociável à gênese romântica no que se opunha à excessiva solidificação neoclássico/iluminista - acerca do artístico e intelectual - que, nas palavras de David Punter (1996) terminava por criar uma imensa interdição. Ao proclamar como ideal uma corrente teórica e nos convidar ao progresso das "luzes nacionais" (CUNHA, 2004b, p. 121), Gonçalves de Magalhães termina por incorrer ao mesmo "erro" ao qual fazia o Iluminismo, projetar excessiva luz à determinada filosofia e desprezar as sombras que jazem no entorno. A respeito disso, há o discurso de Álvares de Azevedo:

Comparai a filosofia dos tempos e os poetas: sonhai o labirinto tenebroso da filosofia Indostânica de Viasa, Capila e Gantana, onde porventura Pitágoras bebera as teorias da metempsicose, Socrátes e Platão seu idealismo; [...] embebei-vos no transcendentalismo alemão – Kant, Fichte, Abicht – no idealismo mais puro e vaporoso, reduzindo o panteísmo de Espinosa e a visão em Deus de Malebranche, ao egotismo de Fichte e Hegel – e passai as longas noites de vigília com a Messíada de Klopstock, o Fausto de Goethe, e as criações negras de Johann Paulus Richter. (AZEVEDO, 1942e, p. 423 apud CUNHA, 2004b, p.122)

O romantismo vai, ao enfatizar a questão nacional, ainda que com alguma atenção aos indivíduos presentes na obra, deslocar o tempo de suas narrativas do indivíduo para uma linearidade "histórica" e mítica, enfatizavam o antes, o durante e o depois da colonização (2004b, p. 123). Ao priorizar o nacionalismo na literatura, também nossos primeiros autores românticos vão, deliberadamente ou não, atribuir à nossa produção literária um valor didático, uma natureza edificante em algum grau. Álvares de Azevedo vai então, no plano literário, advogar por uma maior liberdade, tanto no que tange à questão intelectual quanto ao literário. Cunha (2004b, p. 122) nos chama a atenção ao fato de que os cinco personagens principais de A Noite na Taverna se filiam a sistemas filosóficos distintos que, porém, coincidem no ponto em que " negam o conhecimento baseado no império da razão", a professora aponta para o fato de que tanto o hedonismo, quanto o ceticismo são contrapostos em uníssono pelos personagens como fundamento da poesia, sendo um consenso entre os cinco, tanto na poesia quanto na vida, o epicurismo:

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Enquanto Bertram toma o fumo e o vinho como metáforas do idealismo alemão ou, em outras palavras, como imagem do movimento da idéia pelo espírito, o materialista Solfieri, ainda que admita, com os amigos, a imortalidade da alma como um ideal a ser perseguido, pensa que ele deve se deixar impregnar do “lodo e podridão”, disseminados pelo mundo. Para ele, a vida não é, como a lua, um elemento puro e virtuoso, mas uma “reunião ao acaso de moléculas atraídas”. Analogamente a Bertram, Solfieri crê que das ilusões nada se concretiza e que a existência só tem sentido na febre do libertino, na bebida e na lascívia. O ateu Johann, por seu turno, condena a crença nos dogmas religiosos, o fanatismo e o culto dos ícones católicos. (CUNHA, 2004b, p. 122)

O choque dos contrários, dos contrastes, que mencionamos anteriormente com Victor Hugo, um dos pilares do romantismo, da fusão entre o belo e o horrível, surge o caráter intersticial que tanto na forma quanto no conteúdo era débil (se comparado à obra de Álvares de Azevedo, no que parece ser a perspectiva do próprio autor ultrarromântico) nos autores da nossa primeira geração romântica e que, em contrapartida, era profuso nas obras dos autores europeus. É sobre tal aspecto que parece, em partes, e ainda que publicada e organizada após sua morte, se pautar a construção de algumas de suas obras. Em Macário, drama que, segundo Cândido, foi "feito mais para a feitura do que para a apresentação, com duas partes diferentes enquanto estrutura" (CÂNDIDO, 1989, p. 10), temos a figura do diabo, introduzido a partir de um sonho que parece tutorar o protagonista acerca de questões morais, filosóficas enfim. Aqui, tanto a figura do diabo quanto o sonho merecem um parágrafo de nossa atenção, pois que, em tempos ou escolas (Gótico, Romantismo, Decadentismo, Simbolismo) de oposição a uma determinada racionalidade (Iluminismo, Cientificismo finissecular) é comum o usufruto do sonho, da noite, do devaneio ou do delírio (entre outros) como passagem demarcada de um âmbito regido pelas leis da razão para um outro onde as permissividades e o pathos encontram solo fecundo, longe das lanternas do racional e do moral (BOTTING, 2013). Observemos:

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“Que sonho! Foi um sonho... Satan! Qual Satan! Aqui estão as minhas botas, ali está o meu ponche... A ceia está intacta na mesa! Minha garrafa vazia do mesmo modo! Contudo eu sou capaz de jurar que não sonhei! Olá mulher da venda!4” (p. 31). Porém:

A MULHER O que é? Ai! ai! uns sinais de queimado aí pelo chão Cruz! Cruz! minha Nossa Senhora de S. Bernardo!.. É um trilho de um pé. . . MACÁRIO Tal e qual um pé!. . . A MULHER Um pé de cabra ...um trilho queimado...Foi o pé do diabo! o diabo andou por aqui! (p. 33)

Diferentemente da Literatura Gótica setecentista que, apesar de se contrapor aos ideais iluministas/neoclassicistas, frequentemente terminava por coadunar com eles, em que o sonho e o delírio, fugas da razão, eram frequentemente bem demarcados, polarizando e abalizando os dois mundos (o do possível e o do impossível, o do real e o do insólito); a obra azevediana vai de carona com muitos autores europeus, mescla profundamente elementos do real e do irreal e, ao borrar as distinções entre esses, advoga não só pelo fim da rigidez das realidades, das estéticas (a binômia), como também contra a sobriedade racional nos estilos que lhe antecedem e ainda, ao nos incitar a dúvida entre o real e o onírico, o valor didático da luz da razão. É nesse aspecto que o diabo, figura monstruosa, antítese nas sociedades ocidentais (por legado cristão) do decoro trazido a esse lugar intersecional, serve como uma espécie de "tutor" às

avessas.

Para Punter e Byron (2004c), as figuras monstruosas são frequentemente a personificação do anormal e salientam o que vai de encontro à circunspecção do normal, enfim servindo como uma amostra (daí a etimologia da palavra monstro, mostrar) de tudo aquilo que está além das fronteiras do aceitável. Portanto, as figuras monstruosas representam, especialmente o diabo para o Romantismo, que o toma emprestado amiúde, o que tanto na sociedade quanto no indivíduo são recalcados. Para Cohem

4 AZEVEDO, Álvares. Macário. Retirado de <https://www.algosobre.com.br/downloads/livros-obrasliterarias-pdf/469-alvares-de-azevedo-macario/file.html>, último acesso em segunda feira, 2 de Abril de 2018. TODAS AS CITAÇÕES A ESSA OBRA SEGUIRÃO A MESMA REFERÊNCIA.

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(2000) é impossível desvencilhar a ascensão de uma figura monstruosa de uma esquina metafórica que propicia esse surgimento. No caso do drama azevediano aqui apresentado, a figura diabólica vai literalmente fazer o papel de "advogado do diabo" (defender aquilo que é explicitamente contrário um determinado decoro) e, segundo Cunha (2004b, p. 117), fazendo a vez do velho sábio encontrado na obra de Gonçalves Dias que comumente traz em si a sabedoria contra o mal, tutorar Macário nos embates ideológicos e introduzi-lo a um viver verdadeiro:

SATAN Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os estudantes são estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isto salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante, tu. (p. 19)

Como recorrente nas obras que lidam com o monstro, há sempre um ser humano ordinário, mundano, em cuja mente o monstro não pode penetrar ou abalar a menos que haja, nesse humano, uma pré-disposição, é por isso que a professora Maria Conceição Monteiro (2017) cita o "inumano" (toda figura que transcende ao humano) como aquilo que nos evidencia o que há de mais humano, em nós... humanos:

MACÁRIO Boa-noite, Satan. (Deita-se. O desconhecido sai). O diabo! uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles. Olá, Satan! (p. 17)

Há outro personagem na obra, que mais adiante entra na narrativa, seu nome é Penseroso. Macário e Penseroso se engajam em discussões acerca do valor da arte, da literatura, enfim. A professora Cilaine Cunha (2004b) recorre ao fato de que ambos os personagens são letrados, o que justifica uma constante reflexão sobre a arte e que, aqui pautamos, evidencia na obra uma crítica que transcende e pode facilmente ser compreendida como um questionamento, por parte do autor, acerca do fazer artístico. De um lado, Macário e Satã advogam em favor da ideia de que, ante a um mundo em

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que a ciência não pode explicar, corrompido, em que se evidencia o desaparecimento de Deus, a literatura tenha sofrido "a absorção da melancolia, do ceticismo e da degradação moral; ideia esta desenvolvida pelo próprio Álvares de Azevedo num de seus estudos literários, em que, procurando entender o caráter dissoluto da obra de Byron" (CUNHA, 2004B, p. 117). Tal ideia parte de uma herança "macabra" advinda da profunda descrença dos ideais do progresso e da razão iluministas após o derramamento de sangue que causará o trauma que o Romantismo tem como primeira experiência. É importante lembrar que, no contexto europeu, alguns precursores como Sade, desacreditados dos ideais racionais e dos excessos da Revolução Francesa que, com maestria, recorreram ao sexo e à libertinagem como resposta a um Estado moralizante que era, acima de tudo, imoral. Assim, em Macário, bebendo da mesma fonte que seus antecessores, "um período histórico marcado pela descrença e pela turvação das esperanças só poderia produzir uma poesia de cunho fúnebre" (CUNHA, 2004b, p. 117). A autora vai mais além e desvela em sua análise uma semelhança ainda maior entre a obra de Azevedo e Sade ao dizer que "(n)essa novela, a estilização da realidade como degradante e moralmente viciada desenvolve-se sob uma perspectiva cínica em que a violação de valores morais pelos diversos narradores justifica-se na falta de ética predominante no mundo" (CUNHA, 2004b, p. 123). Do lado oposto está Penseroso: "A força da fé na razão" é "representada por Penseroso" (CUNHA, 2004b, p. 129). Satã e Penseroso discutem pela companhia de Macário, que, a essa altura, parece representar o leitor das obras, cindido entre caráter moral e o imoral, uma literatura marcadamente apologética às descrições da natureza e uma outra que se pretende emancipar:

PENSEROSO Por ela fui pedir à solidão os murmúrios, fui abrir meu coração aos hálitos moribundos do crepúsculo, ajoelhei-me junto das cruzes da montanha, e no sussurro das aves que adormeciam, no cintilar das primeiras estrelas da noite, na gaza transparente e purpurina que desdobrava seu véu luminoso por entre as sombras do vale, em toda essa natureza bela que dormia fui escutar as vozes intimas do amor, e meu vozes íntimas do amor, e meu peito acordou-se cantando e sonhando com ela! (p. 42)

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Também Macário, em grande parte da obra, parece não estar apenas cindido, mas tomar partido de Satã, defendendo a fatalidade que pervade a obra, a mescla do belo e do feio, o belo no feio:

Não maldigas a voz rouca do corvo—ele canta na impureza um poema desconhecido, poema de sangue e dores peregrinantes como a do bengali é de amor e ventura! Fora loucura pedir vibrações a uma harpa sem cordas, beijos à donzela que morreu —fogo a uma lâmpada que se apaga. Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera. (p. 43)

E prosseguem num embate entre a moralidade/ufanismo e a imoralidade:

PENSEROSO (...) Esperanças! e esse descrido não palpita de entusiasmo no rodar do carro do século, nos alaridos do progresso, nos hosanas do industrialismo laurífero? não sente ele que tudo se move—que o século se emancipa— c a cruzada do futuro se recruta? Não sonha ele também com esse Oriente para onde todos se encaminham sedentos de amor e de luz? Esperanças! e esse Americano não sente que ele é o filho de uma nação nova (...) MACÁRIO Muito bem, Penseroso. Agora cala-te: falas como esses Oradores de lugares comuns que não sabem o que dizem. A vida está na garrafa de Conhaque, na fumaça de um charuto de Havana, nos seios volutuosos da morena. Tirai isso da vida—o que resta? (p. 44).

A exemplo do filósofo grego Sócrates, Penseroso morre envenenado, porém não condenado à cicuta por saber muito; mas condenado por uma agonia que a luz da sua razão não podia dar conta, vítima do pathos que nenhuma esperança, sobriedade, fé ou progresso podiam dar cabo. Em vez de corromper os jovens na ágora grega, deixou corromper sua fé. É notório perceber que ele se torna "febril" (palavra recorrente nos poemas românticos, que o próprio Álvares de Azevedo usa) antes de sua derrocada. A morte de Penseroso representa, portanto, a morte simbólica da possibilidade de uma literatura pautada na fé e na razão, na luz, no indianismo, de um resquício de decoro do Neoclassicismo e as demandas literárias nacionais. Penseroso, ao contrário de Macário, não aceita os interditos e as imoralidades da morte em vida, como filosofia, como ideário, sucumbindo então à morte - ou tendo nela sua redenção? -, enfim. Ao passo que Macário está pronto para a aceitação daquilo que, segundo Bosi, é característica

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marcante da obra azevediana: não uma morte que remete ao ideais platônicos de libertação da alma do corpo-prisão, mas da putrefação, da decomposição em vida. Morto Penseroso, Macário torna-se solo fecundo para as sementes diabólicas de Satã (representante da imoralidade) que se vê livre de qualquer entrave na sua tutoração. Tal qual nos desenhos infantis contemporâneos, em que a figura do demônio e do anjo tentam convencer o protagonista sobre suas ações, vence o Diabo. Nesse aspecto, Antônio Cândido também vê um quê de socrático na obra, porém, no tangente às declarações homoeróticas de Satã:

Talvez se trate dum homoerotismo de tipo socrático, segundo o qual Satan se dedica a formar à sua maneira o pupilo adolescente. Seja como for, morto Penseroso ele parece decidido a ir mais longe na instrução de Macário e o leva a uma orgia. Não para participar, mas para ver. E o drama acaba de repente, no meio de uma fala; ou por outra, não acaba. Daí surgir a hipótese, talvez audaciosa, mas bem encaixada na verdade dos textos, de que A noite na taverna pode ser lida como seqüência do Macário (CÂNDIDO, 1989, p. 13-14)

O drama acaba bruscamente na fala "Macário — Cala-te. Ouçamos." (p. 56); marco em que coincide com o início de Noite Na Taverna: "— Silêncio! moços! acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos?"5 (p. 1). Ao terminar uma peça teatral que mescla convulsivamente o sonho e a realidade e, dando continuidade, iniciar outra obra que se introduz com o título "Uma noite do século", Álvares de Azevedo insinua, propositadamente ou não, o fim decretado da luz do dia, do Século das Luzes, para introduzir o leitor, que toma a perspectiva da visão de Macário, à Noite do Século (note a inversão da ordem das palavras tanto quanto o uso do antônimo). Ao tirar o foco externo do personagem Macário em relação ao leitor e torná-lo interno, o autor faz com que se confundam as identidades (leitor x Macário), talvez explicitando aí sua defesa em relação a uma literatura imoral, em que prepara o leitor para a nova literatura porvir, em que o decoro e a utilidade de outrora dão lugar aos vícios da natureza humana sem que

5 AZEVEDO, Álvares. Noite na taverna. Retirado de <http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/ Livros_eletronicos/noitenataverna.pdf> , último acesso em segunda feira, 2 de Abril de 2018.

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necessariamente haja o utile. Convida-nos a deixar o âmbito da luz iluminista e nacionalista, após envenená-los, e entrar na noite genuinamente romântica. Mas não é só no plano semântico, do significado, que o autor parece defender uma expressão moderna da literatura. No significante, no que diz respeito à forma, há também uma transgressão dos gêneros que Antônio Cândido alcunha como sendo de "raro malabarismo" (CÂNDIDO, 1989, p. 14). Primeiramente, é importante notar que, apesar da construção dramática de Macário, o texto é "feito mais para a feitura do que para a apresentação" (CÂNDIDO, 1989, p. 10). Os indícios disso são claros já na introdução:

Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo: — não importa. Não o fiz para o teatro: é um filho pálido dessas fantasias que se apoderam do crânio e inspiram a Tempestade a Shakespeare, Beppo e o IX Canto de D. Juan a Byron; que fazem escrever Anunciata e O Conto de Antônia a quem é Hoffmann ou Fantasio ao poeta de Namouna (p. 3)

Não apenas, mas a própria estrutura interna do drama é duvidosa, há momentos em que, com características que fogem ao script teatral, há uma suspensão da forma dramática no momento intitulado como "Páginas de Penseroso" (p. 49), tal fuga se mostra tão brusca que nos parece muito improvável ser mero descuido do autor. Sendo o Romantismo um estilo literário marcado pela busca de uma maior liberdade e hibridização dos gêneros literários e sendo o gênero escolhido pelo autor em Macário um dos pilares dos gêneros clássicos da literatura, sua modernização, a fusão de suas formas bem como a transgressão dessas, nos parece uma subversão do discurso (o classicismo anterior ao Romantismo) de dentro dos próprios alicerces do discurso. Subversão essa que Antônio Cândido diz ser levada "às últimas consequências" (CÂNDIDO, 1989, p. 35), especialmente porque, se crermos estarem conectadas Macário e Noite na taverna, a completude (e a plenitude!) da obra só pode se perfazer na hibridização maior, a que transfere do drama para a novela a continuidade da obra. Não seria absurdo crer em tal teoria, posto que o próprio Cândido já nota que, se analisarmos apenas Macário, o drama é composto de duas partes bastante assimétricas, sendo a segunda menos estruturada dentro dos pressupostos teatrais. Elevando essa

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percepção ao macro, não nos parece demais crer que seria Noite na Taverna uma segunda parte de Macário, em que a assimetria e a hibridização dos gêneros seriam (novamente) levadas "às últimas consequências". Assim, as duas narrativas da obra azevediana advogam contra a utilidade nacional e o ecletismo presentes na literatura nacional; em âmbito global, segue a tendência de primar por uma literatura não mais sóbria, regida pelos ideais neoclássicos e iluministas, subvertendo a luz do dia através do delírio insólito do sonho, introduzindo o leitor finalmente à escuridão e à embriaguez romântica e atinge sua plenitude literária na Modernidade ao se mesclar com elementos do romance de caráter realista (MOISES, 2012 p. 338). Somos introduzidos à modernidade literária da obra azevediana no momento em que assumimos a perspectiva de Macário e observamos a Noite do Século estruturada numa novela, abandonando, enfim, a herança clássica, pastoreados pela insigne desenvoltura do autor.

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