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I – Cruz e Sousa: poeta do abismo

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço, Tu, o poeta moderno, esgrime e torce.

Cruz e Sousa

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Os tópicos que seguem, núcleos de aproximação, situam Cruz e Sousa em um estado de espírito próprio do final do século 19, cuja amplitude, por meio de formas extremadas, compõe uma super-corrente que tem na projeção sentimental as motivações poéticas.

A linguagem de Cruz e Sousa é crítica da cultura e mística pessoal. Em detrimento das ambiguidades que afetaram o poeta, esta linguagem é paradigma do moderno em geral.

Em um período da vida moderna oscilando entre dois mundos paralelos e antagônicos, Cruz e Sousa condicionou as antinomias da época. Neste aspecto, o seu entreouvir deslocou-se para o entreouvir-se.

A escola e as escolas

Quem se aventura no estudo de Cruz e Sousa não pode evitar os acidentes e incidentes de sua vida associados à negritude, como também à doença. Se a obra é a vida de quem a concebe, a de Cruz e Sousa foi pensada como forma de exceder uma cultura que levava a sua situação social e econômica à alienação. Leminski, com senso interpretativo, foi ao cerne da questão: o poeta queria “pôr o preto no branco”, e “comer a classe dominante”.

E Leminski foi mais longe numa biografia ousada e à altura das invenções cruzianas, Cruz e Sousa – o preto no branco. Pela intensidade do poeta, Leminski viu sua vida, entre outras, como “um signo”, atribuindo a estas vidas radicais “uma figura de retórica”. No caso de Cruz e Sousa, é o “oximoro, a figura da ironia, que diz uma coisa dizendo o contrário”.

Cruz e Sousa, ao dizer uma coisa dizendo outra, ele mesmo foi um outro de formações em formações desde os tempos do Ateneu Provincial e das precoces leituras e evocações do mar, na realidade a precocidade do evadir, do pairar.

Cruz e Sousa estudou no Ateneu Provincial de 1871 a 1875, naturalmente com toda dedicação, sobretudo a matéria já por dentro de suas inclinações, a língua, ou melhor, as línguas: grego, latim, inglês e o francês, vernáculo que foi importante para ele,

para melhor conhecer os autores de acordo com os seus propósitos poéticos, que ocorreu aos vinte anos de idade: Baudelaire principalmente, Huysmans, Villiers Lisle de Adam, Zola e Flaubert, entre outros – escolas dos tempos modernos. Ao mesmo tempo lendo os românticos e os realistas, de que maneira Cruz e Sousa intuiu o que Baudelaire pensava sobre os excessos do romantismo?

Interpretando o moderno como passageiro, Baudelaire foi o primeiro a caracterizá-lo como tendo qualidade própria, independente do passado, assim ultrapassando a velha polêmica entre antigos e modernos. Por outro lado, Baudelaire foi capaz de prever que atitudes consideradas negativas, como o isolamento, a crueldade e o ódio à sociedade – para ele formas de beleza – seriam os pressupostos da arte do futuro, naturalmente um futuro bem perto do poeta francês. Baudelaire, portanto, foi um modelador do futuro por meio da crítica severa ao presente, fundada em uma constatação singular: ao exaltar o artificial contra a sociedade fadada ao empobrecimento das imagens, ele estava revelando “as deficiências do realismo”. Comenta Frederick R. Karl que “aquilo que parece artificial a uma geração torna-se o realismo da próxima”.

Cruz e Sousa, voraz leitor de Baudelaire, a seu modo estava atento a este fluxo e refluxo da linguagem, cujas poéticas oscilavam do sugerir

ao descrever e vice-versa. Em Cruz e Sousa triunfou a sugestão intimamente ligada às supremas imagens do simbolismo. Tanto é que Cruz e Sousa, no contraponto destas vertentes literárias, vai além da observação física, transferindo-a para a observação psíquica, que chama de “abstrações estéticas”. Da observação realista, portanto, Cruz e Sousa evita “tudo quanto ela tem de mais presente, seco e documental”.

Antes deste fastígio em prosa e verso, encontra-se o poeta em formação, na qual a sentimentalidade depura-se frente à natureza e nos apelos do mar.

Desterro, na juventude de Cruz e Sousa, era uma província entregue ao abandono e nitidamente dividida em classes. Por um lado, a população sem recursos e, por outro, uma minoria que desfrutava privilégios aristocráticos, próprios do regime imperial. Não é preciso enfatizar que, neste meio, um negro inteligente logo seria transformado em alvo de hostilidades e humilhações. E isso não tardou a vir de todos os lados. Mas Cruz e Sousa, graças à sua sensibilidade incomum, antes dos vinte anos sabia que somente a inteligência transfigurada em arte poderia ser o broquel ou o talismã na proteção contra as adversidades, chegando a exclamar com aspiração juvenil: “O homem nasceu pequeno / Mas com as letras cresceu”.

Cruz e Sousa, prematuramente, sentia a possibilidade de algum alívio espiritual, de alguma verdade pessoal através da arte. Assim, esboça-se um panteísmo com anseios de evasão: sair de si, estar em outro lugar.

O mar é a principal coordenada física para este sentimento singular, preparando o desterrense para ingressar nas invenções mais extremas dos modernos em seus períodos sucessivos desde Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud.

O mar, como mais tarde Cruz e Sousa vai cristalizar em linguagem, prometia “o inefável aspecto das longas viagens”, “ignotos destinos”, “países lindos e felizes, floridos trechos de terra, ilhas tranquilas, províncias loiras”. Diante do mar, “como o céu para um crente”, Cruz e Sousa encontrava o tom, “esguios caracteres de música”, de sua voz futura.

Teleologia

Com Baudelaire, o vazio é convite para beber, viajar, descobrir. A viagem, especificamente, confunde-se com o sonho por meio do artifício, uma região de narcóticos que deve levar o poeta para outra região – a da voz primeira. A viagem dos poetas sucessores de Baudelaire é melancólica, estado de espírito que divide os viajantes

entre passado e futuro, ambiguidade que dissolve os provisórios liames do eu com a sociedade, em consequência provocando a cisão entre ser e consciência. São as normas perdidas de Rimbaud. Enquanto a viagem de Baudelaire perde as coordenadas físicas, a de Rimbaud incorpora a sua gravidade.

Para Rimbaud o sonho foi a “maior realidade”, identificando para si, e contra a sua época, o “paraíso artificial” baudelairiano como realidade mesma. Ao desregrar os sentidos, nasce o poeta: Je me suis reconnu poète. Je suis um autre: Eu me reconheci poeta, eu sou um outro. Ao recapturar o espírito das coisas mortas, e ao penetrar no desconhecido com “novas formas”, Rimbaud diz que Lamartine, Hugo e Musset estão ultrapassados. Mesmo Gautier, Leconte de Lisle e Banville não foram capazes de vidência total. Somente Baudelaire, para Rimbaud, foi capaz, mesmo que suas formas fossem “gastas” ou “mesquinhas”.

A devoção de Cruz e Sousa por Baudelaire equivale a deste por Edgar Poe. Ao referir-se ao arcano do romantismo francês, Cruz e Sousa nomeia o guia: “nevoento aquário de spleen, profeta muçulmano do Tédio, ó Baudelaire desolado, nostálgico e delicado! Onde está aquela rara, escrupulosa psicose de som, de cor, de aroma, de sensibilidade...?” O credo de em Baudelaire é a identificação de Cruz e Sousa com o sonho,

a viagem que precisa empreender para fora da condição social que, no tempo, somente poderia ser engendrada com a linguagem para, enfim, fazer-se poetam ou melhor, missão de poeta.

Ao desviar-se dos dilemas sociais, na realidade Cruz e Sousa desvia-se de linguagens normais e convenções do ambiente, tendo como único recurso o espelho de suas faces. Quanto mais torna-se ciente dos limites cimentados em torno dos desenvolvimentos pessoais, mais expande-se em direção do espectro multifacetado do subliminar. Sem temer os seus ditames, pois é na simbolização do irracional que está o signo da destinação tão cara a poetas e prosadores nas últimas décadas do século 19. O homem não pode fugir de sua fatalidade. O eu louco, porém, pode excluir-se “dessa regra” nas palavras de Frederick R. Karl: a viagem que o louco “empreende em tanta prosa e poesia simbolistas francesas no século XIX dá ideia de que ele pode, ao mesmo tempo, abraçar o seu destino e dele escapar”.

Para Cruz e Sousa estas alternativas têm impulsos com o sonho – “bordão clemente”, “secreto”. Enfeitiçado pelo quimérico, no entanto ele combate seus desvãos no âmbito do poema, em sua elaboração, que é o seu corpo versificado: “Como eu vibro este verso, esgrimo e torço, / Tu, o poeta moderno, esgrime e torce”.

Desvio, liame, esgrima

Mais um eco baudelairiano em Cruz e Sousa. São as relações intrapoéticas, apropriações e desapropriações que representam a continuidade dos poetas. Para Harold Bloom, o teórico da influência, o conceito central da continuidade é o clinamen ou desvio: o discípulo desvia-se do precursor ao experimentar “a lei particular” de sua poética. Haroldo Bloom, nestes termos, cita os átomos de Lucrécio quando se deslocam no espaço, desviando-se e alterando o movimento: “Não fosse esse desvio e tudo cairia em linha reta sempre, como gotas de chuva pelo abismo do espaço. Não haveria, entre os átomos, nem colisão nem choque. Se assim fosse, a natureza jamais teria criado coisa alguma”.

Ao clinamen cruziano adere-se tessera, ou liame, que aspira complementar o precursor. O termo foi empregado por Lacan ao citar Mallarmé com o referencial da moeda com as efígies apagadas, circulação de mão em mão: “Essa metáfora é o suficiente para nos fazer recordar que a Palavra, mesmo quando já quase completamente desgastada, preserva seu valor de tessera”.

Retomar a palavra do precursor, com a alteração de sua potência, é tarefa que somente poetas fortes podem tentar. E a apropriação de sua voz, que passa pela expropriação, não deixa de ser o “reconhecimento” semelhante ao dos mistérios

religiosos, uma senha quando fragmentos de terracota eram unidos.

O liame de Cruz e Sousa com Baudelaire é o culto pela arte com todos os prismas que dizem respeito ao invisível, mas tangível em imagens que fazem o vocabulário dos iniciados. Não restam dúvidas acerca da devoção de Cruz e Sousa por Baudelaire, que se defendia dos choques da vida parisiense, choques inevitáveis para quem aspira “desposar a multidão” como Constantin Guy, o pintor da vida moderna. É interessante observar que Baudelaire tomou como exemplo para denominar a modernidade um artista voltado para a ilustração de costumes. Por outro lado, o que fez Baudelaire pensar neste pintor de sensações foi o seu senso incomum de “curiosidade”, de estar no “numeroso”, na “multidão”, a ponto de não o chamar de “artista”, porém de “cidadão do mundo”.

Baudelaire transferiu os choques para o ato criativo, identificado e imaginando Constantin Guy em seu ateliê: “inclinado sobre a mesa, dardeja sobre uma folha o mesmo olhar que pouco antes dirigia às coisas, dá golpes de esgrima com o lápis, a pena, o pincel, borrifa o teto com a água do copo, enxuga a pena na camisa; apressado, violento, ativo, como que temendo que as imagens lhe fujam; em luta apesar de só e como quem desfere golpes contra si mesmo”. O temor de Constantin Guy diante do fugitivo, do que se desfaz sob a pressão

do moderno positivamente visto como “transitório” por Baudelaire, acaba sendo confronto consigo mesmo. Desta maneira, a ideia de moderno atua em cada indivíduo como tempo na consciência.

Como não recordar os “sobressaltos da consciência” na dedicatória de Pequenos poemas e prosa a Arsène Houssaye, pois é do confronto sem tréguas nas ruas modernas que as pessoas, ou os transeuntes como pensa Baudelaire, têm nas sinestesias próprias deste ambiente de câmbios repentinos as mais inesperadas e obrigatórias reações? O poema em prosa, para Baudelaire, estava mais próximo das mutações inevitáveis da vida urbana, como também para Cruz e Sousa. Em “Intuições”, texto que se expande para a teoria, encontra-se o extrato de seu pensar: a prosa não é “impassível diante da flexibilidade nervosa, da aspiração ascendente, da volubilidade irrequieta do Sentimento humano”. E Cruz e Sousa conclui que a prosa independe de “fórmulas preestabelecidas”.

Além do esgrimir de Constantin Guy, nos “Quadros parisienses” Baudelaire reflete sobre o treino com a configuração metafórica da arma flexível ao enfrentar o choque intrínseco na elaboração do poema. Nos arrabaldes, sob o sol cruel, o poeta exercita o que chama de “minha estranha esgrima”, sujeito ao “acaso da rima” e a tropeços “em palavras”. Às vezes, porém, surgem “versos há muito tempo sonhados”.

A esgrima do versejar, entre outras coisas, é o risco de viver e fazer que mantém o poema em seu devir. Para Walter Benjamin, a analogia do esgrimir decifra-se no contexto do poema: “Os golpes que ele desfere são destinados a abrir-lhe um claro entre a multidão”. Nesse caso, o claro que deve ser aberto é na “multidão invisível das palavras”.

Esgrimir e versejar exigem posturas exatas, reflexos precisos. O poeta-esgrimista, entretanto, não pode evitar o acaso que nas primeiras horas do simbolismo não poderá ser abolido, “jamais” com o “lance de dados” de Mallarmé.

Neste aspecto, um dos principais focos de atenção de Baudelaire com relação a Edgar Poe, especialmente em função de “O corvo” e em consequência da “Filosofia da composição”, é o procedimento voluntário na realização poética. O ensaio de Edgar Poe – biografia de um poema – que em profundidade expõe as fontes e seu processo compositivo, serviu para Baudelaire reafirmar o rigor poético, aliás transformado em vigilância crítica do poema amplamente exercida por outros poetas como Mallarmé, Valéry e demais modernistas.

Cruz e Sousa, por seu lado, sempre esteve atento ao que chamou de “frase no pulso”. Ao domar o verso, sulco da alma, o poeta estava depurando as paixões. Desta maneira, é o verso a matéria de mutação da palavra, do poema

propriamente dito entregue à virtualidade permanente dos sentidos. Este, por si mesmo, é um capítulo extenso nas elaborações cruzianas: o poema, seja em verso ou prosa, é o objeto adequado para a linguagem enquanto crítica de si mesma. “Arte”, entre tantos outros momentos reflexivos de Cruz e Sousa, é exemplar. Ao poema dedicou duas versões com trechos não modificados e com alterações, sempre com o mesmo objetivo: atingir a linguagem mais adequada. Na primeira estrofe, e assim compõe-se a elipse, o poeta é a vigilância no escrever, sendo o escrito o intervalo de limites. São versos que se reportam à “frase no pulso”. Nas versões, o esgrimir deve ser “um pequeno esforço” para não forçar a ideia. Nas duas estrofes, contudo, o que deve fazer o poeta entra em choque com a própria ideia de ser poeta. Ele, na primeira versão, é “sereno” e, na segunda, “moderno”. Para dominar a linguagem é indispensável a serenidade e para dominar a era de crise que se anuncia, o poeta não pode evitar rebeliões inovadoras. E Cruz e Sousa acaba teorizando o que é o ofício das palavras:

Busca palavras límpidas e novas, Resplandecentes como sóis radiosos E sentirás como te surgem trovas Belas de madrigais deliciosos.

Busca também palavras velhas, busca, Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário E então verás que cada qual corusca, Com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como espadas Cheias de nódoas de ferrugem, velhas, Mas que assim mesmo estando enferrujadas Tu, grande artista, as brunes e as espelhas.

Que toda a vida e sensação de estilo Está na frase, quando se coloca, Antiga ou nova, mas trazendo aquilo Que soa como um tímpano que toca.

Dandismo e satanismo

A presença de Baudelaire no simbolismo brasileiro é inquestionável, poeta que Cruz e Sousa teve o privilégio de entrar em contato por meio de Gama Rosa quando foi nomeado, em 1881, governador da Província de Santa Catarina. Andrade Muricy diz que Gama Rosa deu a ler ao poeta “obras de Poe, Baudelaire, Huysmans, Sar Péladan, Villiers de I’sle-Adam, e outros simbolistas, trazidas para o Brasil por Medeiros e Albuquerque, que as transmitira a Araripe Júnior, amigo daquele político e publicista”.

Conforme nota de Zahidê Lupinacci Muzart em Cartas de Cruz e Sousa, livro que organizou e introduziu, Gama Rosa “cercou-se de intelectuais: Virgílio Várzea, Oscar Rosas, Araújo Figueiredo e Cruz e Sousa”. O próprio poeta, em carta de 11 de abril de 1894 ao escritor e historiador de arte Gonzaga Duque, ao comentar a revista que vinha idealizando, “Revista dos Novos”, menciona Gama Rosa: “Penso também que o único homem fora de nossa linha artística de seleção relativa possível, que dever ser simpaticamente admitido, para críticas científicas para artigos de caráter positivo moderno, é o Dr. Gama Rosa, que podemos considerar, à parte toda a nossa independência e rebelião, como um austero e curioso Patriarca do Pensamento novo”.

Cruz e Sousa encontrou em Baudelaire afinidades que exerceram determinadas confluências. Sobre esta questão, cujo débito provoca uma ansiedade irreversível em alguns poetas, Cruz e Sousa teve um olhar esclarecedor que por si mesmo é o suficiente para eximi-lo da angústia da influência. Em “Intuições” ele escreve:

Os grupos, como se compreende, são os que se pode dizer criados por abstrações, isto é, individualidades que já existindo, aqui, além, lá, em todo o tempo vêm a se ligar mais tarde, no mesmo meio ou fora dele,

por grandes linhas gerais, por correntes de simpatia intelectual, por harmonia de requintes, até certo modo unos, embora cada uma dessas individualidades tenha a sua enfibratura especial correspondente a um dado requinte.

Com o discernimento de Cruz e Sousa acerca da influência, cabendo às suas palavras o liame e o desvio entre poetas, o trecho dispensa maiores comentários. Mesmo assim, a “enfibratura especial” aponta para algo mais especial ainda: a originalidade.

Cruz e Sousa, além do dandismo, travou um diálogo com as possibilidades satânicas, ocultas, deslocando o eu herdado para o si-mesmo, alteridade que obteve dimensões estéticas à medida em que o poeta foi inscrevendo-se em sua produção vertiginosa desde Broquéis e Missal. Referir-se às obras iniciais de Cruz e Sousa é, pelas evidências em quem incorporou o abismo de sua época, trazer à luz as imagens ali contidas e francamente metamorfoseadas nas obras posteriores. Tais aspectos, oportuno é dizer, apresentam o antitético, que foi o pensamento desestabilizador da filosofia e da arte no final do século 19, podendo-se atribuir a Cruz e Sousa a manifestação agonista típica do homem nietzschiano. É com Nietzsche que as energias materiais foram

revertidas em energias espirituais, distinguindo modernização de modernismo. No processo do moderno, então, encontram-se forças conflitantes que de uma forma ou de outra desaguaram para as utopias artísticas.

O dandismo, na definição de Baudelaire, é “caráter de oposição e revolta” [...] “originalidade contida nos limites exteriores das conveniências”. Aparências contra aparências, respectivamente diferenças contra trivialidades: no dandismo há “quintessência de caráter e uma inteligência sutil de todo o mecanismo moral deste mundo”.

Importa na estética comportamental do dândi a necessidade de se fazer a si mesmo como um original; originalidade que se desdobra com o paradoxo de excluir-se da história e dela fazer parte com revoltas emocionais que, levadas ao limite, proporcionam uma relativa quietude em meio ao fluxo das aparências. O poeta encena, com esta cisão crítica, a ideia de reforma, de inspiração e de revolução – “os três elementos constitutivos do poeta” nas palavras de Cruz e Sousa em “A musa moderna”, texto em que também diz que a originalidade é “a primeira qualidade do homem moderno”.

O dandismo, por outro lado, é a face amena, o jogo de disfarces, ocultamento da erosão emocional do poeta moderno que, assim, envia suas reações poéticas ao satânico.

Ao poeta moderno em geral, Harold Bloom interpreta o Satã de Milton – a consciência de estar caindo. Satã foi Deus e cai para fora do homem. Na queda transmuta-se em adversário e funda o inferno. Bloom vê nesta imagem do Paraíso perdido a condição do poeta moderno como adesão ao heroico. Satã: “Enquanto caía, me desviei; consequentemente eis-me aqui prostrado num inferno que é – um tanto melhor – obra minha”.

Para Nietzsche, Satanás é “o mais antigo amigo do conhecimento”, enquanto, através de Lord Byron, entrou em voga a ideia de que o mesmo é amigo do homem, imagem amplamente difundida por todos os românticos, começando com Baudelaire: “Meu querido Belzebu, te adoro”. E Cruz e Sousa?: “o sábio dos sábios”.

Com as “flores negras do Tédio”, com as “nevroses ardentes do Pensamento”, Cruz e Sousa revigorou-se exatamente com a consciência do mal. Do mestre de encantamentos, Baudelaire, apreendeu a converter os malefícios em energias criativas, porém afastando-se da atitude meramente epigonal.

Enquanto Baudelaire e tantos outros modernistas foram ao encontro de culturas extemporâneas, Cruz e Sousa veio desta cultura, africana, afro-brasileiro educado pela civilização branca, dispondo de todo o repertório do branco europeu como acentuou Leminski em Cruz e Sousa – o preto no branco.

O dito de Roger Bastide, que Cruz e Sousa queria ser branco, é uma conclusão adequada, mas não deixa de ser parcial, enquanto ele definia-se ostensivamente como poeta entre forças antagônicas – a racial e a social – em uma nação que acabava de sair do regime escravocrata. Para Cruz e Sousa interessava, e sobremaneira, o que independe da pele: “Qual é a cor da minha Forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e febres?” Quanto à projeção obsessiva de brancuras, é a sublimação de seu psiquismo, algo assim como o azul para Mallarmé e o amarelo para van Gogh. E o branco foi uma constante do simbolismo em nome do inefável. Porém, não se pode perder de vista que o branco, na obra de Cruz Sousa, vai cedendo espalho para o preto, passagem aliás esboçada, como um paradigma, em ”Antífona”. Quanto ao desejo por mulheres brancas, não há o que se questionar: são preferências pessoais, as “províncias loiras” do poeta, mais ainda consideráveis ao fazer do poema o órgão de ereção, de erotismo contra a interdição e o preconceito. Baudelaire e Gauguin, para dar apenas dois exemplos, não foram seduzidos por peles de bronze, mulatas e tahitianas radiantes? Quando Cruz Sousa, em carta a Virgílio Várzea, admite ser um “pobre artista ariano”, é simplesmente por ter adquirido, “por adoção

sistemática, as qualidades altas dessa grande raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça e da ilusão”. Neste sentido, são os “atrevimentos razoáveis e admissíveis do poeta” que o transportam para fora das contendas pessoais e do meio, à custa de todas as contendas interiores. Não são palavras de efeito quando o poeta remonta ao que julga como “doença artística”, é a arte, suas abstrações simbólicas, a expressão da transcendência.

Cruz e Sousa, mesmo cultuando a “eucarística espiritualização” através da poesia, por estas características, evoca o mal como uma forma de fortalecimento, sendo, em poemáticas que lembram culturas primitivas, o mágico de si mesmo. E o “ódio” torna-se “sagrado”:

Ó meu ódio, meu ódio majestoso, Meu ódio santo e puro e benfazejo, Unge-me a fronte com teu grande beijo, Torna-me humilde e torna-me orgulhoso.

Humilde, com os humildes generoso, Orgulhoso com os seres sem Desejo, Sem Bondade, sem Fé e sem lampejo De sol fecundador e carinhoso.

Ó meu ódio, meu lábaro bendito, Da minh’alma agitado no infinito. Através de outros lábaros sagrados.

Ódio são, ódio bom! Sê meu escudo Contra os vilões do Amor, que inflama tudo, Das sete torres dos mortais Pecados!

O antitético da história em transe, que por mimetismo Cruz e Sousa assimilou com leituras que promovem a escrita, tem reflexos em sua vida que, na realidade, é a produção vulcanizada de seu imaginário. Desta maneira, é comum encontrar-se o poeta entre forças antagônicas não somente raciais e sociais. Ou melhor: os antagonismos provocados por esta condição são transferidos para outras esferas, situadas nos processos poéticos em que o sentimento é o estar acima, estética ora contemplativa ora alucinada.

Além do dandismo e do satanismo, nirvana e loucura passam pelos meandros cruzianos.

Enquanto os nirvanismos traduzem o aniquilamento do ser com êxtases – “Larga e búdica Noite redentora!” – a loucura fatual vinha fazer coro com os delírios poéticos, imaginários do poeta revoltado. Cruz e Sousa leu Schopenhauer e Hartman, apóstolos da subjetividade, do sofre intrínseco da vida, pessimistas natos. E Cruz e Sousa encontrou correspondências entre esta filosofia e o pensamento de Buda sintetizado no ensino do sofrimento e do modo de livrar-se do sofrimento.

A linha traçada entre duas culturas opostas, porém co resultados em comum – o repouso mental – aproxima Cruz e Sousa do expressionismo com derivações abstratas, cujas expressividades atingem a plenitude, ou seja, o nada, o não ser. Mesmo que não tenha-se como motivação o estado nirvanizado, na pulsação dos versos de Cruz e Sousa o significado das palavras tende à dissolução por meio do sentido inominável do ritmo, da sonoridade, mestre que foi de aliterações e onomatopeias, além de fazer ícone acenar do interior das palavras.

Não é demais reafirmar que para os precursores do modernismo a vida que tiveram foi exigida por suas obras. Cruz e Sousa, com acentuada parcela de representação neste processo da arte, jamais deixou de romper o círculo de adversidades que os fatos cruciais impunham, sociais ou familiares como a demência repentina de sua mulher, Gavita. Na prosa que escreveu sobre o episódio que durou seis meses, “Balada de loucos”, Cruz e Sousa demonstra que sempre esteve em contato com o irracional. E, agora, provando suas trevas não encontrava mais a tênue diferença entre o fato em si, a loucura de Gavita, e a loucura de seus sonhos. “Eu e ela, ela e eu! – ambos alucinados, loucos, na sensação inédita de uma dor jamais experimentada”.

O luar dava-me a impressão difusa e dormente de um estagnado lago sulfurescente, onde eu e ela, abraçados na suprema loucura, ela na loucura do Real, eu na loucura do Sonho, que a Dor quintessenciava mais, fôssemos boiando, boiando, sem rumos imaginados, interminamente, sem jamais a prisão do esqueleto humanos dos organismos – almas unidas, juntas, só almas sentindo, desmolecularizadamente...

Na “vulcanizada balada negra”, Cruz e Sousa via nos olhos de Gavita o além ou o aquém do humano: “olhava bem na pupila dos grandes olhos negros, que, pela contínua mobilidade e pela beleza quente, davam a sugestão de dois maravilhosos astros, raros e puros, abrindo e fechando as chamas no fundo mágico, feérico da noite”. A demência de Gavita, ave noturna, enlaçava o poeta com “tentáculos letárgicos, veludosos e doces e fascinados de um animal imaginário, que me deliciassem, aterrando...”

Quem poderia dizer, em língua portuguesa, que o poeta, no limiar de uma nova língua, é o louco mesmo?

Tu és o louco da imortal loucura, O louco da loucura mais suprema. A terra é sempre a tua negra algema Prende-te nela a extrema desventura.

Mas essa mesma algema de amargura, Mas essa mesma Desventura extrema, Faz que tu’alma suplicando gema E rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado Que povoas o mundo despovoado, De belezas eternas, pouco a pouco.

Na natureza prodigiosa e rica Toda a audácia dos nervos justifica Os teus espasmos imortais de louco!

Os gerenciadores da palavra comportada, parnasianos e naturalistas, com certeza não. Os simbolistas, para estes beletristas, não passavam de “minoria desprezível. Minoria sim, tendo à frente Cruz e Sousa e seus termos, sob qualquer circunstância transmitido estesias:

Rir! Não parece ao século presente Que o rir traduza, sempre, uma alegria... Rir! Mas não rir como essa pobre gente Que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente, Com que André Gil eternamente ria. Rir! Mas com o rir demolidor e quente Duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece. Porque o chorar nos ilumina e nos aquece Nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste... Pois que o difícil do rir bem consiste Só em saber como Henri Heine rir!...

Cruz e Sousa, como Baudelaire, provocou choques e defendeu-se dos provocados pelo meio com o verbo. E quando é assim, ação e ideia são inseparáveis e instauram a reação das palavras. A invisibilidade em torno do poeta, curiosamente ele foi ponto de teatro, foi respondida com outra invisibilidade, a do poema, porém capaz de tornar visível o sujeito estético. O poeta de Desterro, com este ponto de vista, coloca-se nos impulsos iniciais das vanguardas.

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