Ivonete Nink fala sobre memória indígena e colonialidades 18 de abril de 2023.
Hoje vamos conversar sobre memória indígena e colonialidades com Ivonete Nink Soares, que é doutoranda em Estudos de Linguagens na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Mestra em Letras pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior por Faculdades Integradas de Ariquemes (FIAR), graduada em Letras - Português e Inglês por Faculdades Integradas de Ariquemes (FIAR). Professora efetiva do estado de Rondônia para a área de Língua Portuguesa. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, Literatura de indígenas, Leitura Lúdica, Formação de Leitores e Produção Textual. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguagens e Educação - (Geple-CNPq/UFMS) e Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Sociolinguísticas, Decolonialidade e Ensino de Línguas - Coletivo POSLIDEN - na UFMS. Desenvolve pesquisa sobre as memórias e as narrativas indígenas. Imagem cedida pela entrevistado.


1. Conte um pouco sobre você e sua pesquisa no doutorado. Eu sou Ivonete Nink Soares, professora da rede pública do estado de Rondônia. Trabalho com a educação básica há mais de 20 anos. Sou a caçula entre 4 irmãos, filha de pessoas que tiveram pouco acesso à escolarização, apenas 2 anos, ambos. Todavia, esse fato não impediu que o estudo fizesse parte das nossas vidas. Minha formação, em nível de 2º grau, hoje ensino médio, foi o Curso de Magistério, concluído no ano 2000. Assim, a docência faz parte da minha vida desde os meus 17 anos.

A minha relação com os estudos sempre foi de muita dedicação, muito mais do que facilidade. Nessa caminhada, alguns professores despertaram em mim a paixão pelos livros, pelo mundo da leitura, daí a escolha pelo curso de Letras, pelos Estudos das Linguagens. Em 2021, ao preparar aulas para uma turma do 6º ano, ensino fundamental, deparei-me, no livro didático, com o excerto de uma obra do autor indígena, Daniel Munduruku, “Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória”. Após esse breve contato, percebi o meu desconhecimento sobre esse e outros autores indígenas, sobre essa e outras etnias. Não me conformei com a situação, fui buscar conhecimentos. Nessa busca, constatei inúmeras lacunas. Enquanto profissional era evidente a falta de informações necessárias para contribuir com o desenvolvimento do pensamento crítico dos meus alunos. A graduação, o mestrado e mais de 20 anos de docência não tinham sido o suficiente para que eu pudesse problematizar, com propriedade, embasamento teórico e, principalmente, por meio da fala, das memórias narradas por essas pessoas, a ótica da história conhecida pela maioria dos não indígenas. Após tomar ciência de muitos (f)atos narrados pelos próprios autóctones, de alguma forma, além do contexto escolar, era meu dever disseminar esses conhecimentos. Somado a isso, retomei uma memória adormecida: meu pai, agora já falecido, dizia que “minha avó foi pega no laço”. Essa cruel frase, além de denunciar a genealogia de muitos brasileiros, gerados a partir de um estupro, também falava de mim. Sou indígena, minha geração tem na sua origem o abuso sexual de uma indígena. Não sei a minha etnia, mas sei que o sangue que corre em minhas veias é indígena, então essa causa também é minha. Assim surgiu o meu projeto de doutorado. Neste estudo, além das reflexões teóricas, pretendo aplicar uma sequência didática. Essa será promovida após debates sobre: “O que é ser indígena? O que define um sujeito indígena? Como os povos indígenas estão presentes na nossa história e nas nossas culturas?”. Vejo nessas perguntas uma forma de averiguar se há lacunas na educação escolar brasileira referentes à história dos povos originários, se a versão única persiste, ou se a diversidade cultural desses povos já é (re)conhecida pela maioria dos alunos. Partindo da hipótese de que os comentários dos alunos, referentes aos indígenas, ainda são portadores de mitos, crenças, imagens estereotipadas construídas pelos colonizadores, será possível investigar como as memórias e as narrativas dos indígenas podem contribuir para a construção de um novo olhar sobre a identidade desses povos.

2. Qual a importância de pesquisas na intersecção entre memória indígena e colonialidade?
Falar sobre colonialidade é falar sobre a lógica que sustenta o pensamento único, dominador, o padrão mundial do poder capitalista, um modo de ver, viver e justificar algumas ações desde os tempos mais remotos até a atualidade.
Em relação ao Brasil, um país colonizado, é irrefutável que desde o momento da invasão houve a imposição do pensamento colonial. Entre tantas facetas desse modo de pensar, todas podem ser percebidas, em alguma medida, no tratamento relacionado aos povos originários, tendo em vista os objetivos da expansão marítima comercial.
Além disso, era conveniente que os indígenas fossem subjugados, inferiorizados, fossem retratados na história como pessoas de menor valor social, sem o intento de trabalhar para o “progresso”. Foi isso que a história fez por muito tempo. Hoje, pela resistência dos povos indígenas, que não se deixaram ser assimilados ou eliminados da nossa história, é possível conhecer outros ângulos sobre o que contaram a respeito da invasão de Pindorama. Todavia, ainda estamos muito distantes de tornar esse conhecimento mais amplo, abordado, discutido e problematizado pela maioria dos brasileiros. Daí a importância em realizar pesquisas na intersecção entre memória indígena e colonialidade. É uma forma de confrontar o que foi difundido, aprender sobre os povos autóctones, compreender e respeitar os seus modos de vida, as suas crenças, as suas culturas etc. As obras de autores indígenas contribuem muito para isso, as memórias narradas por eles confrontam o pensamento colonial. A narrativa construída por meio da memória é um testemunho. O testemunho se dá a partir de um ângulo particular, único, aquele que surge pelas vivências, pelas experiências, pelos atravessamentos do narrador.
3. Existe diferença entre colonialismo e colonialidades?
Apesar de eles serem relacionados, existe diferença sim. Quando falamos em colonialismo estamos abordando um modelo de dominação e exploração pautado nos padrões eurocêntricos. Com o estabelecimento das colônias, os colonizadores, por meio de imposições, modificam a organização social das pessoas que habitam a terra invadida, inferiorizam o modo de fazer dos colonizados, agem sobre os costumes relacionados ao trabalho, às culturas, às religiões, estabelecem novas práticas, subjugam os saberes que diferem da visão eurocêntrica. Quando o período colonial termina, ou seja, quando há a independência política do território que foi colonizado, o colonialismo não deixa de existir, as relações econômicas e políticas persistem. Isso é a colonialidade, a perpetuação do colonialismo. Em outras palavras, a colonialidade é a insistência na lógica da relação entre colonizadores e colonizados. Ela interfere nos diferentes grupos humanos, implica nos modos de vida, afeta, principalmente, as pessoas minorizadas pela sociedade, uma vez que dá maior visibilidade para determinadas formas de existência e saberes. Isso contribui com a discriminação, causa, em alguma medida, a inferiorização de outros.
4. Como você avalia o impacto da colonialidade na constituição de memória sobre os povos indígenas?
De modo negativo, uma vez que a colonialidade contribuiu para a construção de estereótipos, para o estabelecimento de imagens não condizentes com os povos autóctones. Hoje essas distorções ainda reverberam nas mentes, no imaginário dos não indígenas. Isso gerou – e ainda gera – uma inferiorização das culturas indígenas, dos seus modos de vida e das suas crenças. Suscita um problema desafiador a ser superado, incluindo questões de poder, de saberes e de ser. Além disso, a afirmação – que tem na colonialidade seu suporte e fundamento – de que existe uma diferença, uma superioridade, das pessoas da “raça” branca, é, ao meu ver, o maior dos obstáculos a ser superado, juntamente com o patriarcado, é uma das piores heranças do colonialismo, já que afeta diretamente o modo de algumas pessoas verem as outras.
5. Qual é o papel das memórias indígenas na luta contra o racismo e o etnicismo? Elas são extremamente relevantes. A primeira constatação dessa relevância se dá por meio da conscientização de que fazemos parte de um país colonizado. Logo, a história do Brasil, amplamente difundida, tem muitos (f)atos ocultados, distorcidos, expostos a partir do ideal dos invasores dessa terra. Partindo desse princípio, é possível afirmar que quando as memórias indígenas passam a ser divulgadas, expostas, o que foi camuflado pelas narrativas dos colonizadores torna-se mais palpável, mais acessível para as pessoas não indígenas. Desse modo, fica mais fácil promover debates, confrontar informações, conhecer mais sobre esses povos, a partir das suas próprias memórias. Isso é uma possibilidade de desobstruir a invisibilidade pretendida para os indígenas pela matriz colonial do poder. As memórias indígenas quando se tornam textos, orais ou escritos, são reproduzidas com os atravessamentos, com as memórias vividas, ouvidas ou sentidas por esses povos. Elas contam a todos a constituição da identidade indígena, vai além da história do primeiro contato com os invasores de Pindorama, hoje nomeado Brasil, por isso elas desempenham um papel fundamental no combate ao racismo estrutural, assim como o etnicismo.
6. Como a pesquisa de memória indígena pode contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva? Primeiramente, as pesquisas que contemplam as memórias indígenas têm a oportunidade de ampliar o espaço de fala dessas pessoas que foram subalternizadas, colocadas à margem da sociedade por muito tempo, em alguma medida, silenciadas. Depois, quando o pesquisador apresenta as memórias narradas por indígenas, ele traz testemunhos, experiências. Isso é mais importante do que ouvir sobre os indígenas, é ouvir deles. É conhecer as memórias que foram traduzidas por meio de palavras, fizeram-se comunicáveis a fim de externar a identidade indígena, a visão de mundo desses povos, as suas verdades, relembrar as suas diversidades, enunciar, pelas suas perspectivas, o que faltou na história amplamente difundida. Quando outra versão da mesma história é conhecida, principalmente se for relatada pela vítima, a probabilidade de haver uma reflexão é ampliada. Com certeza, isso contribui para a desaprovação de ações injustas, implica em atos mais receptivos aos subjugados. Ao saber que as pesquisas são elaboradas para serem divulgadas, fica evidente que elas, a depender dos objetivos almejados, irão contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva. A inclusão já começa pelo espaço dado aos indígenas nesse campo científico, depois pela disseminação dessas memórias que expõem outras visões de mundo. A justiça começa a ser feita quando os atravessamentos são gerados nos interlocutores, principalmente se este atingir o entendimento sobre o que embasou o maior e mais longo genocídio da história, o indigenicídio. Por fim, as pesquisas que utilizam como corpus as memórias indígenas contribuem para que a sociedade deixe de encaixar os indígenas nos moldes utilizados pelos colonizadores, desfaça os estereótipos, perceba que eles não são seres do passado, são atuantes e resistentes. Somado a isso, não são um povo único, são 305 etnias, 274 línguas, muitas culturas e crenças ainda desconhecidas pelos não indígenas.
