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Territórios negros: patrimônio cultura e memória

Ana Carolina Soares Cruz, cruzanacarolinasoares@gmail.com www.lattes.cnpq.br/95333345924315741 Ellen Bento Alves, ellenabento@gmail.com www.lattes.cnpq.br/90390563637760952

RESUMO O presente trabalho visa refletir como os territórios negros são apagados a partir de um discurso de modernização e de urbanização das cidades, perpassando por um debate no que tange o patrimônio material e imaterial, indissossiados. Assim, a proposta surge com a discussão do webinar intitulado “Patrimônio, museus e reexistências: territórios negros” (2020), disponível na TV ABA, com Simone Vassallo (ABA/UFF) e Geslline Braga (UFPR), responsáveis pela mediação e coordenação do evento, os palestrantes Gracy Mary Moreira (Casa da Tia Ciata), Pedro Neto (USP/ Ilé Àse Pàlepà Màrìwò Sessu), Brenda dos Santos (Clubes Sociais Negros/PR) e os debatedores Jocélio Teles dos Santos (UFBA) e Angélica Ferrarez (UERJ). A temática central pretende-se debater os territórios negros, buscando um alargamento do diálogo com a sociedade civil e criando pontes para transformações do atual cenário pandêmico de Covid-19.

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PALAVRAS-CHAVE Territórios Negros; Casa da Tia Ciata; Clubes Sociais; Terreiro; Território Usado.

ABSTRACT The work aims to reflect on how black territories are erased from a discourse of modernization and urbanization of cities, going through a debate regarding material and immaterial heritage, indissociated. Thus, the proposal arises with the discussion of the webinar entitled “Heritage, museums and reexistences: black territories” (2020), available on TV ABA, with Simone Vassallo (ABA/UFF) and Geslline Braga (UFPR), responsible for mediating and coordinating the event, the speakers Gracy Mary Moreira (Casa da Tia Ciata), Pedro Neto

1 Licenciada em Geografia pela UFF. Mestranda em Artes Visuais pela UFRJ. E-mail: cruzanacarolinasoares@gmail.com 2 Licenciada em Belas Artes pela UFRRJ. Mestranda em Artes Visuais pela UFRJ. E-mail: ellenabento@gmail.com 83

(USP/Ilé Àse Pàlepà Màrìwò Sessu), Brenda dos Santos (Black Social Clubs/PR) and the debaters Jocélio Teles dos Santos (UFBA) and Angélica Ferrarez (UERJ). Thematically central, it is intended to discuss black territories, seeking to broaden the dialogue with civil society and the bridges for the transformation of the current Covid-19 scenario.

KEY WORDS Black Territories; Aunt Ciata’s House; Social Clubs; terreiro; Used Territory.

Introdução

O presente trabalho visa discutir como os territórios negros são apagados a partir de um discurso de modernização e de urbanização das cidade, assim como refletir sobre o patrimônio material e imaterial. Deste modo, a proposta surge com as discussões do webinar intitulado “Patrimônio, museus e reexistências: territórios negros” (2020), disponível na TV ABA, com Simone Vassallo (ABA/UFF) e Geslline Braga (UFPR), responsávéis pela mediação e coordenação do evento, os palestrantes Gracy Mary Moreira (Casa da Tia Ciata), Pedro Neto (USP/ Ilé Àse Pàlepà Màrìwò Sessu), Brenda dos Santos (Clubes Sociais Negros/PR) e os debatedores Jocélio Teles dos Santos (UFBA) e Angélica Ferrarez (UERJ). O webinar tem como principal temática a reflexão sobre os territórios negros, buscando um alargamento no diálogo com a sociedade civil e criando pontes para transformações do atual cenário pandêmico de Covid-19. Neste contexto, destaca-se inicialmente, que para Geslline Braga (2020), os territórios urbanos negros desafiam as politicas de patrimonio cultural uma vez que estabelecem a união entre o patrimonio material e imaterial na esfera do sensível e do espiritual, dispondo de princípios para além das políticas e que ultrapasam as categorias estabelecidas. Ainda salienta que estes possuem camadas de memórias que se sobrepõem e se constituem enquanto lugares, por seus simbolismos, e territórios, demarcando e devolvendo o lugar dos negros nos grandes centro urbanos. Assim, pensando em refletir sobre os territórios negros, debatidos durante o webinar, a pesquisa ainda discutie autores pretendendo um maior diálogo sobre a temática estudada. Deste modo, para a reflexão do tema proposto e das discussões das questões expostas a partir do webinar, o trabalho utiliza também os seguintes 84

estudos: o conceito de território usado e lugar, discutido pelo autor Milton Santos, visando compreender as relações sócio-espaciais, como de pertencimento a que estes territórios e lugares se relacionam e estão relacionados em um contexto urbano; os estudos dos autores Roberto Lobato Corrêa e Zeny Rosendahl, para compreender o papel da cultura e sua relação com o espaço geográfico, especificamente, como os sujeitos negros que ocupam, resistem e existem, a partir da lembrança e da memória; a autora Grada Kilomba, no que tange os sujeitos negros, existência e resistências perante a uma lógica homogeneizante.

Patrimônio

A palavra patrimônio vem do pater, quer dizer “pai” em latim. A ideia de patrimônio está relacionada com aquilo que se herda do pai, ou seja, a propriedade que a família recebe dos seus ancestrais. Com o passar dos tempos, a palavra patrimônio se estendeu para os domínios das cidades e das nações. A partir daí, o que acontece é que o patrimônio sai do âmbito apenas familiar, passando a representar um grupo, uma cidade ou uma nação, ou seja, expandiram-se as relações de identidade do âmbito familiar para proporções maiores. (CORÁ, 2011, p. 74)

De acordo com Maria Amélia Jundurian Corá (2011) a conceituação de patrimônio sofre alterações ao longo do tempo. Ele passa a ser identificado como “um conjunto de narrativas, de comportamentos, de bens, de objetos ou testemunhos que assumem a representação de valores simbólicos” (CORÁ, 2011, p. 74). Corá (2011) ressalta que o Estado possui um papel de legitimação voltado para as políticas de patrimônio, no qual desempenha a eleição de determinados bens culturais. Assim, é necessário reconhecer que há a seleção de um determinado bem cultural que constituiria “uma tradição nacional, capaz de manter vínculo com a comunidade e a vida em sociedade” (CORÁ, 2011, p. 75).

Territórios negros

focada na perspectiva racial, onde a identidade negra se faz presente, seja pela auto declaração daqueles que se apropriam daquele espaço, mesmo que não de forma absoluta, seja pela presença de marcadores culturais e simbólicos. Estes marcadores, que podem ser organizações sociais, como ONGs do Movimento Negro; culturais, como escolas de samba, grupos de capoeira, clubes negros, bailes de música negra, rodas de samba e pagode; religiosas, como irmandades negras e terreiros de religiões de matriz africana. Para Jocélio Teles dos Santos (2020), realiza um breve histórico no webinar, atentando a alguns acontecimentos que foram esquecidos. Pontua que, em 1934, ocorre a participação do samba junto com intelectuais brasileiros, durante o primeiro Congresso Afro-brasileiro em Recife (PE). Ressalta, que o marco zero nos anos de 1970 e 1980, ocorreu com o primeiro tombamento do terreiro de candomblé em Salvador (BA), o terreiro da Casa Branca, foi uma estratégia que envolveu Jorge Amado, antropólogos e lideranças do terreiro. Além disto, em 1990, alguns terreiros passam a ser tombados e reconhecidos como patrimônio afro-brasileiro, definido pelo Estado nos anos 90 até os anos 2000. Logo, a ação do Estado, nos últimos 18 anos, como a entrada do ativismo negro nesta dinâmica, passa a ser desenhada e englobar as categorias analíticas, anteriormernte só extendidas ao meio intelectual, uni-se o ativismo, a cultura e a política. Assim, para abarcar esta dimensão dos territórios negros, o trabalho dialoga com o conceito proposto pelo autor Milton Santos de território usado, que compreende as relações sócio-espaciais que ocorrem a partir dos usos do território.

O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população. Um faz o outro, à maneira da célebre frase de Churchill: primeiro fazemos nossas casas, depois elas nos fazem... A ideia de tribo, povo, nação e, depois, de Estado nacional decorre dessa relação tornada profunda (SANTOS, Milton, 2001).

território usado é historicizado por um povo ou nação. Assim, são utilizados pelas firmas (como recurso) e indivíduos/povos, a este último, ressalta que seu uso é permeado por laços de pertencimento e solidariedade. Por este âmbito, discute-se aqui, portanto, o lugar, enquanto espaços de relações em um contexto urbano, trazendo a dimensão de existir e resistir. O lugar é uma categoria de espaço vivido, cotidiano, da solidariedade, das relações e da liberdade.

No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade (SANTOS, Milton, 1999).

Para Santos (2001), o lugar ainda tem uma dimensão de se contrapor a globalização como perversidade, marcada por desigualdades, e a globalização como fábula, como nos fazem acreditar. Logo, ao pensar, por exemplo, as questões de acesso, nos fazem crer que o processo de globalização garante direitos e acesso à todos, mas isto não ocorre de fato, uma vez que as relações são marcadas por conflitos, em uma sociedade assimétrica.

Na democracia de mercado, o território é o suporte de redes que transportam regras e normas utilitárias, parciais, parcializadas, egoístas (do ponto de vista dos atores hegemônicos), as verticalidades, enquanto as horizontalidades hoje enfraquecidas são obrigadas, com suas forças limitadas, a levar em conta a totalidade dos atores (SANTOS, Milton, 2005).

Pensando nisto, os territórios negros se contrapoem a esta realidade marcada por desigualdades, resistindo e mantendo laços de solidaridade. Quando a Gracy Mary (2020) narra as histórias da Tia Ciata, que atuou em diversas frentes, seja para a caridade ou como empreendedora, iniciando a tradição da vestimenta de baianas 87

de venda e a tradição das baianas com tabuleiros. Além disto, observa-se ainda quando Gracy Mary (2020) fala sobre o papel da instituição da Casa da Tia Ciata, que oferece diversos projetos, visando, portanto, promover a valorização da cultura Afro-brasileira, com ações culturais no espaço público da cidade. Deste modo, nota-se que instituições culturais operam como forma de transmitir os saberes e atuam como manutenção da memória e da continuidade do trabalho de Tia Ciata e, sobretudo, buscando transformar e discutir a realidade vigente.

Cultura, memória e ancestralidade

A relação entre cultura, indivíduos e povos com o espaço geográfico, discutidos amplamente pelos autores Zeny Rosendahl e Corrêa (2005), apresenta então multiplicidades e diversidades. Neste sentido, segundo Claval (2012), uma abordagem cultural em Geografia visa abranger o campo de conhecimento de temáticas e domínios negligenciados historicamente. Assim, especificamente, o presente estudo se ocupa em refletir como os sujeitos negros ocupam, resistem, existem, a partir de uma lógica da lembrança e da memória. Como afirma Brenda dos Santos (2020), os territórios negros possuem um papel fundamental na manutenção da memória viva, principalmente, a memória dos mais velhos e dos acervos. Portanto, é preciso que haja um diálogo entre os detentores, gestores e mantenedores de cultura como uma forma de instrução não colonizada, não sendo espaços objeto, mas espaços de autonomia, que produzam cultura própria. Neste âmbito, Brenda dos Santos (2020) também questiona o que propõe o termo descolonizar e afirma ser impossível descolonizar o olhar sobre estes grupos, já que isto implica em dar poder para que as comunidades e representantes se reconheçam, enquanto estes os grupos já se reconhecem. Ainda pensando sobre este apontamento, destaca-se como destaca a Kilomba (2019), salienta a questão dos sujeitos negros, existência e resistências perante a esta lógica na academia. Afirmando que este espaço não ser neutro e universal, sendo, portanto, um espaço branco

(...) onde o privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras. Historicamente, esse é um espaço onde temos estado sem voz e onde acadêmicas/os brancas/os têm desenvolvido discursos teóricos que formalmente nos construíram 88

como a/o “Outra/os” inferior, colocando africanas/os em subordinação absoluta ao sujeito branco (...) Dentro dessas salas fomos feitas/os objetos (...), mas raras vezes fomos os sujeitos. Tal posição de objetificação que comumente ocupamos, esse, lugar da “Outridade” não indica, como se acredita, uma falta de resistência ou interesse, mas sim a falta de acesso à representação, sofrida pela comunidade negra. Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes, graça a um sistema racista, têm sido sistematicamente desqualificadas, consideradas conhecimento inválido; ou então representadas por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se “especialistas” em nossa cultura, e mesmo em nós (KILOMBA, Grada, 2019).

Neste sentido, como coloca a autora, o sujeito branco tem seu discurso posto no centro, enquanto padrão, e tudo que desvia deste é posto às margens, sendo considerado desviante do padrão. Por conseguinte, “Quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico” (KILOMBA, Grada, 2019). Outro ponto abordado por Gracy Mary (2020) diz respeito sobre o molde da materialidade e imaterialidade dos territórios negros, que entram em divergênciam com a ideia de patrimônio, já que os territórios negros se constituem como espaços autônomos e que não se encaixam dentro de burocracias ou regras. No que tange os lugares de memória, José Pedro da Silva Neto (2020) destaca que é importante que esta ideia seja materializada, uma vez que o racismo tem destruído culturas negras e bens materiais, sendo necessário que estes sujeitos construam e reconstruam a partir de suas próprias instituições. Nesta perspectiva, como pontuado por Angélica Ferrarez (2020), entende-se que estudar sobre estas potências, territórios negros e como estes estão vínculados as dinâmicas do espaço e do tempo, é conhecer a história, e ressaltar que ter acesso a esta história é poder. Os territórios negros falam a partir da margem, seja na escola de samba, nos terrerios, nos clubes sociais negros, na Casa da Tia Ciata e dentre outros espaços de memória de protagonistas negros da história.

Considerações finais

estabelecer um diálogo com a sociedade civil e debater sobre os territórios negros, especificicamente, em um contexto urbano, seja dos terreiros, dos clubes sociais negros, do samba ou da Casa da Tia Ciata, refletindo como estes são apagados a partir de um discurso de modernização e de uma urbanização das cidades. Além disto, o apagamento dos territórios negros perpassam ainda um debate no que diz respeito ao patrimônio material, desafiando a lógica de patrimônio material e imaterial, uma vez que não estão dissociados. Por fim, como elucida a debatedora Angélica Ferrarez (2020), o esquecimento dos territórios negros por parte do Estado, dos gestores e da academia ainda persistem, mas continuam resistindo a partir da margem, subvertendo a ordem vigente, seja como a Gracy Mary, em uma instituição, a Brenda dos Santos, nos clubes negros ou nos terreiros e dentre muitos outros exemplos. Neste sentido, é fundamental que este debate adentre o espaço acadêmico e possa subvertê-lo, desconstruindo-o, uma vez que a não ocupação deste, invisibiliza as epistemologias negras. Neste âmbito, o acesso dos sujeitos negros a academia é uma subversão, fazendo com que se possam elevar os saberes negros, diversificando o cânone, onde se partilha o comum e o sensível.

CLAVAL, P. A geografia cultural no Brasil. In: BARTHE-DELOIZY, F., and SERPA, A., orgs. Visões do Brasil: estudos culturais em Geografia [online]. Salvador: EDUFBA; Edições L’Harmattan, 2012. CORÁ, Maria Amelia Jundurian. Do Material ao Imaterial: Patrimônios Culturais no Brasil. Tese (doutorado) – Pontifícia Católica de São Paulo, Ciências Sociais, São Paulo, 2011. CORRÊA, R.L. e ROSENDAHL, Z. A Geografia Cultural no Brasil. Revista da ANPEGE, 2, 2005. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019 NOGUEIRA, Azânia Mahin Romão. Territórios Negros em Florianópolis. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Florianópolis, 2018. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica, Razão e Emoção. 4ª Edição. São Paulo: Edusp (Editora da USP), 2002. SANTOS, Milton. O retorno do território. In: OSAL: Observatorio Social de América Latina. Ano 6 no. 16 (jun. 2005- ). Buenos Aires : CLACSO, 2005- . -- ISSN 1515-3282. SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, 1978. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. TV ABA: Webinar “Patrimônios, museus e reexistencias: territórios negros”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nu0Rm9kbz-Y&t=2705s&ab_channel=TVA. Acesso em 26 de novembro de 2020.

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