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Cultura | O Corpo na Arte e na Medicina, através do tempo | PhD António Delgado

PhD António Delgado Docente Universitário Investigador no CIEBA- U.Lisboa

Cultura

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O Corpo na Arte e na Medicina, através do tempo

Entre a beleza ideal e a ideia de corpo perfeito, sempre houve divergências significativas que a História a Arte nos ajuda a compreender. Na figura humana, tanto a sua Estética como a Ética evoluíram ao longo da História. O Cânon corporal fixado nas proporções da Vénus de Milo e criado pela cultura grega, foi posteriormente representado no Renascimento, posteriormente, em roliças e enfatizadas formas nas pinturas clássicas e na atualidade é contraposto ao das modelos anoréxicas das passerelles de Moda. A mítica ideia de “Gordura é Formosura”, tornou-se numa séria manifestação pública de falta de saúde e os médicos encaram-na como um dos mais sérios viveiros de patologias múltiplas, danosas para a saúde pública e individual.

A percepção desta realidade motivou importantes alertas por parte dos mais representativos organismos internacionais de saúde ( OMS – Organização Mundial de Saúde ) e pelos os governos de cada país, alertando para o problema do excesso de peso e dos hábitos alimentares não saudáveis. O sector primário, um dos grandes suportes das economias, determinou que os produtos alimentares fossem acompanhados da sua composição, calorias, gorduras, etc, e origem. Deste então a produção agrícola enveredou por caminhos mais biológicos e menos tóxicos e na distribuição surgem as cadeias de lojas dietéticas e de produtos naturais…O setor primário, no seu interesse de melhorar a saúde alimentar , alertou igualmente sobre o consumo de açúcar em excesso, o que por vezes encontra sérias dificuldades face aos lobbies e monopólios instalados.

Recentemente ouvi num programa de televisão que por cada três colheres de açúcar consumido no mundo, duas pertencem à indústria de um só multimilionário.

Em simultâneo ao alerta da alimentação, a necessidade de atividade física transformou-se numa fonte económica

que nutre um sem número de empresas que se dedicam ao cuidado do corpo: ginásios, massagens, personal trainers, comercialização de roupa desportiva adequada às diferentes práticas, piscinas, campos de férias, atividades de lazer ao ar livre …Campos estes que em rede ou formando-as, já suscitam polémicas sobre a saúde corporal e alimentar, bem como os seus reflexos na saúde pública e as enormes divergências que o excesso promove e assinalam diferenças significativas entre os países ricos e pobres….(p.e. o colesterol é uma doença de países ricos).

Deste modo, os debates sobre morbidez e fome, a infelicidade psicológica e o sofrimento somático, a boa presença social e a má imagem pessoal são de extrema atualidade, na medida em que se tornaram num dos efeitos colaterais deste enorme problema que é a alimentação e a imagem corporal.

Em alguns tópicos iremos espreitar como as Belas Artes (Desenho, Escultura e Pintura) manifestaram estas factualidades, ao longo do tempo, das quais ninguém é alheio e que surgem desde tempos arcaicos.

Apesar de tudo, esta guerra sobre medidas de roupa e dietas alimentares tem a precisão das relações cambiantes entre a silhueta do corpo humana e o pensamento vigente em cada período cultural bem como as tendências que elabora sobre o corpo, pois este é, também e para todos os efeitos, o símbolo da opulência e da ostentação social de riqueza. Razão pela qual, no período medieval o prestígio da gordura nasce da sua exceção à regra da fome endémica, da mesma forma que a riqueza plena pode ter a ideia de um mítico “el dorado”, ou a ideia de bem estar eterno se sustentar num idílico «Paraíso».

A gordura seria, um capital com cotização muito alta num “mercado” habitado por famélicos pobres. O prestígio da obesidade no período medieval, reside na figura de reis e cavaleiros. Houve mesmo dois reis na Península Ibérica com o cognome de «O Gordo»: D. Afonso II (neto de D. Afonso Henriques e D. Sancho I, rei de Leão.

A figura do “Gordo” parece indicar que a força do glutão é consubstancial ao vigor do guerreiro. Ideia que não é alheia a uma sociedade dominada por senhores feudais, cuja função seria defender o reino e a fé mediante as suas armas, por isso é fácil concluir que força física era de grande importância e estimava-se como o resultado da saciedade alimentar para sustentar o mito de quem mais comesse dominaria os outros.

Só os moralistas do período medieval, elevavam a voz e criticavam a obesidade, porque a gula era um dos sete pecados capitais condenados pela Fé Cristã (FIG.1) como é recordada no figura do “ Inferno” em trípticos e desde os púlpitos. Tal como a pobreza era definida como uma virtude embaraçosa, embora fosse uma qualidade elevada no exemplo a imitar de Deus. Pelo contrário, as pessoas nada edificantes eram refletidas nos corpos dos poderosos, onde se incluíam os bispos, pontífices e abades, sobre os quais a memória popular ainda preserva muitos ditotes.

Na Idade Média, predicava-se na igreja e na rua o exemplo caridoso da esmola, “dada ao necessitado” , de duas maneiras: através de dinheiro, ou pela chamada “sopa dos pobres e/ou do convento” um socorro alimentar, dado aos mais necessitados, normalmente à porta dos conventos.

Um donativo que antecede a assistência pública dos modernos Estados e que, a meu ver, não era tanto por justiça social, mas para acautelar problemas de ordem pública, despistando eventuais respostas violentas, a que a pobreza extrema conduz e que, mesmo assim motivou a revolução francesa, acabando por decapitar o poder.

No período Renascentista iniciou-se um cânon pictórico de proporções ideais aberto por Durer (FIG 2) Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, … que passará a um realismo barroco para transbordar força física e extravagâncias naturais, muito bem patentes nas “Três Graças” de Rubens (FIG.3)

Esta obra, além mostrar mulheres de corpos amanteigados, corpulentos e estatuados, apresenta formas voluptuosas, palpáveis e de traseiros hiperbólicos. Estas representações de corpos, já não correspondem às representações do século anterior, mas ao gosto pessoal de Rubens por volumes exagerados. As

imagens, como as ideias dos homens, são filhas do seu tempo, mas também ao gosto do seu criador. A revolução científica no Renascimento impactará no discurso médico e até pelo estudo da Anatomia, trará novas realidades, Como, p. e. entender a pele e as suas propriedades para expulsar as substâncias nocivas e que no interior dos corpos devia circular o ar.

A nova relação orgânica entre o homem e a sociedade, considera prática saudável o “lavar-se” para que a sujidade não bloqueie os poros. Resultando daí, mudanças nos hábitos higiénicos mas a limpeza e a assepsia, assim como as vestes das pessoas, aligeiram-se em tecidos e peso, e no final do Período Iluminismo, as calças dos “san-culottes” durante a Revolução Francesa, são cortadas, como forma de se oporem às calças usadas por aristocratas. Estas peças iriam redesenhar as da burguesia liberal, e as roupas decotadas ao modo das personagens no quadro de Delacroix “A Liberdade Guiando o Povo”, verificada na imagem da mulher principal que marcha de peito descoberto, sobre barricadas e cadáveres…entretanto os volumes físicos irão individualizar-se no período das “luzes” e começa-se a prestar atenção à medida e ao peso do corpo, e as críticas à gordura corporal são reorientadas, iniciando-se a condenação pública da obesidade.

Os homens e as mulheres adiposas são satirizados nos séculos XVII e XIX, pela literatura como mostra a “ Comédia Humana” de Balzac, igualmente as caricaturas de J.J.Grandeville, disso dão “voz”. Mostrando o género humano por tipos, mas associando-os em simbiose com tipo de animais, em caricaturas antropomorfas (FIG.4).

O ventre bem característico do burguês é criticado por lembrar o Antigo Regime e é interpretado como sintoma de doença e de patologia social. Considerando-se esta um mau exemplo na moral pública, para uma existência saudável. O advento da Modernidade vem apadrinhar a alegria e o viver hedonista da «Belle Epoque» que irá render culto

ao corpo fora da submissão logo desobrigado. O cânon grecolatino de Beleza é recuperado (FIG.5) seja pela Arte, Erotismo ou Higiene. O resgate destas proporções têm muito que ver e de novo, com o discurso médico. No qual o paradigma de Saúde, defende ser a “Cabeça” tão importante como o “Tronco” pelo que a psicanálise indaga na intimidade individual e na consciência coletiva. Em consequência os ginastas tornam-se os heróis clássicos, as cortesãs “vendem” a sua silhueta nos salões mundanos, os dandis exibem a sua figura nos escaparates públicos e os burgueses são feitos figurinos, passeiam o seu narcisismo por jardins e paisagens em espelhos que lhes devolvem o reflexo da felicidade (FIG.6). O contacto com a natureza e a prática de desportos por lazer iniciou-se.

Mais recentemente, surgem os escravos das silhuetas, submetidos à constante exposição pública do corpo cujo expoente máximo é atingido pelas estrelas de cinema e pelos famosos sempre presentes numa imprensa que se denomina cor-de-rosa, acabando assim por sentenciar a gordura como doença e a delgadez como o padrão ideal de saúde e estética. O efeito é tão gráfico e forte que o discurso político absorve de imediato a ideia e “ gorduras do Estado”, torna-se corrente no discurso político para exemplificar práticas económicas pesadas e onerosas, nada saudáveis para o normal desenvolvimento da economia do país… No Estado o “excesso de peso” da administração e a sua função pôs-se a descoberto.

Ao longo da história a magreza e a gordura como cânones de beleza, nunca foram imutáveis, apenas se adaptaram segundo cada época e as culturas. Mesmo, que não sejamos capazes de erradicar a fome no planeta a Medicina está preocupada, com a obesidade e com a anorexia que não distinguem géneros ou idade.

Neste paradoxo em volta da silhueta vivemos: as mulheres não se libertaram de depilações que cada vez mais, são radicais e definitivas mas agora os homens também o fazem, passando também a consumir cremes, perfumes, e lingerie… tratando de seguir o modelo metrossexual -definido pelo homem urbano que se preocupa em cuidar da aparência e cujo modelo é copiado dos futebolistas e atores de cinema.

Não será tempo de, tendo em conta a nossa condição de mamíferos habituados à liberdade, começarmos a questionar esta “necessidade humana” de vivermos em espartilhamentos cíclicos? n

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