9 minute read

Prefácio 6

M uitos anos após sua publicação inicial, é difícil subestimar a importância de Saturno de Liz Greene e o que ele representa. Foi e é um passo importante no progresso da mais crucial contribuição do século XX à Astrologia – a saber, o uso da Astrologia como uma ferramenta para a autorrealização e atualização pessoal.

As abordagens da Astrologia tradicional derivadas das tradições do Oriente Médio – as quais incluem a Astrologia Helenística, Jyotish e Medieval (tanto em árabe como em latim) – parecem ter assumido que os eventos primordiais e as circunstâncias da vida de uma pessoa são predeterminados num nível significativo, se não completamente. Os astrólogos helenísticos, fortemente influenciados pelo estoicismo, demonstram essa tendência de maneira extrema. A seguinte passagem de Manilius demonstra isso:

Advertisement

Os destinos governam o mundo, tudo está estabelecido pela lei. Estações longas são definidas por causas fixas. Como nascemos, estamos morrendo, e o fim depende do início. A partir disso, fluem tanto a riqueza quanto a realeza, e mais fre quentemente daí emerge a pobreza. Habilidades e caráter são concedidos àqueles assim criados, assim como o vício, o reconhecimento, as perdas e as aquisições das coisas.

(Manilius, Astronomica , Livro IV, linhas 14-15. Tradução própria)

Astrólogos islâmicos e cristãos da Idade Média deram ênfase ao livre-arbítrio na teoria, mas, na prática, isso não é óbvio. Além disso, todas as três abordagens da Astrologia tradicional atestam que há “bons” e “maus” planetas, os quais mais tarde foram chamados de benéficos e maléficos, um dos quais é Saturno. Benéficos “causam” os bons destinos; maléficos, os maus.

De toda maneira, mesmo no mundo antigo havia vozes que discordavam dessas duas ideias – que tudo estava determinado no momento do nascimento e que havia bons e maus planetas – um conceito do qual Saturno é derivado. O filósofo Plotino (204/5 a 270 d.C.) rejeitou ambas as ideias nas Enéadas . Sua descrição de como os planetas agem poderia ter sido escrita por um astrólogo moderno:

Podemos pensar que as estrelas são letras perpetuamente sendo inscritas nos céus ou inscritas definitivamente e ainda em movimento, pois elas perseguem as outras tarefas a elas aquinhoadas: sobre as tarefas mais importantes seguirá a qualidade do significado...

( Enéadas , 2.3.7, tradução McKenna)

Ele rejeita a ideia de bons e maus planetas nas duas passagens seguintes:

A crença é que os planetas em seus cursos de fato produzem não apenas condições como pobreza, riqueza, saúde e doença, mas até mesmo feiura e beleza e, o mais grave de tudo, vícios e virtudes e os próprios atos que nascem dessas qualidades, as ações definitivas de cada momento de virtude ou de vício. Nós supomos que as estrelas se aborrecem com os homens – e sobre assuntos nos quais os homens, moldados ao que são pelas próprias estrelas, certamente não podem agir de outra maneira.

( Enéadas , 2.3.1, tradução McKenna)

[Os planetas são]... continuamente serenos, felizes no bem que desfrutam e na visão à sua frente. Cada um vive sua própria vida livre; cada um encontra seu Bem em seu próprio Ato; e esse Ato não é direcionado a nós.

( Enéadas 2.3.3, tradução McKenna)

Outros Platonistas seguiram Plotino nesse tema, mas isso teve pequeno impacto na prática da Astrologia. Contudo, essas passagens servem para nos contar que mesmo nos tempos antigos a visão “tradicional” da Astrologia era rejeitada por alguns, firmemente, em níveis filosóficos.

Apesar das exceções anteriores entre os antigos e os poucos filósofos medievais que sustentavam objeções similares, visões deterministas e a ideia de planetas benéficos e maléficos dominaram a Astrologia até o início do século passado. Foi o século XX e a Astrologia ocidental moderna que enxergaram a ineficácia dessas duas posições.

Antes da obra de Liz Greene, outros deram passos – na verdade, passos firmes – nessa direção, notadamente o falecido Dane Rudhyar (1895-1985) e alguns de seus seguidores. Mesmo antes disso, nos antigos trabalhos de Alan Leo (1860-1917) na virada do século, se podem ver movimentos nessa direção. Mas, no caso de Leo, essa tendência foi encapsulada numa densa camada da Teosofia, e se poderia questionar se a atualização pessoal mencionada na obra de Leo não seria mais diretamente parte de sua Teosofia e apenas incidentalmente parte de sua astrologia. Teríamos que mais ou menos adotar suas crenças teosóficas e práticas a fim de usar a astrologia para a atualização própria. Sua obra Astrologia Esotérica , assim como os trabalhos posteriores de Alice Bailey com o mesmo nome, mudaram consideravelmente e até distorceram o antigo simbolismo da Astrologia, mais para atender seus resultados do que para consolidar aquele simbolismo e estendê-lo a um novo propósito.

Dane Rudhyar, que era um estudante da obra de Bailey, deu o passo seguinte e usou o verdadeiro e autêntico simbolismo antigo da Astrologia a fim de descrever a Astrologia como uma ferramenta para a atualização própria. Obras como Astrologia da Personalidade, combinadas com as percepções de

Bailey e outras advindas da psicologia de Freud e Jung, deixam claro que a Astrologia poderia sair de sua herança medieval de predição de eventos e das circunstâncias externas da vida para revelar um entendimento acerca dos processos internos da alma. Rudhyar explorou como isso influencia a vida do indivíduo e, o mais importante, como o entendimento disso poderia oferecer liberdade e autodeterminação; ele também combateu abertamente a ideia de planetas benéficos e maléficos.

Eu não pretendo retirar o valor de Rudhyar como autor nem a importância do seu trabalho com o que estou dizendo. Sua obra foi escrita numa linguagem muitas vezes obscura, abstrata e muito teórica. Seu material deu esperança de que fosse possível transcender qualquer manifestação astrológica particular, mas não ofereceu caminhos reais para fazê-lo. Ficou para a próxima geração de astrólogos começar a cumprir essa tarefa. Saturno, de Liz Greene, foi uma importante contribuição para esse trabalho.

O formato do livro é, na verdade, bem tradicional. Superficialmente, parece ser um livro convencional de apresentação de conceitos. Mostra a influência de Saturno nos signos e nas casas bem como em aspecto a outros planetas. Posso dizer, sem tirar o mérito de Liz Greene neste trabalho, que este não foi um arranjo original; muitos livros de delineação astrológica anteriores fizeram a mesma coisa. Mas esse jeito mais ou menos convencional de organizar o material era exatamente o que faltava para preencher a lacuna entre as descrições abstratas, mas poderosas, de Rudhyar, e as necessidades de um buscador tentando descobrir o que fazer com seu mapa de nascimento. No entanto, devo destacar um ponto a respeito da prática de equiparar o simbolismo dos planetas nas casas com o simbolismo dos planetas em seus signos correspondentes. Por exemplo, segundo essa crença, Saturno em Áries atua como Saturno na primeira casa, Saturno em Touro atua como Saturno na segunda casa, e assim por diante. A Astrologia mais antiga, pré-moderna, pode ser filosófica e espiritualmente limitada, mas seu vocabulário simbólico é rico e imenso. Equiparar posições por signo e casa não era uma prática, exceto na melothesia , a atribuição de signos e casas a partes do corpo (Áries e primeira casa relacionados à cabeça, Touro e segunda casa relacionados à garganta etc.). Signos e casas são entidades simbólicas bastante diferentes, possuindo funções também diferentes. Equipará-los dessa maneira, eu acredito, é confundir dois sistemas simbólicos distintos.

Mas mesmo fazendo objeções, eu não creio que isso seja uma falha em Saturno porque aqui Liz Greene, claramente, dá maior ênfase ao posicionamento por casa do que ao posicionamento por signo, e neste propósito a conceituação é magistral. As referências ao posicionamento por signo, mesmo se os signos e casas pudessem ser equiparados, seria de menor valor pela simples razão de que Saturno passa dois anos e meio em cada signo, e cerca de duas horas por dia numa casa. Os posicionamentos por casa de um planeta são muito mais característicos de um indivíduo enquanto os posicionamentos por signo descrevem todas as pessoas nascidas num dado período de tempo.

A natureza das descrições deste livro e a combinação de Saturno com os signos, casas e outros planetas se afastam da abordagem de “livro de receitas” das obras anteriores. Não que as descrições que Liz Greene faz sejam mais acuradas (como se alguém pudesse fazer uma previsão precisa de como um planeta vai se manifestar exatamente em cada configuração). A questão é fornecer descrições que ampliem a capacidade do indivíduo de tomar o controle de sua vida. Em vez de previsões avançadas do que vai acontecer, o leitor é presenteado com um leque de argumentos derivados da combinação dos símbolos e então se demonstra como as mudanças na consciência e autopercepção podem transformar por completo as manifestações da vida ao seu redor, transformar aquelas que são potencialmente difíceis em manifestações mais criativas e satisfatórias. Suas descrições não são meramente possibilidades “otimistas” que ignoram o lado negativo, mas são na verdade descrições do trabalho que um indivíduo terá que realizar para produzir mudanças criativas. Liz Greene não deixa de apontar as realizações que devem ocorrer e as tarefas que devem ser assumidas. Tudo isso requer uma mudança na consciência e um aumento na autopercepção.

Segue um exemplo de sua descrição de Saturno na sexta casa:

Quando um indivíduo está relativamente inconsciente, Saturno (na sexta casa) pode simbolizar o descontentamento e o ressentimento porque ele pode estar atento apenas ao fato de se encontrar em uma rotina e de estar aprisionado pelas circunstâncias. [...] Porém, o significado da rotina lhe escapa porque ele não entende verdadeiramente o sentido do serviço. [...] É dito nos ensinamentos esotéricos que o serviço, mais do que “boas ações” é uma qualidade inata da pessoa interior. [...] Serviço dessa natureza é o resultado da integração interna, pois, uma vez que o corpo, os sentimentos e a mente de uma pessoa estão em equilíbrio, ele pode então começar a se tornar consciente, intuitivamente, do propósito de sua natureza e de sua psique interna. [...] Serviço que é o resultado do equilíbrio interno é o resultado potencial de Saturno na sexta casa quando ele está se expressando de uma forma consciente.

– (página 44 na edição de 1976)

Como mencionado anteriormente, mesmo na Astrologia medieval era reconhecido que o livre-arbítrio pode alterar as indicações astrológicas. Mas essa crença se devia muito a razões religiosas. Se alguém não tem uma vontade livre, então a liberdade para escolher a salvação não poderia existir. Seria responsabilidade de Deus, e não do indivíduo, o sucesso ou fracasso de uma pessoa adquirir a salvação por meio dos planetas. Mas enquanto os astrólogos medievais sustentavam essa ideia, isso não os levou a mostrar como as influências astrológicas poderiam ser modificadas por um ato da vontade. Não está claro até hoje que eles acreditassem que isso seria possível. Saturno abriu caminho para o trunfo da Astrologia moderna ao mostrar que a combinação da aceitação, do entendimento e da habilidade em perceber alternativas com o desenvolvimento da consciência é a variável que pode mudar a maneira como uma pessoa experimenta seu mapa e sua vida. E aqui há um ponto importante! Acredito firmemente, e creio que este livro mostre isso, que o nível de consciência com que alguém se aproxima da vida não está fixo nem determinado por qualquer coisa que o mapa de nascimento signifique. O nível de consciência possível a alguém não está determinado! Pode ser muito difícil mudar a consciência de uma pessoa à medida que as circunstâncias – família, amigos, repertório cultural – podem parecer trabalhar contra isso às vezes, mas é sempre possível.

A escolha de Saturno como tema deste livro é soberba. Liz Greene escreveu, na sequência, diversos outros livros similares sobre outros planetas. Mas Saturno foi o melhor ponto para começar, precisamente porque Saturno é considerado o planeta que mais restringe a liberdade e fixa o destino para os astrólogos. Muitos astrólogos têm visto Saturno como o planeta do “Karma” no falso, mas comum, senso da palavra usada com frequência no Ocidente como o distribuidor de um destino inevitável, imposto como punição ou recompensa pelos feitos passados ou de outras vidas.

Que mesmo a energia de Saturno possa ser alterada pelo grau apropriado de sabedoria e compreensão, abre uma perspectiva que coloca toda a Astrologia numa única luz. Não é necessário para alguém percorrer um caminho espiritual extremo, abandonar sua vida no mundo e pedir por esmolas para alcançar isso. Liz Greene mostra em incontáveis exemplos como “iluminações” menores estão disponíveis a todos nós se nos aproximarmos das coisas com o entendimento correto. Na Astrologia tradicional, Saturno era chamado de “o maior maléfico” (Marte sendo o menor).

Considerado o pior dos dois tradicionais maléficos, Saturno deixa claro que isso pode ser feito com todos os símbolos do mapa.

Desse modo, Saturno de Liz Green se tornou uma obra-chave em sua mais importante contribuição para a Astrologia do século XX para o desenvolvimento da Astrologia e da ideia de que a Astrologia não é um mapa com o destino fixo de alguém, mas um mapa do potencial de desenvolvimento do Self, autêntico e mais elevado.

More articles from this publication:
This article is from: