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INTRODUÇÃO

Adentrando o Submundo

Lembro-me bem do longo e sombrio corredor, da arcada distante e das figuras ocultas que se sentavam como sentinelas em incontáveis fileiras. O rosto de cada figura escondia-se atrás de um tecido cinzento, que flutuava com um vento imperceptível. Acordei desse sonho repetidamente, sabendo, por intuição, que se tratava de um mergulho para algum tipo de profundidade. Meu interesse pelo submundo tivera início. De fato, nunca fui atraída pelo superficial. Sempre xeretei, escavei e explorei as camadas mais profundas e escuras da vida. O fio condutor de minhas curiosidades e paixões prova-se ser o fascínio que tenho pelo mundo interior, em particular por aqueles lugares dolorosos e confusos em nós, mas, mesmo assim, intrigantes – lugares que vim perceber como meu próprio submundo. Acima de tudo, sou estimulada pelas histórias pessoais de cada um e por histórias da humanidade e por mitos contados para nos explicar a nós mesmos e nosso lugar no mundo. Tornei-me psicóloga junguiana porque queria me envolver comigo mesma e com os outros de maneira complexa, criativa e significativa. Desse modo, consigo olhar por baixo da superfície e ver e sentir o que realmente está se passando pela psique.1

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Aos vinte e poucos anos, eu estava em uma biblioteca pública, quando, ao que parece, tirei da prateleira um livro de introdução à psicologia analítica escrito por Anthony Stevens. Terminei de ler o exemplar em um dia e, em meu diário, rabisquei uma simples pergunta: “Será que encontro o que procuro nestas páginas?”. Não tinha certeza, mas achei os tópicos do livro e a pergunta tão chamativos, que ressoaram em mim de maneira profunda, fazendo com que eu desse um salto de fé e me inscrevesse no Pacifica Graduate Institute para obter o doutorado em psicologia profunda – área que retrata o estudo da psique por intermédio das psicologias desenvolvidas por C. G. Jung e James Hillman. No Pacifica, encontrei um mundo repleto de temas que adoro – mitologia, sonhos, história, religião, teoria – e profundo autoconhecimento. Aprendi com professores inspiradores, como Safron Rossi e Keiron Le Grice e, olhando para trás, vejo que a psicologia profunda era o único caminho que poderia ter tomado. Atualmente, realizo atendimentos como psicoterapeuta e escrevo sobre a viagem ao submundo – mais uma vez, vejo-me caminhar por aquele longo e escuro corredor, em direção às profundezas. Arquétipos da Sombra é baseado na minha dissertação de doutorado, “Descida e Ascensão: Estilos Arquetípicos da Consciência nas Jornadas do Submundo”. Espero que algumas ferramentas, pensamentos e imagens oferecidos nestas páginas possam ajudá-lo a deixar que o submundo o mova em direção à totalidade e clareza de ser que não podem ser encontradas na luz do dia.

O que é o submundo?

Neste livro, reúno alguns mitos, religião, história, psicologia profunda, casos da minha prática clínica, histórias pessoais de colegas, amigos, familiares, personalidades famosas e eventos globais. Também descrevo minha jornada interior para poder guiar vocês – e a mim – rumo à recordação e ao regresso à riqueza mais íntima do nosso próprio “submundo”.2

1. Aristóteles utilizou o termo “psique” para se referir “à essência da vida”, e outros interpretaram esse conceito como “espírito” ou “alma”. No século XX, surgiu um campo de investigação sobre a psicologia profunda, e um de seus fundadores, C. G. Jung, utilizou o termo “psique” para se referir à totalidade da mente, do espírito e da alma humana: consciência e inconsciente.

O submundo é o lugar do desconhecido – da escuridão, do oculto, dos mortos, dos monstros e demônios, das árvores horríveis e das fissuras que serpenteiam terra adentro. É o lugar onde guardamos as partes descartadas de nós mesmos, dos aspectos de nossa identidade que nossos pais, educadores, a sociedade e nós mesmos consideramos, em algum momento, impróprios e inadequados.

Não há limiar mais desafiador a atravessar que aquele entre os mundos diurno e noturno, entre as partes conscientes e inconscientes de nós. Há séculos os seres humanos transmitem histórias do submundo – assim como seu objetivo e o modo de chegar lá. Seja viajando para as cavernas sob a terra ou para as profundezas de nossa alma, a jornada ao submundo é uma experiência de luto, sacrifício, experiências indesejadas e difíceis, perigo, desavenças passadas, incerteza e, até mesmo, da dissolução de quem fomos outrora.

A escuridão é o lugar aonde vamos para resgatar tesouros esquecidos, e, para chegar lá, é possível que tenhamos de atravessar rios insondavelmente profundos, combater forças hostis e enfrentar os julgamentos dos deuses. Na escuridão, contemplamos coisas que desejamos nunca ter visto, horrores e desafios dos quais jamais esqueceremos. Talvez nossa voz se transforme em gritos, nosso peito aperte, nosso sangue congele, nossos passos vacilem. Trata-se de um lugar onde as luzes se apagam e o mundo para. Quando nos encontramos nas profundezas submersas da mente humana, pode até ser difícil se lembrar da superfície.

Podemos nos encontrar perante a escuridão, que pode aparecer por meio de uma série de gatilhos. Por vezes, isso é resultado de um único evento traumático, como a morte súbita de um ente querido ou uma violação física ou psicológica; outras vezes, pode ser uma doença ou um acidente. Também pode ser uma resposta a atitudes subjacentes e implícitas em nossa família e se mostrar uma referência a outros níveis que permeiam grupos como nossos antepassados, amigos, cultura ou religião. Talvez surja por nos sentirmos indesejados, órfãos, abusados, subestimados e desvalorizados. Depois de anos de uma relação emocionalmente abusiva e codependente, uma jovem mulher descreveu-se como anestesiada, desconfiada, paranoica e exausta: “Estou fraca por estar em guerra há muito tempo. Tudo o que quero fazer é cair de bruços e me deitar ali. Não tenho mais força ou emoção em mim. Tudo o que posso fazer é ser como uma concha e esperar que o sopro do dia me encha os pulmões”. As palavras dela captam o que é nos encontrarmos na escuridão.

2. A título de confidencialidade, deixei de fora nomes e informações que possam identificar pacientes. Em estudos de caso e histórias, a menos que sejam autorizadas informações biográficas, incluo nomes de pessoas que já divulgaram publicamente suas narrativas.

A jornada ao submundo é universal e, portanto, comum a todas as culturas, religiões, pessoas e lugares. Em seu estudo dos ritos de sepultamento, Robert Pogue Harrison observa que a palavra humanidade deriva do latim humus, que significa “terra” e “enterrar”.3 Ser humano significa colocar partes de nós debaixo da terra e depois entrar em lugares escuros em nosso mundo, para poder fazer rituais, que são como formas predeterminadas de realizar uma cerimônia. Também fazemos sacrifícios para nos reconectarmos com as partes mais profundas de nós mesmos – com os tesouros que escondemos, os elementos que sepultamos. Com proibições e presságios, viajar para as profundezas, ser atraído para a escuridão, sempre fez parte da realidade humana. Isso sugere um antigo anseio.

Há momentos na vida em que nos perdemos em corredores escuros de nossa mente e alma, enfrentamos duras provas de caráter, morremos para o que conhecemos e renascemos. Para a psicologia profunda, a jornada ao submundo é uma metáfora para o ego (percepção consciente) entrar em contato com o inconsciente (conteúdos psíquicos inacessíveis e autônomos à consciência). Essa “jornada” representa, desse modo, nossos encontros com os aspectos sombrios e insondáveis da vida – enfrentando medos e paixões que ainda não integramos, assim como resistências e complexos que ainda nos agarram e nos controlam. Podemos sentir a presença fantasmagórica do submundo em nossos traumas e incertezas, em nossos ódios e humilhações, em nossos sofrimentos e sentimentos de fracasso.

Quando procuramos dentro de nós, inevitavelmente encontramos o mundo inferior – conexões perdidas, empreendimentos fracassados, melancolia, memórias assombrosas, inseguranças vergonhosas, vazio e segredos bem guardados. Todos nós já caminhamos ou fomos arrastados para esse longo e escuro corredor, à medida que sofremos o luto, a vitimização, a doença e a excitação, em conjunto com a promessa e a ameaça de mudança. As amizades terminam, nosso senso de identidade desmorona, a inocência se perde, entes queridos nos partem o coração, e, inescapavelmente, somos puxados para baixo, a fim de enfrentarmos as partes abandonadas de nós que gritam por autocuidado. Experiências sombrias são marcadores naturais que balizam o longo caminho de crescimento e descoberta – todos nós os temos.

A vida está repleta de histórias de descidas ao submundo. Uma mulher se lembra de ter 19 anos e de viajar completamente sozinha para realizar um aborto no México. Outra manifesta a própria sensação de fracasso enquanto observa o filho do meio sofrer durante a adolescência. Aos 3 anos, um garoto desenvolve perda auditiva, uma escuridão que vem a moldar seu sentido de si mesmo para o resto da vida. Em meio à tagarelice e a risadas vibrantes, um homem fica paralisado, sentindo-se mais sozinho com outros que consigo mesmo. Pensamentos de inadequação, feiura e isolamento perseguem-no como um predador, com sangue nos olhos. Quando o irmão de uma mulher volta da Guerra do Vietnã, é um fantasma do antigo eu – sua alma sinaliza o preço de ter visto a guerra de perto. Ele se vê encurralado 24 horas por dia, torturado por memórias viscerais da guerra. E, numa cozinha branca, chique e perfeita, um homem diz à mulher que já não a ama mais e que vai deixá-la. Ela desliza até o chão e chora, perguntando a si mesma se poderia se afogar nas próprias lágrimas.

O submundo retrata a experiência humana de adentrar esses grandes, poderosos e destrutivos estados inconscientes. Fala sobre estar na depressão característica do fundo do poço, suportando seus pavores e demônios. Relacionar momentos sombrios ou ligados ao submundo com grandes traumas, com a morte ou com o divórcio é um salto significativo para a mente compreender; todavia, por vezes, não tão significativo assim. É sobre a ferida em nós atingida pela experiência (ou pelo “gatilho”). Algo pequeno pode esbarrar numa antiga ferida não percebida. E nossas experiências no submundo podem incluir uma gama de dificuldades, como o vício em açúcar, ser atraído por um impostor, odiar o próprio irmão ou ver-se tomado pelo ciúme. Essas descidas aparentemente banais e cotidianas afastam-nos de nós mesmos, da

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