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CORPO, MODA E BELEZA: DESFILES DE MODA COMO CAMPO DE POSSIBILIDADES CORPORAIS
from Livro "O Belo Contemporâneo: corpo, moda e arte" (2019) - Renata Pitombo Cidreira (Organizadora)
Renata Costa Leahy
CORPO, MODA E BELEZA: DESFILES DE MODA COMO CAMPO DE POSSIBILIDADES CORPORAIS
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Atualmente, presenciamos reivindicações de indivíduos e grupos em relação a uma diversidade de direitos legais e sociais para o devido respeito à sua existência. Dentre eles, o direito à aparência é uma das questões cruciais, já que se relaciona estreitamente a problemas caros à humanidade e especialmente à sociedade brasileira, como o racismo, o machismo, a homofobia e a gordofobia, por exemplo, relacionados a valorações sociais que estão implicados nas formas de aparição e no campo da imagem. Através da aparência dos nossos corpos, em sua relação com as roupas e a moda, podemos expressar nossas verdades e medos, desejos e inseguranças.
Desde que a LAB, marca de moda do rapper Emicida e de seu irmão Evandro Fiotti, levou às passarelas da São Paulo Fashion Week 42 em outubro de 2016 uma diversidade de corpos para além do corpo magro – como o gordo e com vitiligo –, tem-se observado a inserção mais constante de outros tipos corporais no escopo dos desfles de moda no Brasil, para além dos sempre exigidos corpos magros, principalmente das modelos femininas. Nesse sentido, a reivindicação e/ou aparição de corpos diversos nas passarelas vai colocar em relevo sobretudo a questão da beleza, pois não podemos deixar de considerar que o julgamento social parte, em grande
medida, da imagem dos indivíduos, em que o belo – no caso, o corporal – é um dos elementos de estima e mesmo de valorização de normalidade e de competência.
A moda, assim como seus desfles, é um dos lugares onde essas imagens são propostas e veiculadas, e de onde emerge um dos ícones de beleza contemporâneo, que é a modelo de moda. Se, por vezes, seus corpos são questionados quanto a uma magreza extrema ou quanto a sua efetiva representatividade como modelos de corpos “reais”, ao mesmo tempo sua imagem não deixa de ser celebrada nas redes sociais, e são elas que ainda predominam e são divulgadas através da moda; são esses corpos os utilizados pelo mundo da moda para vestirem e desflarem nas apresentações de novas coleções nas passarelas.
Com isso, podemos lançar alguns questionamentos frente à preponderância dos corpos magros e à entrada de outros tipos corporais nos desfles de moda atuais: os desfles de moda já nascem com essa prerrogativa do corpo magro como “o corpo belo”? Em que medida a aparência do corpo das modelos de moda é o parâmetro ideal para fxar regras de beleza? Atentando a essas questões, nossa proposta neste artigo é discutir sobre padrão de beleza feminino, atentando a como a moda se relaciona com as ideias sobre o belo e em que medida estas podem ser reelaboradas a partir do espaço dos desfles de moda, tomando como foco o cenário brasileiro. Com isso, pretende-se contribuir, mediante o âmbito acadêmico, com as discussões sobre a relação entre corpo e beleza, sobretudo vinculada ao campo da moda.
CORPOS E BELEZA NO MUNDO DA MODA
A fama e popularização da fgura das modelos de moda, que aconteceu a partir dos anos 1980 com as supermodelos – dentre as quais estavam nomes como Cindy Crawford, Naomi Campbell e Linda Evangelista –, nos remete à ideia de medidas e padrões de beleza bem determinados. Mas, em verdade, o surgimento do ofício da manequim ou modelo de moda aconteceu bem antes, acompa-
nhando a criação dos próprios desfles de moda na segunda metade do século XIX, desde o surgimento dos famosos costureiros da Alta Costura, em uma estrutura bastante aleatória na escolha de modelos para apresentar suas criações em desfles: as então manequins eram parentes, damas da sociedade e as próprias vendedoras disponíveis no momento. A história dos desfles de moda e das modelos, como apresentada por Harriet Quick em Déflés de mode: une histoire du mannequin (1997), revela que, no início, não existia propriamente um tipo padrão de corpo para as modelos que desflavam. Na maison parisiense de Charles Worth, creditado por muitos como o criador dos desfles de moda e da utilização de manequins humanas para as passarelas, elas não seriam nem tão altas, nem tão bonitas, mas deveriam andar bem; ele buscava mulheres que fossem como “espelhos” para suas clientes. Já o costureiro Paul Poiret evidenciava três de suas modelos preferidas, mas bastante diferentes entre si: a bela Andrée; a pequena Yvette; e Paulette, loira de olhos claros, braços roliços e ombros arqueados.
O estabelecimento de especifcações demandadas quanto ao corpo e à beleza para manequins começou a aparecer de forma difusa, com base nas preferências de cada costureiro. Um tipo magro e esguio, por exemplo, fcou conhecido por ter sido uma preferência de Coco Chanel nos anos 1920, que desejava modelos escolhidas à sua semelhança corporal e gestual, e na Nova Iorque de 1923, a magreza já fgurava como qualidade almejada a manequins de desfles de moda. Ainda assim, pelo menos durante a primeira metade do século XX, os tipos de corpos belos das modelos eram estabelecidos ora de acordo com os caprichos criativos e conceituais dos costureiros, ora oscilando com os padrões de beleza sociais, como o próprio visual esguio do estilo garçonne1 dos anos 1920 e os volumes e curvas dos anos e 1950.
Os corpos das modelos começariam a ser vinculados popularmente à magreza, de fato, a partir dos anos 1960, quando despontou
1 Por meio de uma silhueta reta, proporcionada pelas roupas da moda da época, e cabelos bem curtos, remete a um visual “à maneira de um menino” (em tradução literal do francês).
uma cultura de moda jovem, que tinha a magérrima modelo britânica Twiggy como um dos ícones, promovendo um visual quase infantil. No entanto, seria também a partir dessa década, na esteira de desfles mais experimentais, que outros tipos femininos começaram a ser pontualmente usados, de forma a fgurarem como contraste àqueles considerados usuais ao ambiente de desfles de moda. Esse contexto inventivo advinha especialmente dos novos estilistas que surgiam e reivindicavam outras formas e proposições de corpo e de moda, que consequentemente reverberaram nos tipos corporais e de beleza apresentados: Yves Saint Laurent utilizou como modelos uma mulher de cabeça raspada, uma grávida e gêmeas em um desfle, e viria a seguir uma tendência norte-americana de diversidade e mestiçagem na moda junto a estilistas como Givenchy e Kenzo – este com modelos latinas e asiáticas, pouco comuns até então (LÉCALLIER, 2014).
Apesar disso, os anos 1980 foram cruciais por estabelecer seus ícones da moda – as supermodelos – com determinadas medidas consideradas perfeitas, gerando uma valoração da modelo de moda como ícone mundial de beleza. A partir daquele momento, a função de espelho mudava de sentido, e eram as vidas das modelos, seu modo de ser e sua profssão as mostradas e espelhadas, desejadas pelas mulheres e meninas, bem como suas características visuais em rosto, cabelo e corpo, elevando as modelos de moda a super mulheres, padrão, ícone do belo corporal feminino. Mesmo a magérrima modelo Kate Moss, surgida para a moda na passagem para os anos 1990, a partir da tendência londrina de um visual considerado “menos perfeito” e mesmo doentio, emerge no contexto de toda a estima pela qual as modelos da moda já tinham sido elevadas na década anterior. Seu tipo visual heroin chic (uma referência à droga heroína) e o seu valor “modelo de moda” foram uma das grandes infuências nos valores de beleza corporal naquele momento, tanto no meio da moda como, posteriormente, no restante da sociedade ocidental, na qual as imagens da moda – e da modelo de moda – eram veiculadas de forma globalizada.
Não por acaso, desde o fnal dos anos 1990 foram os corpos mais magros que se estabeleceram como padrão do mundo da moda, quando conhecemos a brasileira Gisele Bündchen, que, em sua magreza “saudável” – um contraponto da própria moda ao heroin chic –, personifca até hoje um dos maiores ícones do ideal de beleza corporal. Ainda que outros tipos corporais fossem e sejam considerados belos, criou-se o mito da perfeição justamente sobre as fguras nomeadas de “modelo”, estas vinculadas ao mundo da moda, passando a fgurar como ícones e grandes representantes da beleza mundialmente.
BELEZA: ENTRE MEDIDAS E GOSTOS
O “corpo modelo” da moda passa a ser considerado não somente padrão de beleza, mas a carregar também uma espécie de beleza conceitual, calcado em uma ideia bastante racional de perfeição. O mundo da moda geralmente argumenta uma necessidade da utilização desse tipo de corpo, cujas medidas devem estar em favor do seu trabalho para proporcionar o caimento perfeito das roupas que elabora e apresenta – daí a beleza parecer estar ligada a uma relação quase matemática, à fxidez de medidas que determinariam a perfeição para a aparição de um corpo vestido feminino.
Tal ideia parece se sustentar em noções como as de simetria e harmonia, por exemplo, preceitos de beleza corporal que remetem ao período grego antigo, como nos mostra o flósofo Marc Jimenez (1997) em Qu’est-ce l’esthétique? Segundo tais preceitos, a beleza viria de medidas e atributos precisos, predeterminados, e, com isso, o que se subtraía era a capacidade de julgamento do belo de acordo com a percepção, o gosto de cada pessoa. Parece que tal ideia acabou por perdurar, ou ao menos infuenciar o pensamento sobre o belo em épocas diversas, como afrmam Jimenez e também o flósofo Umberto Eco (2010), na obra História da beleza. Este autor afrma que as ideias da Grécia antiga sobre o belo, a harmonia, a perfeição e a proporção foram trabalhadas através dos séculos, refe-
tindo, assim, no entendimento de senso comum que se tem hoje sobre a beleza.
Eco mostra que um esforço para entender o julgamento do belo para além das defnições clássicas, que giravam em torno justamente da existência de regras para a beleza, foi empreendido durante o século XVIII por pensamentos como o do flósofo Immanuel Kant: passa-se a considerar a dimensão subjetiva na percepção e no prazer, e o sentimento que envolve cada indivíduo na contemplação e consideração do belo, para além de conceitos e regras. Especialmente Kant relacionou a beleza a uma experiência estética advinda de um prazer desinteressado:
[Para Kant] Belo é aquilo que agrada de maneira desinteressada, sem ser originado por ou remissível a um conceito de gosto: o gosto é, por isso, a faculdade de julgar desinteressadamente um objeto (ou uma representação) mediante um prazer ou um desprazer; o objeto deste prazer é aquilo que definimos como belo. (ECO, 2010, p. 264)
Mas, então, se o belo se vincula a essa dimensão individual de um prazer pessoal, como certas ideias e gostos parecem ser, de fato, generalizadas, como a que fxou, na contemporaneidade ocidental, os corpos magros das modelos da moda justamente como “modelos”, ideais? Como Eco ainda esclarece, a perspectiva kantiana considera que, mesmo subjetivo, o gosto tem a pretensão de ser universal – ainda que seja somente uma pretensão, pois ‘não pode assumir de modo algum valor de universalidade cognitiva’ (p. 264). Podemos sugerir, assim, que o gosto acaba ganhando efetivamente uma parcela de universalidade, ao levarmos em conta ao menos dois aspectos. Primeiro, que a subjetividade na apreciação e no julgamento sobre o belo não pode desconsiderar a inserção e o desenvolvimento do gosto das pessoas no interior de uma sociedade e cultura. Isso coloca os indivíduos para além de subjetividades, mas operando como intersubjetividades, ou seja, têm suas capacidades perceptivas e valorativas conformadas por sua relação com o seu entorno, com o meio sociocultural do qual fazem parte.
A própria cultura se encontra em um lugar que nos permite identifcar, de um lado, um modo de vida geral e certas práticas e características perpetuadas, mas, de outro, também a inventividade, já que cultura e sociedade são elaboradas e vividas por indivíduos – portanto, por eles constantemente ressignifcadas e reelaboradas. Como afrma o antropólogo Cliford Geertz (2008, p. 64), ‘[…] nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de signifcados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas.’ É justamente a convivência e o embate entre o individual e o coletivo que conformam a cultura, meio no qual se elaboram e difundem ideias sobre o belo. Assim, são forjados padrões de beleza – e estes, por sua vez, mudam com o tempo, pois os valores e formas de percepção dos indivíduos também mudam e se vinculam à sociedade a que dão “forma” e “ordem”.
A condição intersubjetiva da vida em comunidade nos remete, ainda, a uma ideia de compartilhamento nas relações desse conviver. Deste modo, vamos reconhecer, junto a Valverde (2007), o caráter comunicacional do gosto, que, segundo o autor, não se refere propriamente a preferências estéticas idênticas nesse compartilhamento, mas a juízos distintos que ‘[…] revelariam a vigência de um mesmo padrão de julgamento’ (p. 283). As subjetividades não são apagadas pelo coletivo, mas este acaba por funcionar como guia para os juízos de valor. Por isso, vimos os corpos mais esguios da década de 1920 como uma tendência de beleza auxiliada pela roupa e pela moda – e, em certa medida, modelos de moda assim escolhidas em ocasiões na época – e corpos mais curvilíneos festejados na década de 1950, por exemplo. Em cada contexto sociocultural e epocal, tais formas corporais passam a ser padrão de beleza difundido e creditado pela maioria, até que novas percepções, oscilações de gosto e preferências dos indivíduos sejam colocadas no jogo social.
Ao reconhecermos os indivíduos como produtos das relações intersubjetivas e o caráter comunicacional do gosto, temos que observar que certa universalidade do gosto seria potencializada, em
segundo lugar, pela posição de poder de quem julga e justamente também em sua capacidade de divulgar e estabelecer determinado padrão de gosto como norma. Svendsen (2010) atenta para a existência do poder disciplinar que estaria envolvido nos processos sociais do gosto relacionado ao corpo e à moda, indicando o poder dos meios de comunicação e da mídia atualmente2. Quanto ao mundo da moda, ele parece se destacar e ser um dos grandes polos emissores das ideias vinculadas à beleza corporal, como instituição poderosa sobre os desejos mundanos. Se essa afrmativa é bem verdade, não podemos, no entanto, deixar de considerar também que o mundo da moda não existe a priori, mas foi criado por indivíduos; além disso, não esqueçamos que ele é inserido na sociedade como uma de suas instituições, não sendo dela separada. Logo, ainda que detendo papel privilegiado sobre os meios de produção, difusão e persuasão, a instituição moda – com sua poderosa indústria criadora e propagadora das modas vestimentares do momento – fgura como mais um elemento no interior das sociedades e culturas contemporâneas e do processo de comunicabilidade do gosto, dialogando e tensionando, em alguma medida, com os anseios sociais.
Assim, instituições sociais e indivíduos agenciam ideias de beleza que fazem sentido e parecem ser “naturais” em determinado contexto.
[…] dificilmente podemos afirmar que uma prática é mais “natural” que outra, já que o que pode ser visto como “natural” é tão mutável quanto a própria moda. […] No início do século XVII, Rubens provavelmente não teria se impressionado com o corpo de Kate Moss, e as modelos típicas do pintor jamais seriam aceitas nas passarelas hoje em dia, pois certamente teriam dez vezes o tamanho adequado. Um ideal de beleza bastante exclusivo de nossa época são ossos aparentes. (SVENDSEN, 2010, p. 95-96)
2 O autor procura ir além do conhecido poder disciplinar nas prisões apresentado por Foucault.
Portanto, presenciamos na vida corrente que certas características corporais acabam por ser consideradas socialmente como regras de beleza. No entanto, essas “regras” ou esse “natural” só podem ser considerados contextuais, estabelecidos socialmente em determinado momento e lugar; e é justamente por ser contextual que não se pode fxá-los como um conceito para o estabelecimento de um corpo belo ideal. Se levarmos em conta, por exemplo, as ideias da antiguidade a respeito das regras de harmonia e proporção que ainda hoje reverberam na consideração sobre o belo do corpo, vamos observar que os parâmetros dessa simetria e dessa harmonia mudaram ao longo do tempo. Do mesmo modo, se o padrão de beleza corporal nem sempre foi o magro das imagens da moda contemporânea, vamos reconhecer e afrmar que esse parâmetro não pode signifcar, de fato, a medida única da beleza.
DESFILES DE MODA: ENTRE PADRÕES E POSSIBILIDADES
Ao mesmo tempo que a beleza cunhada sobre uma aparência é sinal de apreciação, pode também ser usada como motivo de estigmatização e depreciação do outro, quando estabelece características socialmente privilegiadas e marca negativamente o que é considerado o seu oposto. Deste modo, a defnição de um corpo “modelo”, considerado parâmetro de beleza e tomado como ideal, acaba, ademais, operando como um dos mais efetivos marcadores sociais dos “outros”, dos “diferentes”, por um princípio de contraste.
É o que Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 83) parece evidenciar em A produção social da identidade e da diferença: ‘A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Paradoxalmente, são as outras identidades que são marcadas como tais.’ O autor reconhece que identidade e diferença são produzidas no interior das sociedades, de modo a serem mutuamente determinadas; portanto, a própria diferença é o processo pelo qual identidade e diferença são elaboradas. Por isso, marca-se simbolicamente “diferentes sociais”, ou seja, aqueles que são considerados como diferentes simples-
mente porque não se enquadram no que é socialmente classifcado como “normal” ou não estão dentro das margens regulares de um “padrão”.
Nesse ponto, a questão das relações de poder novamente aparece, elevando certos parâmetros a “natural” a partir do ponto de vista de quem determina, demarcando, com isso, privilégios e fronteiras. Como vimos, claramente é possível localizar o mundo da moda como um desses polos que possuem o poder de estabelecer os critérios de privilégio e as fronteiras ao belo, sendo uma das principais protagonistas quando se trata de abonar a beleza corporal, tendo estabelecido seus parâmetros nas “modelos”.
Além disso, vamos observar que, de outro lado, o mundo da moda certamente acaba espelhando realidades socioculturais excludentes em relação à aparência, como, por exemplo, a situação do corpo negro na sociedade, refetida na pouca presença de pessoas negras em desfles de moda: em 2009, o percentual de modelos negros na São Paulo Fashion Week (SPFW) era de 3%3 (SAMPAIO, 2009), e ainda mais recentemente, em 2016, os principais desfles mundiais da temporada do segundo semestre apresentaram 7 entre 10 modelos brancas – ainda que esse relatório tenha mostrado avanços, indicando ter sido esta a temporada mais diversa até então em relação à cor da pele (TAI, 2016). Notoriamente, corpos gordos também não aparecem de maneira representativa nas passarelas dos mais importantes circuitos da moda – as Semanas de Moda de Paris, Nova Iorque, Milão e Madrid –, desta vez com reforço ainda mais determinante do mundo da moda, cujo padrão pedido é justamente o oposto; não a toa, criou-se um estilo específco de eventos e modelos que visa atender a esse público, o plus size.
3 Em 2001, um grupo de modelos negros realizou uma manifestação no primeiro dia da temporada de abril da SPFW, protestando pela inclusão de pessoas negras na moda, o que ocasionou na aprovação de uma cota de 10% de negros e indígenas nos desfiles. Segundo a JusBrasil (2009), a cota foi estabelecida por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e pela empresa organizadora da SPFW à época, a Luminosidade.
Portanto, além de poder, como refexo do social a instituição moda tem responsabilidades para com a sociedade que a segue e a qual pertence. Será que a moda pode ser pensada positivamente no interior desse cenário?
Vimos que algumas experimentações já eram feitas quanto aos tipos de corpos em desfles nos anos 1960, refetindo propostas de estilistas a respeito de corpos vestidos femininos. Principalmente as passarelas, espaços inaugurais da moda que apresentam pela primeira vez ao público e a especialistas suas ideias de corpos vestidos, passaram a promover combinações e visuais que propunham inventividades na relação corpo e roupa, chegando a ocasiões que, por vezes, o aproximaram a verdadeiras performances a partir dos anos 1980. Com o desenvolvimento dos desfles de moda, os mais diferentes formatos passaram a ser realizados e são bastante comuns hoje, arranjando de forma criativa elementos cênicos e maneiras de desflar para objetivos diversos4. Como já afrmamos em outro trabalho (LEAHY, 2016), devemos levar em conta que o formato “desfle de moda” não se limita, portanto, a espaço mercadológico de mostra de roupas; suas visualidades múltiplas, elaboradas a partir do jogo criativo de vários elementos, reforçam sua dimensão artística e mesmo estética, pois visa justamente instigar sentimentos e sensações no público. Nesse intuito, o corpo aparece, junto a cenário, iluminação, som e às próprias roupas, como um dos elementos de arranjo inventivo dos desfles de moda.
Vamos compreender, assim, o espaço dos desfles de moda não somente como o de mostras de roupas, mas também como espaço expressivo de visões de mundo e de gostos, de experimentações
4 No artigo O maior espetáculo da terra: os desfiles de moda contemporâneos e sua relação com a arte performática, Ginger Gregg Duggan (2002) propõe ao menos cinco categorias de desfiles de moda: desfiles Estrutura, que prezam pelas formas possíveis da relação corporoupa, na proposição de outras maneiras de uso e de novas formas à visualidade do corpo humano; desfiles Ciência, que dão foco às possibilidades técnicas e tecnológicas da roupa e suas funções; desfiles Substância, onde há o privilégio do processo e do conceito; desfiles Afirmação, formas de contestação política e social; e desfiles Espetáculo, de característica bastante expressiva, cujo objetivo é reificar a imagem da marca através de uma apresentação espetacular e indicativa.
e de possibilidades, e, essencialmente, de proposição de formas de presença. Para além da roupa, mira-se uma forma de apresentação feminina global, no que diz respeito à vinculação da roupa a uma forma de corpo, a um modo de andar a ela vinculado e a um mundo imaginário no qual esse corpo vestido estaria e mostraria, de forma pretensamente universal, sua atmosfera de sentidos. Há, portanto, uma potencialidade nos desfles de moda como palco de investidas criativas e de elaborações sugestivas sobre modos da aparência e de aparição de corpos vestidos. Nas passarelas, eleva-se, assim, a dimensão da veste à da aparição e a da mostra à da inventividade, o que faz com que possamos compreender que os desfles são equipamentos potenciais da moda, pois fguram também como espaços propositivos de corpos vestidos.
Por isso, citamos o desfle da LAB como um acontecimento simbólico em desfles de moda – ainda que outros casos já tenham pontualmente acontecido. Vinda da área da música, do cenário do hip hop e da periferia negra, a marca paulistana Laboratório Fantasma (LAB) expandiu sua frente de moda debutando justamente na referida SPFW42, em 2016. Com direção criativa do estilista mineiro João Pimenta, apresentou seu DNA urbano misturado às culturas africana e asiática, pondo a desfle uma diversidade de corpos em suas formas e tons. Foram 27 looks desflados por homens e mulheres com corpos magros e gordos, e uma incomum maioria de corpos negros para passarelas de moda. A presença desse desfle na SPFW representou uma fratura na lógica normalizada do evento e da própria moda, tanto pela presença de uma marca advinda do meio muitas vezes estigmatizado da periferia e da cultura negra brasileira, quanto por apresentar a diversidade de forma latente.
O desfle da LAB trouxe, portanto, os “diferentes sociais”, tomando as potencialidades da instituição moda para si, em favor da diversidade e das possibilidades de corpos vestidos. A preponderância do negro nesse desfle supera a margem do diverso, e, sendo maioria, se apresenta como reivindicação de presença. De modo semelhante, aposta de modo evidenciado na presença do corpo gordo, cujas medidas não são “amansadas” por certo padrão plus
size5, mas mostradas como contrastante da relação magro-gordo. O corpo gordo se frma, assim, como diferença, que, por sua vez, se impõe também como possibilidade, uma vez presente no lugar pretensamente propositivo dos desfles de moda e no espaço privilegiado da SPFW.
O desfle da LAB é um exemplo que coloca o padrão de beleza em cheque a partir da lógica do contraste, aproveitando, de fato, a dimensão propositiva da moda e esgarçando ainda mais a dimensão de possibilidades de desfles de moda. Desde então, pudemos observar um aumento na incidência de desfles brasileiros em que outros corpos para além do padrão foram utilizados como propostas de corpos vestidos. Na mesma temporada do desfle da LAB citado, Ronaldo Fraga levou corpos de mulheres transsexuais às passarelas, em tipos físicos variados e desempenhos particulares sob uma mesma modelagem de vestido para todas, demonstrando, assim, a diversidade na aparição tanto em formas corporais como nas possibilidades da relação corpo-roupa. Um ano depois, levou diversidade corporal ao seu desfle praiano, com idosos, defcientes físicos e plus size. Em 2018, a grife de moda praia Água de Coco também apostou, em dois de seus desfles – apresentados em abril e julho, respectivamente –, em sair da linha demarcatória dos corpos padrão das modelos, apresentando, além destas, mulheres grávidas, defcientes físicos, algumas curvilíneas e plus size e mulheres e homens mais velhos.
No entanto, embora tais investidas venham permeando desfles de moda, não podemos afrmar que a aparência desses corpos já entraria em conformidade com os valores sobre o belo partilhados pela maioria, e não sabemos até que ponto conseguirá operar uma mudança efetiva no julgamento e na perspectiva pelos quais a
5 Embora a moda venha se abrindo a possibilidades corporais com o plus size, segundo a pesquisadora Rosane Gomes (2018) muitas pessoas gordas não se sentem representadas por esse segmento. Tal nomenclatura ainda indica, de certa forma, uma ancoragem a padrões que estabelecem parâmetros a um corpo gordo aceitável: “A palavra GORDA ainda é carregada de matizes negativas, sempre associadas ao mau gosto, desleixo, compulsão, falta de controle e o grotesco. Já o termo PLUS SIZE está associado à moda, e suas relações com o belo, o proporcional […]” (GOMES, 2018, p. 5).
sociedade atualmente considera os corpos em sua beleza: a SPFW, por exemplo, ainda expõe uma grande maioria de corpos magros, e notícias como a de que uma das modelos plus size mais famosas do Brasil, ‘Fluvia Lacerda cria próprio vestido de gala após negativas de marcas’ (MORO, 2018) ainda não indicam uma mudança no pensamento da coletividade. O padrão de beleza continua assentado socialmente nas imagens do não-gordo, do branco e do jovem, por exemplo, mirando o corpo “modelo” que é afrmado constantemente pela instituição moda, inclusive em seus desfles.
Devemos considerar, ainda, que a presença do “diferente social” em desfles de moda pode acontecer tanto como um recurso estilístico do designer de moda e sua marca, apresentando, através do elemento corpo, o incomum e o inovador, como também um recurso de marketing em si, para chamar a atenção para sua apresentação, frente à recente onda de reivindicações que fnalmente conquistam voz e inevitavelmente ganham espaço midiático. Mas vamos reconhecer também a importância dos próprios movimentos de reivindicação sociais, pois, sem eles, tais investidas, embora mercadológicas, difcilmente viriam a ocorrer em um meio já tão estabelecido e cujo padrão de beleza é bastante enraizado em certas características visuais.
Trata-se de ir de encontro justamente a quem tem o poder de produzir, difundir e defnir sentidos como norma, consequentemente normalizando imagens corporais específcas. ‘Questionar a identidade e a diferença signifca, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação.’ (SILVA, 2000, p. 91). A inserção do “diferente social” em um evento como a SPFW, maior evento de moda da América Latina, com reconhecimento e repercussão mundiais, acaba por funcionar como polo de onde emergem não só padrões, mas lugar onde tais questionamentos, quando apresentados, têm o aval do próprio polo emissor da normalização. É justamente devido ao poder da moda em infuenciar e divulgar valores à sociedade a respeito do belo, e pela dimensão propositiva de seus desfles, que a conquista da presença da diversidade nesse espaço ganha dimensão de possibilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reivindica-se atualmente na moda a mudança de parâmetros de beleza com vistas à valorização das individualidades, das diferenças e da diversidade, como mais uma investida importante para que se abra o leque das formas de presença também pelo viés da aparência e da beleza. A modelo do tipo magra predomina especialmente no espaço dos desfles de moda, o que interdita o acontecimento do que acreditamos ser esse potencial dos desfles de moda.
No entanto, vimos que a beleza dos corpos não pressupõe regras fxas e que a instituição moda não existe antes dos indivíduos que a elaboram; logo, é possível aos agentes culturais – indivíduos e instituições – mudanças de paradigmas em relação ao belo do corpo. Uma vez criado com o pretexto da mostra de novas coleções de roupas de moda, o desfle de moda atualmente ultrapassa tal fnalidade e se revela, além de um espaço mercadológico e artístico, como um espaço de experimentações e de possibilidades, ambiente de concretização de maneiras diversas de se mostrar e sugerir formas de presença humana através da ludicidade, que chama o público a observá-lo como aparições instigantes. O desfle é o espaço da moda, mas a inserção de manequins, desde o seu início, o coloca igualmente como espaço do corpo, em que são sugeridas formas pelas quais o humano, através de sua relação com a roupa, pode aparecer, se compor e ser vislumbrado.
Quando reconhecemos os desfles de moda como espaços de experimentação da relação corpo-roupa e de sugestão de formas de presença, acreditamos que as passarelas não são exclusivas a corpos magros, como uma essência da instituição moda, e sim equipamentos do seu trabalho, que seria justamente o de propor à sociedade inventividades sobre as formas com que se pode aparecer. Para isso, não só a criatividade na roupa é necessária, mas a experimentação e proposição das roupas em corpos em suas variadas possibilidades físicas. Com isso, o corpo magro não sai de cena, mas fgura como mais um dos tipos corporais possíveis.
Referências
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