CORPOMURO - Redesenhando a paisagem nos muros ferroviários de Santa Eugênia, Nova Iguaçu - RJ

CORPOMURO Reescrevendo a paisagem nos muros ferroviários de Santa Eugênia, Nova Iguaçu - RJ.

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Nathália Gomes Miranda Orientador: Flaviana Raynaud Co-orientador: Daniel Milagres

CORPOMURO Reescrevendo a paisagem nos muros ferroviários de Santa Eugênia, Nova Iguaçu - RJ.

Projeto Final Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 2019.1

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Agradecimentos

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Anexo

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Referências Bibliográficas

desertos travessias jardins abrigos avessos

Reescritas da paisagem nos muros ferroviários de Santa Eugênia, Nova Iguaçu

CorpoMuro:

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uma experiência de alteridade nos muros ferriviários

Introdução

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Sobre a construção de

Resumo

SUMÁRIO

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resumo

Esta pesquisa se propõe a produção de outras narrativas e formas de escrita da paisagem, em um trecho dos muros do ramal ferroviário de Nova Iguaçu, por meio de derivas, montagens, desmontagens, escritas poéticas e ações. Essas narrativas representam uma forma de resistência ao discurso sobre esses muros, que falam sobre medo, insegurança e abandono, e escondem a vitalidade que resiste entre eles. Logo, tenho base na seguinte premissa: existe mais vida do que se conta, ainda que também exista abandono, medo e falta de segurança. Além disso, o caráter divisório do muro, que marcou meu processo de reconhecimento espacial da cidade e momento político que vivemos também me move a falar sobre estes outros discursos. A pesquisa parte de um enfrentamento com os muros da ferrovia, e busca desmontá-lo enquanto elemento urbano na paisagem, e entendê-lo enquanto dispositivo, remontando sentidos a partir das experiências corporais e das escritas que delas se desdobraram. Como resistem? Como reexistem? Durante a produção das narrativas, emergiram cinco palavras-chave, que se tornaram conceitos e modos de operar, identificados em vários trechos. São elas: desertos, travessias, jardins, abrigos e avessos.

Com o objetivo de uma reflexão crítica sobre este lugar que me é familiar, me propus a apreender os movimentos, fluxos e usos que se dão no cotidiano dessas paisagens, para assim reescrevê-las com a complexidade que emergem destes processos. Abrir os sentidos no meu corpo e nestes muros.

Palavras-chave: muros, corpocidade, narrativas, corpomuro.

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Introdução

“Como escapar da passividade corporal? (...) O que estimulará a maioria de nós a voltar-se para fora em direção ao próximo, para vivenciar o Outro? ” (SENNET, R. Carne e Pedra, 1997) Esta citação de Richard Sennet traduz o sentimento que me atravessa desde o início da elaboração deste trabalho: minha busca por um modo de produzir paisagem e arquitetura assumindo como principal fio condutor a relação entre os corpos e o espaço.

Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

Nova Iguaçu

Sou moradora de Nova Iguaçu e sempre tive o desejo de refletir sobre esta cidade, pois falar sobre ela move meus afetos e memórias.

Quando pequena, fui ensinada a não andar nas margens ferroviárias, especialmente nos vãos entre estações, que assumimos como lugares vazios, perigosos e abandonados. Uma atmosfera de medo foi construída acerca desses lugares, fazendo com que eu me afastasse, não criando vínculos com eles, diferente de outros pontos de Nova Iguaçu. Isto me inquietou. Movida por esta sensação, realizei caminhadas nesses lugares, rompendo a lógica de medo que ainda existe em minhas memórias. Começo com a abertura do meu corpo ao afeto pelo meio e pelos outros corpos.

Este trabalho se dá a partir das relações estabelecidas entre corpo e espaço no intervalo de 2,5 km (dois quilômetros e meio) murado do ramal ferroviário de Japeri, no trecho de Nova Iguaçu, compreendido entre a Rua Anhanguera no bairro Bandeirantes e a Avenida Governador Roberto Silveira no bairro central, escolhidos por afinidade.

Durante este processo, percebi muitas singularidades que demonstraram a complexidade existente nesses muros. Existe uma disputa política e territorial sobre suas narrativas, que parece colocar as estações e suas possibilidades de ocupação em uma posição mais importante do que os moradores na construção do lugar.

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Sendo assim, busco neste projeto, apreender como os corpos se relacionam com os muros do ramal ferroviário que divide a cidade, de que maneira são afetados reciprocamente e como posso a partir de experiências corporais pessoais, que contrariam os usos para que foram criados, pensar e produzir desdobramentos para a discussão sobre a construção de paisagem nestes lugares.

Contrariando as análises territoriais e arquitetônicas, adotei um método de apreensão da complexidade urbana mais compatível com a minha vontade de imergir nesses lugares: a prática das derivas.

Caminhadas erráticas que me levaram a (re)conhecer as margens do muro. Algumas perguntas surgiram: por que andar por este lado da calçada e não por aquele? Por que aqui as pessoas cuidam do muro e ali não? Caminhei, deixando-me levar pelas sensações que me indicavam por onde andar, e que questões eram levantadas para a construção do trabalho. Para cada caminhada, um registro era feito; inicialmente, os registros foram textuais e fotográficos, e ao longo do processo de pesquisa fui elencando outros modos de registro. Aqui a imagem é uma ferramenta de discussão e tomada de posição, através dela eu monto e remonto o meu entendimento sobre o lugar. A imagem expõe as resistências, as reexistências, as contradições, pessoas e objetos, desconstruindo as ideias pré-concebidas sobre os muros e sua ausência de vida.

Portanto, construí narrativas através das imagens e derivas, em um exercício de entender o que há por trás do pensamento óbvio sobre cada uma delas, e, consequentemente sobre cada lugar. Durante as caminhadas, emergiram palavras que se tornaram conceitos-chave para o trabalho.

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A produção das narrativas foi atravessada pela leitura de alguns autores que trabalham questões que surgem da experiência na cidade contemporânea, e o conceito que emergiu dessa produção foi o de CorpoCidade. Este conceito, que se tornou o fio estreitante da pesquisa, foi desenvolvido por Paola Berenstein-Jacques e é o resultado da reflexão crítica sobre empobrecimento da experiência corporal urbana, decorrentes do crescente processo de espetacularização das cidades contemporâneas, das artes e dos corpos. A prática das derivas foi essencial para aplicação desse conceito, pois somente quando nos colocamos na cidade, podemos entender de que tipo de empobrecimento relacional estamos falando, e como podemos agir e falar sobre ele.

Além de Paola Berenstein, outros autores como Fabíola Zonno, Fabiana Dutra e Emika Takaki me introduziram ao tema do CorpoCidade, buscando sua origem com Guy Debord e os Situacionistas. A leitura de Solà-Morales me auxiliou na interpretação dos desertos identificados como Terrain Vague. Para o entendimento de deriva, retornei a Guy Debord, e recorri a Careri para a atualização mais recente de sua aplicação. Outros autores contribuíram para a conceituação do tema como Foucault e o entendimento de dispositivo; Agamben e o conceito de profanação; por fim Stephen Graham com sua crítica as cidades sitiadas sobre os meios de reestruturação espacial, e a vida desses espaços.

Com a escolha das cinco palavras-chave, elaborei montagens com as fotos para a ressignificação do lugar. Essas montagens expõem quais são as diferenças e as recosturas características que antes eram vistas apenas em um dos pontos. Em suma, escritas que mostram como a cidade é muito mais complexa do que os mapas 11

convencionais dão conta de demonstrar. As montagens apontam fragmentos remontados que lançam as atmosferas presentes no percurso, pois são feitos com a abertura ao afeto pelas ambiências vividas.

Sempre que eu falava sobre meu tema de pesquisa, era comum ouvir que o espaço dos muros da Supervia, são ‘mortos’ ou ‘abandonados’, porém, durante as inúmeras derivas, me surpreendi com as múltiplas situações produzidas no muro e parti dessas sensações para construir esse trabalho. Por fim, o objetivo deste trabalho é experimentar outros modos de percepção e compreensão destes muros, e expor as forças ali atuantes, construindo uma outra escrita sobre o lugar, um outro discurso sobre esta paisagem nestas margens ferroviárias de Nova Iguaçu, cujas soluções apontadas são sempre de revitalização e que acolhem o discurso de terra arrasada tão difundido.

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Sobre a construção de uma experiência de alteridade nos muros ferroviários

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Este capítulo contém a base teórica da pesquisa, suas práticas, o percurso metodológico e questões levantadas, centrando-se na construção dos temas e conceitos principais a serem utilizados no decorrer do trabalho.

Interessa-me entender como cada um destes conceitos atravessa meu pensamento e se aplicam a pesquisa, e como o corpo pode ser o meio pelo qual apreendemos o lugar. Para isso, concentrei em delimitar apenas o conceito de corpocidade e corpomuro, visto que são essenciais para a compreensão da pesquisa.

Tendo em vista que a principal finalidade da pesquisa é a construção desse novo olhar através do corpo de quem o apreende.

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corpocidade

O uso do corpo como meio de luta política não é um acontecimento atual, mesmo que hoje ele tenha uma visibilidade maior com o uso das redes sociais e plataformas de divulgação online. Este corpo político que se coloca na cidade e a reconquista, está cada vez mais presente e em evidência, por isso, o debate por uma articulação entre esse corpo e esse espaço urbano volta a ganhar força.

Com esta informação em mente e como já falado, o conceito de CorpoCidade emergiu nesta pesquisa, visto que o corpo é o canal para a experiência na cidade que se desdobra nessa outra escrita que proponho. Os corpos que habitam e praticam a cidade, configuram uma corpografia, que são os registros dessa interação corporal mútua. Essa experiência produz marcas no corpo de quem experimenta e simultaneamente sua corporalidade-registro. O conceito de corpografia foi elaborado por Paola Berenstein-Jacques e Fabiana Dutra, na articulação entre Dança e Urbanismo. Esses conceitos e debates foram – e são – amplamente discutidos na plataforma CORPOCIDADE, desdobramento do trabalho de ambas no Programa de Pós- Graduação da Universidade Federal da Bahia, que buscam alternativas a criação de “cidades espetáculo” (Guy Debord, 1997). É importante ressaltar que esse termo se tornou chave para o trabalho, por concentrar discussão das relações que o urbanismo tem com o corpo, suas formas de apropriação e práticas cotidianas. O valor deste debate está justamente em encontrar relações tão semelhantes em outros pontos dentro da própria cidade de Nova Iguaçu e nas circundantes, já que a linha do trem é cercada por toda a sua extensão.

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corpomuro A construção de muros para proteção de propriedade privada é prática comum dentre aqueles que constroem na cidade. Mas de que maneira este elemento arquitetônico pode influenciar na vida cotidiana dos corpos que perpassam? Segundo Paola Berenstein-Jacques (2010) o corpo entende a cidade como um conjunto de condições interativas, logo, tudo aquilo que é posto na cidade gera algum tipo de relação, que afeta diretamente o corpo.

O processo de privatização dos espaços públicos tem embasado a crescente onda de implantação de dispositivos de segurança numa cidade que se vende como insegura. Caminhando um pouco vemos câmeras, grades, muros altos, e somos quase convencidos de que realmente precisamos de tanto. Em Nova Iguaçu não foi diferente.

O trem deveria ser salvaguardado dos males externos, e então, a construção dos muros é justificada. No entanto, constantemente me questiono se a presença destes meios de “proteção” não significa a falência das instituições que deveriam legalmente garanti-la.

Pois bem, o que seria então este espaço das margens dos muros?

Um lugar? Um vazio? Margens? Ao longo do processo de pesquisa, entendi que o muro na verdade funciona muito mais como um campo de força, um dispositivo que demonstra quem são os agentes liderantes, e até mesmo a narrativa de separação e as interpretações ruins do muro deixam ele cada vez mais forte. Sua essência separadora é mais bem construída através dos discursos que o levantam.

Entendo o muro como um lugar, logo, ele passa a ser um instrumento de representação de identidade de um grupo, pois é a materialização dos limites reconhecidos. Segundo Jane Jacobs (1961), a construção de muros para a rua levava a uma ausência de olhos na rua, morte da vida na cidade, além de criar uma paisagem monótona e constante.

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Essa dinâmica é encontrada em quase todas as cidades da Baixada Fluminense cortadas pela linha férrea, que é murada, e gera uma ruptura espacial dentro desses municípios.

Este muro que fora criado para proteger, fez parte da história da cidade e a marcou não só geograficamente, mas o cotidiano das pessoas que por ali perpassam. Na interpretação de muro, de corpo, na permissão de entendê-los como um só, percebo a violação sofrida pelo muro. Entendo este muro como dispositivo gerador de tensões. O poder de quem usa, que efetivamente pratica aquele espaço; o poder de quem o construiu; o poder de delimitação clara entre o coletivo e o individual.

Questiono a existência desse muro como um meio de controle social e proteção da propriedade privada, e percebo que um ato de resistência foi feito espontaneamente pelos moradores (no que chamo de singularidades/momentos do muro).

O foco deste trabalho está nos movimentos que são produzidos a partir dos muros, mas é importante frisar que a existência desse muro não deve ser naturalizada, e por isso, tantas vezes é violada pelos moradores. A própria definição de espaço público e privado é questionada, já que se não pertence a nós, mas é utilizada por nós, quem detém o poder sobre o espaço?

Percebo o quanto este muro tem uma relação de alteridade conosco. O muro se fortalece nos gestos das pessoas, e sua não abertura ao outro; nos carros, que empurram nosso corpo contra o muro; no estranhamento das pessoas quando me propus a caminhar pelas margens dos muros; o muro se levanta pois nós o colocamos de pé.

Construímos sua necessidade e autenticamos ela cada vez mais por meio de discursos, ações, ideias.

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O CorpoMuro vai muito além do entendimento do muro como um corpo, mas como cada corpo torna-se muro, e como isso se constrói de maneiras diferentes.

Diante disto, me aproximei da prática da errância; perdi-me para então me encontrar em um lugar do qual sou tão íntima. Com as errâncias, experimentei a cidade através de outros sentidos, fluxos e percursos. Me perder significa não utilizar os meios convencionais de localização através de mapas, e caminhando, no contrafluxo da velocidade contemporânea, percebo as singularidades das margens ferroviárias, configurando minha própria ação do corpo no espaço.

Não somente ver a cidade, mas sentir seus cheiros, sons, texturas, com mãos, pés e desejos profundos.

Outra prática teórico-metodológica utilizada foi a deriva. Como havia escolhido falar sobre um lugar que eu já conhecia, no início pensei já saber tudo sobre ele, mas me esforcei em não tirar conclusões antes de mergulhar nesse novo meio de apreensão. Já nas primeiras derivas tive experiências inéditas de todas as vezes que andei por ali. Me permiti ser afetada a cada visita e não concluir nada antes, como se tivesse conhecendo aquele percurso pela primeira vez. Durante todas as derivas as imagens me acompanharam.

Elas fazem parte dessa nova construção de falas, e reconstrução dos lugares. Sua presença no trabalho é de suma importância pois foi a partir delas que transmiti esse novo olhar aos outros. Essas derivas e registros fotográficos são no intuito de encontrar outros fluxos, e me deixar aberta a todos os outros (pessoas, fluxos, sensações e etc.)

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A deriva pode ser entendida como uma outra forma de pensar um lugar a partir do afeto no corpo pelo ambiente, em que o praticante se permite entender a cidade através de caminhadas em lugares já conhecidos, mas que fossem guiadas por vontades do momento; qualquer artifício pode ser o gatilho para tomar uma rua diferente do habitual, e assim ter uma nova experiência inspirado por outros motivos que não fossem ir de um ponto a outro pelo caminho mais rápido.

Após as derivas, ou durante elas, escrevia todas as sensações e acontecimentos marcantes para aquela visita. Algumas vezes como um diário de bordo, outras de forma mais poética, outras de forma mais direta, pois cada visita tinha um gatilho para um meio de escrita. Algumas vezes a escrita não era suficiente, e utilizei outras ferramentas como gravação de áudio e desenhos diagramáticos para ilustrar aquela escrita.

Ao longo das caminhadas, elenquei palavras-chave que sintetizassem a essência de uma experiência específica, chegando então a cinco pontos escolhidos para aprofundar: travessia, abrigo, jardim, deserto, avesso. Essas palavras mudaram ao longo do processo, mas o cerne da discussão permanece mesmo que com outro nome.

Nomeá-los foi importante pois transmitia identidade aqueles pontos, e isso serviu também para que eu percebesse que se algo tem característica, nome, adjetivo, não pode ser dito como vazio.

A escolha desses pontos e seus conceitos/palavras foi importante como processo de primeira identificação, no entanto era necessário perceber onde estes conceitos podiam ser aplicados de maneira mais complexa. Então, as montagens e remontagens de imagens me permitiram perceber que as atmosferas presentes ao longo do muro podem ser relacionadas a outros pontos da cidade.

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CorpoMuro: Reescritas da paisagem nos muros ferroviários de Santa Eugênia, Nova Iguaçu.

Sempre que conversava com as pessoas sobre meu tema de conclusão de curso, o que eu recebia como resposta era “ - Mas aquele espaço dos muros não é vazio? ” E então eu começava a explicar toda a lógica do trabalho e era como se uma luz se acendesse no rosto de quem ouvia. Essa experiência aconteceu comigo inúmeras vezes, e a cada nova pessoa que eu podia trazer alguma outra compreensão daquele espaço, sentia que estava indo pelo caminho certo.

Após as muitas derivas nas margens do muro, eu entendi que haviam muito mais complexidades do que a visão seccionada da divisão dos pontos desertos, jardins, travessias, avessos e abrigos poderia compreender. Decidi que a montagem me ajudaria a perceber onde haviam outros desertos, outros jardins, outras travessias que não somente as que estavam diante dos meus olhos, e aí, talvez, apreender um pouco melhor o lugar, sempre utilizando a imagem como instrumento para construção dessa nova escrita.

O primeiro passo foi selecionar quais as fotos se relacionavam, mesmo sendo de pontos diferentes, sempre mantendo o pensamento em que tipo de atmosfera trazida por aquele ponto poderia ser encontrada em um outro, ou que tipo de interpretação nova poderia existir para as palavras que elegi para cada um deles. Depois de justapor as imagens conforme padrões escolhidos previamente, construí uma montagem que trouxesse a essência do conceito/palavra escolhido.

Enquanto recortava e colava as imagens umas nas outras, conexões se estabeleciam entre elas: de sentimentos, de ações, de sensações.

O aspecto mais evidente é que até mesmo a dualidade foi se esmaecendo aos poucos, pois a diferença demarcada pelas tipologias de prédios ou por meio da infraestrutura mais bem definida de um lado, fica em posição inferior as sensações do corpo encontradas em ambos os lados. Nesse movimento de desvelar, ou no ato político de falar sobre um lugar onde não há interesse (econômico) em ser falado, é que se percebe as micro-resistências, as corpografias, espaços luminosos. A seguir, apresento as narrativas, escritas, remontagens e ações das cinco palavras-chave do trabalho.

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derivas

pontos

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TRAVESSIAS narrativa O corpo foi atravessado. Ora, agora chamo de corpo este muro que serve apenas como proteção. Foi profanado. Antes sua função era proteger e agora serve de passagem, encosto, atalho. Os furos dos muros, lugares onde a assepsia não chegou, mas que revelam todas essas micro-resistências que dão sentido verdadeiro ao lugar, e não aquele o programa originalmente definido.

Me parece tão bonito essa confusão de atividades que por um momento me pergunto qual era o papel que eu deveria exercer com meu trabalho, e não na tentativa de romantizar os problemas, mas de verdadeiramente entender que contribuição eu poderia oferecer.

Observei pessoas conversando, vendendo, mexendo no celular e eu tentando caminhar por ali como se fosse a primeira vez. Aqui os processos de controle não chegaram, o caos predomina, a profanação é feita de todos os modos, nas paredes, no chão, e é como se a arquitetura pudesse alcançar tantas sensações que seria impossível definir qual é a real função da passarela. Vai e vem. As pessoas vão atravessando sem parar. Atravessar. Onde está o muro agora?

Parece tão fácil transpor seus limites, as pedras, o piso improvisado e desnivelado parece não atrapalhar. Esse corpo cruzado, agora se desfaz em função de outros corpos. Tornam-se um, ora dando vez ao que se move, ora ao que permanece.

Como são as travessias do corpo?

O caminhar é considerado por Careri (2007), uma ferramenta crítica capaz de descrever e modificar os espaços, logo, não existe crítica maior a este espaço do que o movimento de pessoas.

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Retirado uma parte de si, o muro se desfaz em muitos pedaços, e de repente ouço diálogos, encontros, muitas vozes e movimento.

Despreocupados de qualquer compromisso que o muro tem de proteger algo, as pessoas passam por ele como se não existisse, ziguezagueando sem parar. Na verdade, não existe, foi retirado. A necessidade de atravessar de um lado a outro foi maior que qualquer atribuição dada a esse corpo mutilado.

Curioso o fato que se revela através desse movimento, que é o afeto dado a este trecho, além disso existe uma dualidade no visível e invisível, de um corpo que se abre para essas relações com o meio.

Eu passava rápido quando esse momento me chamou a atenção.

Nas caminhadas que fiz ainda não tinha vindo aqui e foi como se revivesse algumas sensações.

O muro também é expositor. Os papéis amontoados cobrem o azulejo e anunciam os serviços, que comunicam e tentam gritar alguma informação. O muro agora se retorce. Retorcer. Já não o vejo tão limpo, agora ele se desdobra e cria passagens, mas que foram criadas e não nasceram dele. Os corpos se ajeitam. Pela direita subimos e a esquerda descemos. Tudo programado para os nossos sentidos.

As cores agradam os olhos, as proporções aperfeiçoam o caminhar, há lugar para tudo menos para desordem. No entanto ela está lá, vazando pelos anúncios, escorrendo entre as pichações, e por entre as brechas da janela a paisagem renegada.

Posso sentir o vento gerado pelo movimento das pessoas, e por entre janelas desenhadas no muro vejo o trem passar. Tentaram cobrir com propagandas, e de novo, esse corpomuro toma forma de anúncio.

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Travessia. Atravessar. Atravessado. Encontros. De todas as travessias possíveis, a mais marcante delas é que as pessoas fazem umas nas outras. Os encontros e desencontros gerados por uma simples passagem improvisada, ou nos patamares da passarela. Em uma determinada visita, observei duas pessoas que se encontraram e pareciam não se ver há muito tempo, por entre os trilhos, sem preocupações, conversavam sobre algum assunto que não pude me atentar. A ambiência amigável que todas as travessias geraram, me fizeram perceber cada detalhe daqueles espaços. Ao mesmo tempo que em meio a muitas pessoas, eu podia me camuflar. Ninguém se atentou enquanto eu tirava as fotos, e escrevia, sorria para situações que eu não fazia parte. Outro aspecto importante nas travessias é a suavização dos limites entre os lados. Se as imagens de satélite demonstram um espaço mais homogêneo, sem dúvida esse lugar não seria assim. A presença do comércio cria uma ambiência de familiaridade, em que os passantes são mais abertos a conversas e menos atentos a gestos. Percebo isso como demonstrador da sensação de segurança trazida pela quantidade de pessoas, e que os passos são mais devagar, a conversa é mais extensa, o desconhecido já não é tão assustador. O curioso é que em todas as travessias, aspectos de degradação elevados do ambiente são presentes, e em geral, as pessoas se sentem inseguras em lugares assim, diferentemente de todas as travessias.

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ação

As travessias do outro / O que tem do outro lado? / Através do outro / A travessia através do outro Ação: Fixar três cartazes em ambos os lados da travessia. O primeiro escrito “O que tem do outro lado?” ; o segundo: Um mapa com indicações dos pontos de interesse do lado oposto; o terceiro: uma legenda com os nomes desses pontos de interesse. Perguntar as pessoas o motivo de cruzarem a linha férrea e se elas consideram a travessia proibido. Este ponto está situado a aproximadamente 1km do início da deriva, no bairro Santa Eugênia.

Intenção: Convite a ‘regularizar’ a travessia que já acontece, a profanação, conceito desdobrado ao longo da pesquisa, de modo que chame a atenção de mais pessoas, criando uma espécie de consciência positiva mesmo sabendo que aquele espaço não foi desenhado para uma travessia. A intervenção reitera a travessia como uma maneira de criar novos encontros diante dos inúmeros motivos para atravessar.

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Quarta-feira, 15:40, o tempo está ameno. Esta ação durou um pouco mais de duas horas.

Uma senhora veio ao meu encontro, muito empolgada, ela precisava me dizer os motivos de atravessar ali.

Três cartazes, fita durex, papel, caneta e prancheta na mão. Estava com medo, pensando que ninguém se interessaria por aqueles papéis colados no muro.

Uma pessoa passou e sussurrou: “Estão querendo nos ensinar a andar pelo nosso próprio bairro? ” “nosso próprio bairro”.

Meu próprio bairro. Mesmo que não more mais ali tão perto, eu ainda sinto como meu, e lembro de todas as tardes que eu voltava da escola e passava em frente ao buraco.

Sim, buraco. Não o chamava de “travessia”. Esse é o nome erudito.

Não sabia o que podia acontecer. Precisei de ajuda para fixar os cartazes que insistiam em cair, por isso levei companhia para fotografar e auxiliar na montagem.

A ação: “Fixar os cartazes e perguntar para as pessoas: Por que você atravessa? Você sabe que é proibido atravessar aqui? Você considera proibido a travessia? Observar suas reações”.

Quando comecei a perguntar, muitos fugiram pensando que eu estava vendendo alguma coisa. Mudei a estratégia, já os abordava anunciando “Não estou vendendo nada!!” E então, todos abriam um sorriso aliviado e falavam comigo.

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“Olha, preciso falar com você”.

E ela segurava muitas sacolas, e parecia preocupada com o ônibus que estava esperando, mas eu fico muito feliz por sua boa vontade em me contar. E continuou “Lá do outro lado tem mais escolas, aquela vermelhinha ali é uma das melhores. E comércio também. Eu estava lá agora comprando umas coisinhas, porque aqui não tem nada. Fora os ônibus. Tem muito mais ônibus desse lado, minha filha. Os ônibus do lado de lá demoram muito. ” Lado de cá, lado de lá. Quase todo mundo conhece assim, inclusive eu. O meu é o lado de cá, o dela, o de lá. Ela foi dizendo tantas coisas que nem tive tempo de perguntar, ela queria me dizer.

E disse

“Não adianta fechar o buraco porque a gente abre de novo”.

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Outro senhor me explicou que há poucos anos a travessia foi fechada, mas que imediatamente eles a reabriram, logo ao lado da antiga. A urgência do corpo. Perguntei se ele concordava com a reabertura e ele foi enfático “Claro! ”. Perguntei a outras pessoas se tinham o hábito de passar por ali.

“Sim, todos os dias” Todos os dias.

Quem somos nós para impedir um caminho que se constrói todos os dias? “Quantos caminhos eu faço todos os dias? ” Penso. Penso nos pontos de ônibus que já chorei voltando da faculdade, angustiada, me perguntando o motivo de ter escolhido uma faculdade tão longe. Repito para mim mesma “Quantos caminhos eu faço todos os dias? ” Uma outra senhora, muito inquieta com a minha pesquisa insistiu em contar seu trauma por já ter visto uma pessoa morta nos trilhos, depois de tentar atravessar no momento em que o trem passava.

De certa forma, todos queriam escutar, falar, e saber o motivo do meu interesse. “Por que o cotidiano deles me interessava tanto? ”, me perguntavam. Uma pessoa me perguntou se eu trabalhava para alguma empresa, pois ela ouviu falar que construiriam uma estação intermediária e seria ali. Respondi que não. Depois de algumas abordagens, guardei meu material e fiquei do outro lado da rua, de cada lado do muro observando as reações. Um homem ficou muito curioso, olhava e lia cada frase, passando o dedo indicador pela legenda. Dois jovens passavam, voltaram para ver do que se tratava, bateram palmas como quem concorda e foram embora. Vibrei.

As pessoas passavam, retorciam o pescoço pois não queriam parar, podia ser só mais um cartaz com propagandas. Quando uma parava, as outras se sentiam à vontade para imitar, e aos poucos, eu via o interesse aumentando.

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Enquanto parava e esperava a próxima pessoa para conseguir conversar, eu desviava dos corpos, como se o fluxo daquele cruzamento fosse intenso demais para o meu corpo, como se eu estivesse no contrafluxo de todos eles. Durante o processo de montagem e acontecimento da ação eu entendi que não era sobre listar as pessoas motivos para ir de um lado ao outro, era sobre ouvir. Produzir uma outra narrativa sem escrever nenhuma palavra, mas na minha abertura a ouvir o outro. Em todo tempo imaginei que (d)escrever era a melhor forma de eternizar o acontecimento, mas percebo que não.

As minhas, as deles, as nossas. Abri-me como aquele muro e fui. Pouco a pouco construindo uma fenda para que outros pudessem

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Esse texto é sobre as travessias.

Ao final, senti que eu estava sendo atravessada por todas as pessoas que me permitiram participar um pouco da sua rotina. Toda a minha insegurança foi se esvaindo a cada depoimento que eu ouvia, e os sorrisos, e as vidas.

passar, e deixar sua marca, e depois me reconstruir ou desconstruir, não importa.

Nunca mais serei a mesma.

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DESERTOS narrativa Faz calor e aqui não tem nenhuma sombra. Observo a minha volta e não vejo ninguém. Não ouço passos, e neste momento nem mesmo o barulho dos carros. Me concentro para entender a lógica deste lugar, mas o silêncio invade meus pensamentos. As cores modificadas da foto traduzem bem esse lugar. Desértico. Monocromático. Inabitado. Improdutivo.

Como Solà-Morales (2002) chama a atenção, a fotografia persegue esses lugares, e comigo não foi diferente, ele me chamou a atenção pela ausência de qualidades. Solà-Morales deixa claro que a imaginação romântica que temos dos lugares nutre nossas lembranças e expectativas, nos impedindo de ver a realidade. Esse espaço não dominado é reconhecido como tarefa incompleta, onde a arquitetura não chegou, brecha da nossa insegurança. A permanência desses espaços desabitados é questionada, mas são neles que há profanação, para a experimentação.

Os tons cinzentos doem os olhos, e o meu corpo se aperta na pequena calçada para conseguir registrar esse momento. Micro resistências. Resistir. A evidência do papel conciliador atribuído a arquitetura. A quietude deste trecho me incomoda e a ausência não só de objetos, mas de pessoas. As pessoas são o que mais sinto falta, e a chave da questão aparenta estar aí, buscar coisas ao invés de sensações, o impalpável Ora, se o fluxo dos corpos é o nosso campo investigativo, a escassez de fluxos caracteriza uma resposta negativa do corpo a este campo?

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Sennet (2001) apresenta a visão de que na cidade contemporânea, a rua assume um papel de mero espaço de circulação, perdendo seu papel político e democrático na cidade. Este muro, paralelo a uma Avenida de intenso fluxo de carros, contribui para a manutenção da sensação de que na verdade, existem dois muros: um construído e um imaginado. A cada passo dado para me aproximar e registrar mais uma visita, meu corpo se assusta com o barulho dos carros, e ele se comprime cada vez mais, tornando minha caminhada uma experiência de tensão. Posso entender essa experiência como uma extensão do que é definido por Sommer (1997) como espaço pessoal, tanto do muro, quanto do meu corpo, visto que seus limites invisíveis me afastam dele. Isto resulta num ambiente desprovido de qualidades que contribuam para o coletivo, público, e reforça o caráter privado do muro. No muro existem desenhos que refletem um profundo desejo de reconquista: o rosto de alguém, mas somente os olhos. O beija-flor, que almeja uma árvore. Um homem que espalha pelo jet de tinta estrelas e a palavra ‘reserva’.

Segundo Mogin “a experiência urbana é: um espaço público onde os corpos se expõem e onde se pode inventar uma vida política pelo viés da deliberação, das liberdades e da reinvindicação igualitária” (2009, p.30). Que liberdade há num espaço demarcado por securas corporais? A reconquista de um território renegado é a maior ambição da experiência diária do corpo, e assim, encontrar ou devolver sua identidade ao meio em que se encontra.

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O calor não é o que mais me incomoda aqui, porém gostaria de alguma sombra para descansar enquanto faço as derivas. O deserto se torna real diante das pessoas que se fazem deserto. Uma atmosfera de insegurança e medo é tão presente que posso sentir meu corpo se recolhendo a cada passo que dou. Os desertos de nós mesmos, da ausência do outro que nos assegura e conforta, trasmite ao ambiente toda nossa solitude no caminhar e agir. Transformamos nossos passos em um ritmo acelerado e solitário para o nosso destino.Desertos do ser. O muro ganha força no deserto, assumindo o discurso de protetor e então parece ser mais alto, mesmo não tendo ganhado nem um centímetro. Percebo então que o deserto nos faz muro, não o muro nos faz deserto.

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ação

PISOTEANDO D E S E R T O S Ação: Aqui falamos de desertos que vão além de seu significado literal, os nossos desertos, e como nos tornamos vazios durante a caminhada sozinhos por aqui. A ação consiste em sujar os pés de tinta, quantas vezes forem necessárias, e reproduzir os caminhos a pé que as pessoas fazem por um trecho das margens do muro.

Fotografar ou filmar o movimento. Falo também da cidade que se constrói pelo vazio, com dinâmicas próprias e com uma abertura a possibilidades.

Intenção: As marcas dos pés, do caminho, fazem ver como certos trechos são vazios e mostram que os vestígios da presença do outro, mesmo quando desconhecido, nos dá uma sensação de segurança, ou mesmo que apenas a marcas causem uma impressão de companhia, de movimento. Gravar sons durante alguns minutos daquele lado da calçada antes das intervenções para atestar o vazio de passos.

“Uma ferramenta de trabalho fundamental é a receptividade.

Receptividade transforma o corpo em campo. Não tenho ilusão de compreensão mútua, nem desejo de passar qualquer mensagem preestabelecida. Longe disso. Trabalho para a cocriação de sentidos momentâneos e compartilhados. Para a criação conjunta de um campo relacional. “ (FABIÃO, E. Ações. 2015)

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Já escureceu nessa sexta-feira com um clima quente, estranho para o outono.

O anoitecer me traz uma experiência diferente das outras. Embora eu tenha companhia para registrar essa ação, novamente sinto como se houvessem dois muros, o construído e outro invisível, que mim.

afasta

as pessoas

de

Gostaria que alguém falasse comigo, me perguntasse, risse, alguma reação que não fosse a indiferença, ou a própria ausência.

Escolhi tinta branca para ser mais visível, / eu invisível a tinta visível / depois percebi que seria impossível não notar, já que poucos pés andam por ali, e aquele que se aventurasse, certamente perceberia as marcas que eu deixei.

Escolhi um trecho das margens diferente daquele primeiro que identifiquei como deserto, agora, depois das montagens com as fotos, já consigo enxergar tantos outros desertos, até nos cheios de gente.

Caminho, indo e voltando, tentando entender naquele percurso que parece óbvio e tão linear, 52

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qual o melhor jeito de realizar a ação.

Enquanto ia marcando meu caminho, ou o caminho, como se fizesse algo inovador, eu olhava para o muro e tentava entender que tipo de marcas de presença haviam ali.

Percebo nele a vontade de entender todo o pensamento que envolve esta ação, e um esforço de me encorajar para um trabalho um tanto diferente do que ele conhece.

Eu comecei mergulhando meus pés na tinta com o chinelo. Um medo bobo de me sujar e não ter onde limpar. E a cada vez que meus pés tocavam a tinta, ainda que o calçado me protegesse, eu ia sentindo a textura dela deslizar quando encontrava o chão.

A solidão é uma marca. A ausência é uma marca. Passar por ali o mais rápido que pudesse era uma marca.

A textura de concreto que o muro tem, parece tão mais áspero, e vou deslizando a mão enquanto caminho e observo se alguém me acompanha.

O trânsito está intenso ao meu lado, e conversando com Cleber, que está comigo não só nessa ação, mas na vida, percebemos que a calçada não é tão pequena como nos lembrávamos.

“Talvez ela tenha parecido menor porque é vazia né? ”, ele me pergunta, e eu balanço a cabeça que sim.

Senti que deixava pedacinhos de mim naquela tinta.

E quando finalmente ouço o trem chegar, eu paro. Meu corpo para e não consigo prosseguir. Quando ele retoma seu ritmo e segue, eu também sigo, quase que em respeito a ele, como se eu entendesse que ele também faz parte daquele processo.

Quanto mais tarde ficava, mais carros iam se aglomerando e formando um trânsito intenso. Quase não conseguia ouvir as pessoas chegando perto de mim, só ouvia barulho de buzinas e motor, principalmente dos ônibus. A velocidade do caminhar ali era rápida.

Enquanto eu caminhava devagar, buscando entender o meu percurso, percebia que as pessoas aceleravam ainda mais, e não sei se por pressa de chegar ao seu destino ou se por vontade de sair logo daquele lugar.

Dentro dos carros, as pessoas me observavam, mas nenhuma delas sorria ou esboçava alguma reação.

Sentia tão profunda solidão.

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De novo, gostaria que minha presença fosse notada.

Foram três ações e essa foi a única em que ninguém veio falar comigo. As pessoas até me olhavam, mas nunca esbarravam, ou cochichavam, eram sempre olhares discretos. Os desertos se mantém. Nós nos mantemos deserto.

E como escrever sobre esse deserto foi duro.

Parei e recomecei tantas vezes, pois sentia que estava tentando retirar de mim o meu próprio deserto, e se até mesmo eu, que buscava aquela abertura, tive alguns instantes para relutar, agora entendo perfeitamente o não-toque, o não-olhar, o não-outro.

Mas a minha presença e o meu desejo de registrá-la são minha indisciplina, minha resistência, ainda que só por alguns momentos.

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JARDINS narrativa

É sábado e a rua está cheia, a hora do almoço se aproxima, mas isso não impede este homem de cuidar do seu jardim.

CUIDAR. Fico em dúvida se ele cuida ou tenta cobrir, a jardineira pode esconder o muro ou demonstrar o cuidado, a extensão do lar, o lugar comum. Se a arquitetura buscar romper algumas barreiras tão rígidas, somente o corpo pode ser mediador dessas relações que buscam transpor esses limites. Talvez ele tentasse escondê-lo, e cuidar era à sua maneira de rejeitá-lo. Esse cuidado protege e expõe, pois cuida daquilo que lhe é frágil. Cuida de si ou do jardim?

Busca proteção. A Espada de São Jorge que ele cultiva, é utilizada como amuleto, e então o muro e o jardim se misturam, ambos protegem, um do visível o outro do invisível. Confesso estar surpresa.

Em minhas memórias guardava imagens de rejeição daquele não-lugar, e quando encontrei esse homem fiquei impressionada pelo esmero com aquele espaço. Somos nós que atualizamos os programas, que percebemos, entendemos e damos significado a eles, e o corpo tem papel importantíssimo, pois é nele que sentimentos todos os carinhos e desgostos.

Continuo minha caminhada, agora quase não consigo enxergá-lo. É bem diferente aqui, a força dos tons de verde contamina o meu olhar. Os aspectos lineares da sua forma me trazem a mesma perspectiva de visão. Os mesmos carros, sons, mas agora meu corpo sente tudo tão diferente. O muro ganha corpo, e agora tem forma de vegetação frondosa, que toma o espaço da caminhada. Árvores, trepadeira, plantas menores e apenas algumas nuances do muro que está por trás. Acho que o cuidado do homem ao lado se espalhou e talvez muitos outros homes e mulheres quisessem olhar para esse muro e enxergar outras coisas.

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Caminhar por aqui já não é tão ruim quanto antes. O meu corpo se conforma e vai se acostumando com o clima, o cheiro, e me sinto mais em casa. Será a minha concepção idealista dos espaços contaminando as minhas palavras, ou os outros fatores realmente influenciam no modo como meu corpo sente esse lugar?

Não tem ninguém agora, mas a vegetação é a prova de que muita gente esteve aqui e isso tem cheiro de vida.

Floresceu. Este deslocamento afetivo no espaço, gerou um jardim.

Após um curto período, vejamos como está, os corpos em forma de plantas se apropriam do muro tornando-se um, e agora, sua camada o torna cada vez mais camuflado.

Em cada trecho observamos uma maneira em que o corpo se comunica com o meio, e este diálogo constante entre o corpo e o espaço, como tratado por Emika Takaki (2015) gerou este afeto visível dos moradores com esta porção do muro. A construção de uma paisagem mais amiga através do plantio, é o que Merleau-Ponty (1994, p.205) explica quando expõe que “a experiência do corpo nos ensina a enraizar o espaço na existência”. O corpo que vive, produz um espaço, pois apreende e assim o concebe.

Este ambiente pode ser caracterizado facilmente pois vemos nele a maneira como as pessoas e relacionam diretamente com ele. A manifestação dos corpos aqui é mais clara, já que dela foi gerado um ambiente diferente do dado. Este novo meio ambiente gerado pelo jardim, produz um ponto de encontro: “-Podemos nos encontrar no jardim próximo aquele bar” Ou “Me espere no jardim que seu Jorge construiu”.

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Por que não caminhar de manha pelo lado da rua que podemos tocar as plantas? Por que não plantar mais uma muda de flores para dar outros tons ao jardim? Este jardim é capaz de estabelecer um tipo de ponte invisível, criando uma atmosfera de sedução do corpo que esta separado dele pela via.

Vejamos, o muro dado para proteção, foi transformado em ambiente favorável a experiência sensorial mais rica, a produção de novas relações corporais, interpessoais, modificando o fluxo dos corpos, dando novos sentidos, dominando um território anteriormente hostil. As margens do muro foram concebidas para ser um espaço neutro, não de permanência ou complementares as àreas valorizadas da cidade, sendo sempre visto como espaço de transição, sem abertura para ambiguidade de interpretações. Porém, estas zonas problemáticas pertencem a estrutura social dada por este meio, já que este espaço configura-se não mais como estranho, e sim como familiar.

Expliquei a ele o meu trabalho e disse que se me visse outras vezes andando por ali, não era pra ficar assustado, e ele prontamente respondeu “Claro que não!” .

Aplica-se aqui, o conceito definido por Adriana Sansão (2011) como amabilidade em que o “atributo do espaço amável, daquele que promove ou facilita o afeto e a proximidade, opondo-se ao individualismo por muitas vezes característico das formas de convívio coletivo contemporâneas”. A intervenção, ou a ação do Sr Beto no muro, aproxima pessoas que sequer o conhecem, desconhecidas entre si, pois estão apenas interessadas em passar pelo trecho mais bonito do muro, com sombra, ou em uma mudinha de planta.

Observo o caráter de intermediação espontânea que o jardim exerce sobre aquele espaço sem pretensões, livre de conceitos pré-estabelecidos, porém, desempenha seu papel com sucesso ao integrar moradores e visitantes do bairro.

Conheci o criador do jardim. Sr Beto, ou Roberto. O Sr Beto tem um bar, logo a frente do jardim, e sua visão diária do balcão do trabalho era antes um muro feio e desarranjado, segundo sua própria descrição. Quando cheguei, ele estava arrumando um pouco mais o jardim, que cresceu bastante desde que fiz minhas primeiras visitas. Conversei com ele, tentei entender as motivações, e ele sempre repetia “criar um lugar mais amável, mais bonito”.

O belo. O belo materializou-se para ele como a natureza trazida pelas plantas. Novamente tentando esconder o feio que o muro tem.

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Jardim. Jardim de gente. Cuidado. Pertencimento. O jardim sempre foi o ponto mais intrigante para mim pois a transformação daquele espaço num jardim me trazia uma reflexão acerca de como nós ressignificamos/reivindicamos os lugares. As micro-resistências, a profanação, a tomada de posição das pessoas quanto ao lugar foram a chamada principal do jardim. O jardim é o espaço que eu entendo como a manifestação da individualidade, mas que gera resultados do coletivo. Na verdade, o jardim está presente na conformação espacial de reclusão, na admiração do espaço, no caminhar mais devagar. Em todos os jardins observe, sinta a respiração.

O jardim permite deslocar-se numa outra atmosfera, e o corpo vai construindo os significados, revelando nossos sentimentos e vontades. O jardim é o sentido mais poético da descoberta do corpo e seu deslocamento no espaço.

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ABRIGOS narrativa Avisto uma cobertura, sinto calor e preciso me abrigar. Sua extensão é construída logo ao lado, que está sendo balançada pelo vento. Penso o que motivou as pessoas a construí-la. Construíram também um banco, e posso me sentar. Sento, continuo observando. As pessoas esperam o ônibus, se movimentam para trás e para frente tentando enxergar o letreiro. Não consigo ver o outro lado da rua, pois a constante parada dos ônibus obstrui minha visão. Uma extensão do banco e cobertura, as pessoas passam muito tempo por aqui. Muitas pessoas, aglomeradas, esperam, sentam, ficam de pé, conversam, se distraem. Elas quase não me notam, exceto porque tenho um celular na mão, e registro aqueles momentos, quase invadindo seus corpos.

Atravesso a rua para observar o mesmo ponto. Quase silencio os outros sons, e concentro-me na imagem das pessoas sentadas naquele banco que é uma madeira empilhada sobre a outra. A sombra da cobertura de plástico azul acolhe cada vez mais pessoas, olho no relógio e vejo que o horário é de saída para o almoço.

Como é parar na cidade?

Quinta feira, 16h.

Venho ao outro lado. Caminho e deixo meu corpo me levar, apesar de conhecer quase todos as vias. Vejo muitas pessoas, elas se apertam debaixo de uma cobertura esperando pelo ônibus que as levará ao seu destino. A cobertura está desfeita, então eu e elas estamos desprotegidos. Proteção. A proteção que precisamos não é o telhado que nos dá, mas nós mesmos, uns aos outros, que juntos

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protegemos o espaço e o nosso corpo. O muro está logo aqui atrás, com grades e um pouco mais alto, como eu esperava.

Eles não entendem a relação que ele tem conosco, não veem o quanto ele é violado.

O ônibus chega, todos chegam para trás, nosso corpo se aperta junto ao muro. O barulho aumenta, as buzinas incomodam, pois a via não comporta tanto trafego da cidade que cresceu.

Os cartazes colados no ponto de ônibus tem um número, mas ninguém ao menos olha. São tantos, tão evidenciados pela repetição, porém foge aos olhares que eu busco encontrar.

Ando um pouco mais, e agora não tem mais ninguém, só os carros.

Logo aqui ao lado de onde todas as pessoas estavam, não há sequer mais nenhum corpo transeunte, só o estático. Não consigo entender. A mesma calçada, o mesmo muro, mas agora sem cobertura.

O muro vai se desfazendo e agora sinto as grades. A textura do concreto áspero dá lugar ao metal quente, mas minhas mãos podem penetrar entre elas. Olho e vejo as lojas que agora são o muro, e percebo o quanto ele se remodela em função dos nossos desejos.

Olho para o lado, tem uma bicicleta. Paro a sua frente e vejo que foi cuidadosamente amarrada junto a grade.

Logo desarmo meus pensamentos que aqui não há ninguém que pertença, pois, sim, há. O dono desta bicicleta se sente como eu. O muro não é muro, é casa, é quintal, é corpo. Pois a casa se cuida, se troca, se reforma, e sobretudo a casa é nossa.

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Decidi ouvir os sons. Parei, andei, observei, me atentei aos pequenos detalhes que faziam a dura transição entre o ponto em que o muro era reconhecido e onde ele é simplesmente um muro. Música, carros, pessoas falando e caminhando, conversando entre si e em silêncio. O movimento que interessa a cidade, ou a própria cidade acontecendo. É difícil me concentrar em apenas uma atividade, já que cada um tenta desviar o meu olhar para algum ponto. Ouço tantos passos, são das pessoas vindo de um lado para o outro, e os diálogos são gravados partidos.

Continuei caminhando, e já consigo ouvir o trem chegar. “Que sorte a minha!”. Logo depois da caminhada, percebi que o sentido do título deste trecho vai muito além do abrigo literal, aquele que cobre a cabeça. Mas a criação de um ambiente essencialmente habitado, que contém aspectos de intimidade, proteção, alento, e estes atributos geram a sensação de abrigo, fazendo parte da memória coletiva do lugar e construção de sua identidade. .

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quantos abrigos você carrega por aí?

a casa, o abrigo, estão sempre comigo.

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ação

Enquanto for, descanse.

Ação: Posicionar mobiliário para sentar em um trecho das margens do muro próximo ao comércio e que seja necessariamente muito movimentado. Escolhi duas cadeiras, uma mesa, um livro e um tapete do tipo “capacho”. Fixar em local visível um cartaz dizendo: “DESCANSE”.

Intenção: Provocar nos passantes, a apropriação e uso da cidade afetiva, como na casa, como o ato espontâneo de pendurar a bicicleta no muro. A ação deve acontecer nesses espaços comerciais para mostrar algo além da vida utilitarista remodelando o familiar.

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O tempo é um rio que corre: Este é o título do livro que escolhi para deixar na mesa durante a ação. Esse livro da Lya Luft que entendo como um ensaio memorialístico sobre a passagem do tempo, e como ela vai construindo um entendimento sobre a vivência a partir da sua própria. Me pareceu oportuno falar sobre tempo aqui.

O tempo que valorizamos tanto. Que continuamente repetimos não ter, ou passar muito rápido. E o título “...um rio que corre”, como essa ação, que me deixou tantas marcas mas passou.

Um senhor que trabalha como fiscal de ônibus vem na minha direção sorrindo.

É uma sexta-feira muito agitada e quente, e estou muito empolgada com esta ação. “Nessa vai dar tudo certo”. Dar certo. Um dia depois da ação, quando começo a escrever sobre ela, me dou conta que nada deu certo, e isso foi a melhor coisa que poderia acontecer.

“Não. Arquitetura”

Chegando onde imaginei fazer essa ação - novamente conto com a ajuda do Cleber, não tenho palavras para descrever como as pessoas se desdobram para me ajudar nesse trabalho – eu caminhei um pouco, analisei bem, a calçada estava bastante destruída onde eu imaginei que seria perfeito colocar a mobília.

Nós também seguimos montando. Quando termino, fico ao lado, mas não próxima o suficiente para assustar as pessoas, apenas para observar se haveria interação. Cleber atravessa a rua e fica escondido procurando fotografar.

“É um trabalho da faculdade né?” “É sim” – respondi.

“Letras? “, ele pergunta.

Um ônibus se aproxima e ele segue com uma expressão facial de confusão.

Preparei o cenário: duas cadeiras, uma mesa, um livro, um tapete escrito “Bem Vindo” e o cartaz que indicava que poderiam/deveriam descansar.

Perfeito. O que é perfeito em uma ação? Aprendi que perfeito é ser o que é, sem final “feliz”, apenas sendo. Apenas ser.

Enquanto eu colocava as cadeiras, parecia estar arrumando a casa.

Uma cadeira estava virada para a rua, e outra virada para a mesa.

Ai tudo começa a complicar.

Eu não me sentei na cadeira, não me coloquei nesta ação.

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Passam minutos e nada. Trocamos de posição. Mais alguns minutos e nada acontece.

Parecia que a mesa não estava ali. Se ela pudesse ser invisível, certamente as pessoas a notariam mais do que nesse dia. Começo a me preocupar. Cleber me acalma, tentando entender o motivo de haver tanta gente em pé, mas as pessoas não sentarem, nem ao menos por alguns instantes para esperar o ônibus.

Ficamos sempre próximos ao mobiliário e então eu esbarro novamente naquele senhor que havia conversado antes, que a propósito, não tive a chance de perguntar o nome.

Ele me questiona se as pessoas não vão querer levar o livro. Digo que se levarem, tudo bem, eu já li e ele servirá mais para alguém que ainda não leu. E então ele continua me perguntando “Me explica, qual o objetivo disso aí?”.

Então eu começo falando sobre como a rua pode ser um espaço mais afetivo, e uso o exemplo dele, que trabalha de pé, caminhando de um lado ao outro por aquela calçada estreita o dia inteiro, encontra formas de transformá-la num lugar, e não somente num espaço. E então ele me fala “Nossa! Verdade. Aqui eu tenho tantos amigos, tomo café, comemoro aniversário, seria realmente bom poder descansar um pouquinho, igual em casa. “ Ele sempre fala comigo sorridente, e aparenta gostar tanto da minha ideia que fica próximo ao mobiliário, e me parece que ele tenta proteger minhas coisas, preocupado se poderiam levar ou destruir.

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Novamente eu me coloco a esperar e observar, olhando de longe (durante a ação eu não consigo perceber o fato determinante que desta vez eu não estava lá. Estava longe.)

Cleber ainda a postos. Mas nada acontece. Decido atravessar a rua e não me preocupar mais. De algum jeito, não acontecer nada também era uma resposta, só não era a que eu esperava.

Enquanto conversávamos sobre o que estava acontecendo, e um pouco frustrada tentava entender, uma criança sentou. Estava acompanhada de duas mulheres: eu imagino que sua mãe e sua avó. As duas, atentas, aguardavam ônibus, mas uma delas sempre segurava a cadeira para a criança. A menina sentada, balançava os pés que não alcançavam o chão.

Foi observando aquilo tudo, enquanto Cleber tirava fotos, eu entendi porque só a criança sentou. Todos imaginavam que as cadeiras e a mesa eram de alguém, mesmo que estivesse escrito “descanse” nelas. Eu comecei a pensar que as crianças não se importam com regras de conduta, ou proibições. Elas simplesmente fazem o que seu corpo pede, ou sua curiosidade. E assim foi, ela viu uma cadeira e sentou.

A moça que estava com ela, volta e meia observava ao redor, como se esperasse que alguém a repreendesse por estar ali, e enquanto isso não acontecia, ela mantinha a menina a descansar.

O ônibus delas chegou e elas seguiram. Continuamos a observar.

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Eu continuei sem me colocar, apenas observando.

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Depois de escrever sobre esta ação, conversar com as pessoas sobre como ela se deu, foi que percebi a minha ausência. Quando planejei a ação e até mesmo enquanto ela estava sendo realizada, eu imaginei que sentar naquela cadeira era interferir demais. O que não passou pela minha cabeça é que se nem mesmo eu quis sentar ali, o que faria as outras pessoas sentarem? Por outro lado, a tua casa, a minha casa, o meu abrigo, estão comigo o tempo todo.

Quando estou longe dela, carrego minhas coisas comigo.

Na bolsa, na roupa, na mente. Minha casa, meu abrigo, eles estão sempre comigo.

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Uma senhora estava ao lado do “cenário”. Ela estava de muletas e com sacolas.

MULETAS E SACOLAS. Escrevo em caixa alta por minha indignação tamanha ao fato dela não ter sentado. Ela olhava para as cadeiras, para a mesa, para o livro e continuava de pé.

Suas mãos mal podiam escolher entre se apoiar sobre as muletas ou segurar as sacolas, mas ela se mantinha firme de pé. E quanto mais o tempo passava, mais ela ficava tentada a sentar. Eu podia sentir.

(Novamente, reflito sobre como minha não interferência/presença fez essa ação ser tão diferente.)

No fundo eu já imaginava que ele não sentaria, e ele não sentou.

A ação traz o inesperado, a programação do desprogramado. Agora parece que tudo faz mais sentido do que antes, quando eu esperava que sentassem.

A minha perspectiva de abrigo, não foi ofuscada porque a ação não saiu como esperado. Ela se expandiu. Abrigo não é quando te dizem que é, ou quando te forçam a se sentir em casa. Casa é muito mais do que um contexto.

Vou embora mais satisfeita do que pensei que estaria, com os sentimentos borbulhando sobre tudo que vi e ouvi, mas tenho agora muito mais do que quando cheguei.

Eu queria poder gritar dizendo que ela poderia sentar, mas não quis interferir. Aquela cena estava doendo em mim.

Como alguém poderia precisar tanto de um espaço para descansar, tendo um ao seu lado, mas não sentava.

Como fazemos cidades tão secas de casa, tão vazias de sentimento, tão funcionais acima de sensíveis?

Escrever sobre isso me machuca, pois enquanto eu olhava fixamente nas expressões daquela senhora, pude entender quão disciplinados nós somos no espaço que é de todos mas não é de ninguém. E como nós mulheres aprendemos a ser em tudo “corretas” e ignorar nosso corpo.

Eu sigo observando, e aqui, segue doendo.

Quando ela foi embora, pouco depois chegou um senhor, também como sacolas, dessa vez bem mais cheias que a moça anterior.

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“O caminhar condiciona a vista, e a vista condiciona o caminhar a tal ponto que parece que apenas os pés podem ver.”

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Robert Smithson.

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AVESSOS narrativa Ele está lá. Mal posso vê-lo, mas ele continua lá. O outro lado tem uma relação tão distante de mim quanto eu tenho dele. Quase como se ele fosse uma pessoa e nós não nos conhecêssemos. Aparentemente, daquele lado, ninguém sente apreço ou alguma vontade pelo muro, todos o rejeitam e ele continua intacto. Incrível como falta identificação das pessoas com esse lugar, e como a situação econômica influencia nessa recusa total ao muro. É difícil para mim pois ele faz parte da minha vida. Eu cresci e ele estava ali, então como eles podem simplesmente o rejeitarem? Meu entendimento de arquitetura me conduz a várias explicações, mas o meu coração sempre me leva ao lugar da afetividade, do pertencimento.

Pertencimento. O que me sobra, para eles falta, e agora tudo parece mais claro. Eu pertenço, mas eles não.

Mais ou menos árvores, mais ou menos pessoas, mais ou menos prédios. Tudo que eu já havia construído dentro de mim ao longo de tantos anos como moradora, agora posso reafirmar. Do lado de lá, um espaço concebido com tão mais apreço, cuidado, e novamente, as questões econômicas são determinantes para que esse espaço seja assim. A presença de muitos carros, a ausência de pessoas, os prédios tão altos e um fato determinante: a renúncia ainda maior do muro.

Nesse trecho, eu que caminho por aqui, sinto um outro muro invisível construído entre o espaço “bem construído” e eu. É como se houvesse algo que entra em cada indivíduo que quer estar perto do muro que afasta automaticamente as pessoas.

Somos o mesmo corpo, mas cada lado serve aos seus próprios desejos, e considerando que o que nos desune é o muro, se o retirarmos continuaremos separados?

Caminho por aqui, me coloco e sinto-me como ele, repelida e desprotegida. Parece controverso, o protetor desprotegido. Observo como as pessoas me olham ao estar aqui, talvez pareça estranho, andar por onde ninguém quer andar, tocar no que ninguém quer tocar, falar sobre o que ninguém quer falar.

COMO o vazio os incomoda? Tão somente a questão socioeconômica influencia no desprezo ao muro? Ou será o vazio sensorial? O fracasso do espaço urbano está aqui atestado em como as pessoas usam o espaço.

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Avesso. Contrário. Oposto. O avesso é todo sentimento que o muro transmite de contrariedade ao seu lado oposto. Eu, que cresci no lado mais pobre, fui apresentada ao outro lado como um avesso a minha própria essência de moradora de Nova Iguaçu. Como se a diferença financeira entre os moradores de cada lado, definisse nossa relação por inteiro. Uma linha real entre os “mundos de cá e de lá”.

Avesso é rejeitar o outro por uma hostilidade afirmada através do muro que nos separa. .

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GLOSSÁRIO 101

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“em mim eu vejo o outro e outro e outro enfim dezenas trens passando vagões cheios de gente centenas o outro que há em mim é você você e você assim como eu estou em você eu estou nele em nós e só quando estamos em nós estamos em paz mesmo que estejamos a sós” Contranarciso, Paulo Leminski.

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Anexo

ações não realizadas

Jardins - Espera pra ver se cresce Esta ação consiste em: colocar diversos penduradores, para que as pessoas pudessem guardar seus objetos por algum tempo. Como se estivessem “cultivando” os objetos. Uma espécie de mímese do jardim de mochilas, essência percebida e documentada ao longo do caderno.

Avessos - Olhe para mim Esta ação consiste em: montar uma estrutura com a altura do muro e acima dele colocar um espelho com inclinação necessária para ver o lado oposto. Com ela, pretendo forçar a visão do outro lado com foco nas pessoas, para que se perceba a diferente relação que ambos tem com o muro.

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amigos do trem Começo esse texto falando sobre o título: amigos do trem.

Esse título foi dado pelos meus amigos durante esse bate-papo e eu resolvi deixar assim como forma de agradecimento ao esforço deles em conversar comigo em pleno sábado de manhã. A ideia de fazer um encontro com amigos que também moram próximo as margens surgiu durante as orientações, para promover esse cruzamento de ideias, e para mostrar outras falas sobre esse lugar. A única explicação teórica que dou a eles durante a conversa é sobre a deriva, para que eles imaginassem um tipo de caminhada diferente das que fazemos normalmente.

Organizei esse encontro com quatro amigos: Brenda, Mayara, Marlon e Jonatan. Marquei na casa da minha avó, que fica próxima a linha do trem, onde eu morei até os 17 anos. Todos eles moram na mesma rua, exceto Jonatan, que mora em Mesquita, mas bem perto das margens também. O convidei pois entendi que seria interessante uma fala sobre outra cidade que também é cortada pela linha férrea. Novamente não tenho como agradecer a sua disponibilidade em acordar cedo para contribuir com a sua vivência para a discussão do trabalho.

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O tom da fala é bem informal e desejo que seja assim: amigos conversando sobre situações cotidianas das margens da linha do trem.

Isso fez parte do planejamento, para que não se tornasse apenas uma exposição do meu trabalho. Levei as minhas fotos impressas e coloquei sobre a mesa e então começamos a conversar.

Pergunto se eles têm o hábito de andar pelas margens, e então me lembro sobre quando eu e Brenda íamos para a escola pelo caminho mais longo (o que inclusive algumas vezes nos levou a lugares perigosos) ao invés de seguir a linha reta das margens, e concordamos que para nós, naquela época, ninguém gostava de andar por ali.

Vendo as fotos a Brenda questiona o porquê de no ‘buraco’ (ponto em que eu chamo de travessia) as pessoas transitarem sem medo, e Jonatan chama a atenção que naquele caso é uma questão de acessibilidade. Segundo ele, as pessoas só andam ali porque não tem passarela.

Jonatan chama a atenção que em Mesquita não existem buracos no muro feitos pela população, e que quando isso aconteceu, alguém pintou em volta da abertura várias baratas ao redor do buraco.

Ele me mostra a altura invariável do muro ao longo das margens, sempre alto, e que ele não se lembra de ter visto nenhuma relação amigável com o muro.

fonte: Facebook

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O problema do perigo da travessia logo vem a tona, e uma discussão se instaura. Eles se dividem nas opiniões sobre se o muro é necessário ou não. Para a Mayara, o muro só atrapalha a cidade, só deixa tudo ainda mais inseguro e promove essa insegurança. Eles concordam que o muro foi criado para que as pessoas paguem a passagem, mas eu provoco perguntando sobre o BRT e VLT, que são sistemas parecidos e não funcionam com muros.

Marlon usa o caso recente do homem que foi pego pelo segurança da SuperVia ao pular o muro e voltou para assassiná-lo, para se vingar e incontáveis casos de pessoas que morreram atropeladas no buraco são contados.

Por fim eu concordo que o risco de morte durante a travessia é real, e eles se questionam sobre como o muro talvez não seja tão necessário como parece, mas seguem acreditando que o muro precisa existir para a nossa segurança.

Marlon e Mayara tem muitos amigos que moram do outro lado, e eles falam como lá veem sempre pessoas correndo nas margens, que eles se sentem mais a vontade do outro lado e que talvez a quantidade de condomínios residenciais que são próximos as margens tenha influência sobre isso, já que do lado de cá, os estabelecimentos são mais comerciais e há muitos galpões.

[durante a conversa rimos bastante sobre essa convenção de lado de lá e lado de cá, e como nos entendemos tão bem falando desse jeito informal] Foleando as fotos, eles ficam muitos surpresos com o jardim. Eu vejo nas suas expressões que eles nunca tinham reparado, e eu mostro as fotos de quando comecei as derivas e a foto mais recente, tirada há pouco mais de um mês, para vermos como ele cresceu.

Aproveito esse momento para contar das ações que fiz e como me senti durante elas, e durante as derivas.

Termino essa conversa agradecendo muito a eles, e percebo que compartilhamos o mesmo medo sobre andar ao lado das margens, ouvindo as memórias deles, os medos, me deu um ânimo a mais nesse fim de percurso que é a graduação.

O desafio de reescrever essa paisagem contando um pouco sobre a minha história, a história dos meus amigos, dessa cidade, me impulsiona ainda mais.

Mayara também conta que a necessidade já fez esse muro se desfazer várias vezes por causa das enchentes recorrentes no bairro, ela explica que fizeram vários furos no muro para ajudar no escoamento da água. Ela me pergunta como eu nunca vi, e eu explico que eles vão consertando os buracos.

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Agradecimentos

Quando recebi a notícia que havia passado para estudar Arquitetura e Urbanismo na PUC – Rio eu ainda não tinha noção do grande desafio que estava por vir. Hoje, reconheço meu esforço e das pessoas que estiveram ao meu lado nessa caminhada. Eu, moradora da Baixada Fluminense, de Nova Iguaçu, tive o privilégio de estudar em uma das melhores universidades particulares do país.

Agradeço a minha orientadora, Flaviana, assim como meu co-orientador, Daniel, que me incentivaram e compartilharam seu conhecimento comigo ao longo desse ano.

Agradeço a Deus, que por sua infinita misericórdia me sustentou durante esses cinco anos e meio, dando forças nos muitos momentos que pensei em desistir. Agradeço aos meus pais, Rosemere e Nazário, e ao meu irmão, Gustavo, que com tanto carinho cuidam de mim e sempre me disseram que eu conseguiria, que eu seria capaz, e por terem me mostrado que estudar é um prazer e não dever.

Aos meus familiares, que apoiaram emocionalmente e financeiramente, e em especial aos meus tios, Josana e Valdir, assim como meu primo Luan, que abriram as portas da sua casa, me levaram aos lugares necessários, me sustentaram durante um longo período como filha. Agradeço também a minha querida avó Dercy que sempre orou por mim, sei que suas orações me mantiveram de pé; e ao meu avô Antônio, que não está mais entre nós, mas plantou a semente do saber na minha mãe que a plantou também em mim.

Aprendi muito mais do que técnica nesses anos, aprendi sobre cuidado, afeto, amor. Agradeço aos meus amigos, que entenderam minhas ausências, me ouviram, sempre me ajudaram a ver o lado bom e aliviaram os momentos de tensão. Agradeço ao meu namorado, Cleber, que é também um grande amigo e esteve presente em oração, apoio, e me acompanhou durante as aventuras desse trabalho de conclusão de curso.

Finalizo este ciclo com grande felicidade, sabendo que o sonho de ser Arquiteta e Urbanista está se construindo sobre uma linda base.

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Agradeço a todos os professores dessa universidade que também contribuiram para minha formação.

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