65 minute read
DA TROPICÁLIA PARA AS ANTROPOFOGIAS: Jomard Muniz de Britto e a “Ideologia da Cultura Brasileira” Francisco Adriano Leal Macêdo
from 11-Gnarus11-Full
Artigo
DA TROPICÁLIA PARA AS ANTROPOFOGIAS: Jomard Muniz de Britto e a “Ideologia da Cultura Brasileira”
Advertisement
Por Francisco Adriano Leal Macêdo
RESUMO: Buscamos aqui fazer uma cartografia de fragmentos existenciais e estético-perfomáticos do ativista cultural pernambucano Jomard Muniz de Brito. Tomando a produção literária de Jomard como fontes para esse texto, perspectivamos perceber as possíveis relações, invenções discursivas e devires que envolvem esse multifacetado sujeito. Algumas inquietações que movem esse trabalho: Como e em que medida teria se constituído um personagem que inventava bifurcações, pensando alternativas diversas aos certos regimes de verdade no âmbito cultural? Quais aspectos poderiam ser pensados enquanto um rizomomorfo – fruto de multiplicidades e máquinas desejantes? Para pensar essas questões, utilizamos autores de diferentes campos do saber, tais como Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jorge Larrosa, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito, Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Homi K. Bhabha.
Palavras Chaves: História, Jomard Muniz de Britto. Cultura Brasileira.
[...] o cinismo é a ironia com poder, ou a ironia no poder, e como a ironia é província do intelectual, um intelectual no poder tem o mesmo privilégio do tirano mais bem articulado de Shakespeare, que podia ser Ricardo III e ao mesmo tempo se observar sendo Ricardo III e dizendo que o que é não é e o que não existe, existe. E se maravilhando com ele mesmo.
(Luís Fernando Veríssimo, Banquete com
os deuses, p. 125-126). Introdução: um dissidente na invenção do Brasil
O
Brasil enquanto nação foi – e ainda o é – inventado discursivamente.1 Um país que não foi descoberto, mas estava para ser inventado; Não estava
1 Recentemente algumas obras em torno dessa invenção discursiva de espaços foram produzidas no Brasil. Uma das mais famosas é a Invenção do Nordeste que trata sobre invenção discursiva-imagética de um nordeste a partir da literatura, música, relações políticas entre outras dimensões. A invenção de uma Brasil “pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os brasileiros, que suprimisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. [...]” Ver: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez. 2011. p. 61.
para ser explorado, mas para ser criado.2 A busca intensa de uma definição de uma identidade para o Brasil não é recente e remonta meados do século XIX. Evidência disso seria a fundação do IHGB,3 em 1838, que tinha por missão principal reunir documentos que possibilitasse elaborar uma metanarrativa sobre o Brasil, de dizer o que é o Brasil. No século XX isso desencadeia numa variedade de “fórmulas” de brasilidade que certos intelectuais gestaram – hasteando a bandeira de
2 LARROSA, 2015. p, 9. 3 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi uma instituição imperial fundada com o escopo principal de reunir fontes históricas e dar um sentido histórico ao Brasil. Ver: WEHLING, A. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHB, Rio de janeiro, n.338, p.7-16, 1983. militância por uma causa pretensamente nobre – uma real identidade brasileira. A Semana de Arte Moderna de 1922 propõe a antropofagia, a deglutição, o híbrido, o que nos anos sessenta seria retomado – de uma forma cosmopolita e aberta ao estranho – por uma série de sujeitos que atribuíam a si mesmos a terminologia de “vanguardistas”: a dispersão que foi enquadrada enquanto movimento – a tropicália. Assim, sucessivos novos significados foram sendo lançados sobre o que um dia costumou ser pindorama.
Dessa forma, os visionários de um Brasil
profundo munidos da narrativa – famosa genitora de ícones –, dão corpo ao regime de signos que visam constituir as pretensas identidades brasileiras.4
A busca por uma identidade nacional tornava-se muito mais do que uma questão estética ou uma iniciativa fragmentária de certas instituições intelectuais. A brasilidade se transformava numa forma de unificar os valores e as ideias de um país continental, onde os regionalismos conformavam fragmentos de identidade, expressos, sistematicamente, através de produções artísticas e científicas. 5
Em meio às efervescências artístico-culturais da década de sessenta, o ativista cultural pernambucano Jomard Muniz de Britto faz-se notar a partir de suas produções intelectuais. Em 1966, o já respeitado cineasta brasileiro Glauber Rocha, descrevia suas impressões sobre tal sujeito, qualificando-o enquanto um “homem despido de princípios sagrados”, afirmando que Jomard não apresentava a necessidade de “afirmar cultura ou fazer pregações de falso apóstolo” já que sua intenção seria a de “dar ao leitor conhecimento de causa, isto é, de poesia e samba”.6 Seus atos performáticos, vivências e produção intelectual eram frequentemente críticas aos discursos que circulavam, a exemplo do seu combativo super-8 palhaço degolado.7 Era evidente que era uma voz dissonante em relação às maneiras de dizer o Brasil que estavam sendo construídas pela forja incansável dos que se propuseram pensar nossos
4 BRITO, 2016. 301 p. 5 Idem. p, 44. 6 BRITTO, 2009. p, 8-9.
7 Em O Palhaço Degolado, filme em super-8 de 1977, Jomard veste-se de palhaço para travar uma guerrilha semântica na qual tem como alvo algumas figuras do cenário cultural nordestino, aos quais reservou a nomeação de aprisionadores da cultura brasileira. Ver: O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977. 9min22s, son. color. cinco séculos de história. Esses aspectos movem essa análise, que pretende cartografar frações da subjetividade de JMB a partir dos escritos contidos em seus livros Atentados Poéticos8 e Do Modernismo à Bossa Nova.
Ataque ao olimpo: atentados heréticos à cultura
Ao tomar esse sujeito cujos devires autopoiéticos nos propomos radiografar, logo assumimos riscos de conceituar estilhaços de um corpo deslizirante, um trabalho que deseja e pode mover potências ainda inertes já que conceitos “se encarnam e se efetuam nos corpos”. 9
Uma vez que poderíamos entender o ato de experimentar com a linguagem, envolto no princípio da singularidade plena, não pode recair na armadilha de submeter-se a uma estrutura lógica, com um começo, uma origem e um fim, é preciso, igualmente, perceber que em todo ato de invenção se promove uma perda de órgãos, ou seja, algo se rompe, algo se degenera e, igualmente, algo se reconstitui sob um formato outro. Nesse sentido, os escritos de Jomard, dos anos 1980 até o início dos anos 2000, promoveriam uma arrebentação em sua própria natureza enquanto escritor-artistaensaísta-professor-pop-filósofo.10
O fragmento sobre invenção permite pensar Jomard enquanto um rizoma11 no interior dos seus
8 Publicado na década de 2000, é um livro repleto de linguagens diversas onde, nas palavras do seu autor, busca “manter aceso o senso de humor e o desejo desejante de outras linguagens”. Ver: BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados poéticos. Recife, Bagaço, 2002. 9 DELEUZE; GUATTARI, 2010. p, 29. 10 BRITO, 2016. 301 p. 11 Rizoma, para Deleuze e Guattari, é a produção de multiplicidades e novos começos a partir de encontros imprevisíveis,
encontros e bricolagens com as multiplicidades e potências de desterritorialização, “de constituir uma nova engrenagem ao lado da engrenagem precedente, indefinidamente, mesmo se essas engrenagens parecem se opor, ou funcionar de maneira discordante”,12 se fazendo máquina de desejo, se (des)montando no interior da usina de montagem de brasis.
Analisando o conteúdo de suas obras Do Modernismo à Bossa Nova e Atentados Poéticos, podemos entrever um Jomard fugindo de um modus operandi perene, seguindo lógicas descontínuas. Do Palhaço Degolado aos Atentados Poéticos, nota-se rupturas contundentes, em especial o caráter explicitamente combativo daquele para o estilo ácido, porém sutil destes. Potencialmente, seu devir permite pensá-lo, especialmente em determinados textos dos atentados poéticos, enquanto um rizomorfo,13
nunca fechado em si mesmo, escapando do decalque. Constituindo-se enquanto um esquizo, ora lutando contra os moinhos da “cultura brasileira” – imaginados, porém com efeitos de real, tais como os de Dom quixote – para depois ressurgir em um lugar diferente, longe da categoria molar que um dia buscou atingir com sua antiga espada-malho interceptada no momento da decapitação do seu palhaço. Como diria já na segunda metade da década de 2000 em sua autoapresentação de Do Modernismo à Bossa Nova, ressoando o final distópico de O Palhaço Degolado, quase 30 anos antes: “agitador cultural sem mídia a disposição não existe” se dizendo
uma negação da teleologia do pensamento moderno. O rizoma é um sistema de conexões labirínticas cujos resultados não são territórios, se constituindo nômade. Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.1. São Paulo: Editora 34, 2011 12 DELEUZE; GUATTARI, 2014. p, 148. 13 Produzir artes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectem com elas penetrando no tronco, podendo fazer servi-las a novos e estranhos usos. Ver DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.2. São Paulo: Editora 34, 2011. p, 34. Tributário de Nietzsche e o seu malho quanto de Deleuze e sua pop filosofia, Jomard formulou uma série de “práxis” que, frequentemente, orientaram suas produções intelectuais. Nietzsche, em Vontade de potência declara uma guerra aos que pretendem “dizer sua opinião a respeito dos grandes assuntos, sua pretensão em querer assumir o caráter de juízes nas questões que ultrapassam todos os limites”,15 o que move JMB a estabelecer uma belicosa irreverência a uma série de discursos que lançavam grandes valores culturais e ao panteão que se afirmava como seu baluarte. Através da apropriação da pop filosofia de Deleuze, ele se mune de outras possibilidades, conseguindo então afiar o malho Nietzscheano para levá-lo à categoria molecular/micropolítica – dando forma aos rizomáticos atentados poéticos.
Os atentados poéticos de Jomard são textos que não ambicionam uma estética tradicional, e assumem de forma contundente a escrita de um sujeito que se deseja rizoma, e no limite, busca por um outro que é o tempo todo estranho a si mesmo, passando a promover atentados explosivos às pretensas linhas evolutivas e culturas sacralizadas.
(...) tudo pode ser desmontável, deslizante De significados e significações. Signos em rotação e ou roteiro de transgressões? Rizomas, recuperações. 16
Esse fragmento de poesia nos mostra, por mais parcialmente que seja, uma “sede de sangue” em relação aos monstros canônicos artísticos-literários. Manifestam uma vontade – não cabe aqui julgá-la real ou fictícia –, de uma
14 BRITTO, 2009. p, 16. 15 NIETZSCHE, s.d. 16 BRITTO, 2002. p, 67. Grifo nosso.
produção autônoma de novos começos a partir do rizoma. Em outro momento, ouvimos a voz de Jomard ecoar na citação de Karel Kosik, numa epígrafe: “cada indivíduo-pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem de se formar uma cultura e viver a sua própria vida”.17 Isso é quase um manifesto segundo o qual o pensamento autônomo, levando em conta o desejo, só é possível a partir de um atentado ao pensamento-árvore, representado pelo Panteão da cultura expressos em figuras de destaque no Pernambuco vivenciado por JMB, Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. Isso reaparece no poema cujo título é “Platão”:
A diversidade que há entre homens e ações, além da permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte e em assunto algum um ABSOLUTO que valha para todos os casos e para todos os tempos. 18
As articulações entre filosofia e poesia representam uma sonora negação às leis gerais que pretendiam orientar o mundo. Recusa, implicitamente, a possibilidade de uma brasilidade unívoca para “todos os casos”. As multiplicidades que existem entre os homens e suas ações impossibilitaria qualquer valor “ABSOLUTO”, inclusive na cultura. A noção de rizoma de Deleuze e Guattari da qual JMB se apropria é eminentemente baseada em conexões imprevisíveis e de bifurcações labirínticas, resultando em novos começos, novos agenciamentos de processos de expressões. Essa produção literária que encontramos nos seus
17 KOSIK. Apud BRITTO, 2002. p, 187. 18 BRITTO, 2002. p, 78. atentados poéticos manifestam uma vontade de potência, de criação e doação.19 Se encontra num estilo de texto repleto de furor iconoclasta, enunciado sua aversão aos cânones, contra a vontade de poder.
A sociologia de Gilberto Freyre e a literatura de Ariano Suassuna assumiram lugares sagrados, e um Jomard parece ter sobrevivido e estar continuamente retornando. Estes seriam justamente os que desejava sangrar em um altar profano, antes de se perder a alegria, anterior à castração. Negá-los num manifesto de bricolagens no qual seus mestres, cada um meio profeta e meio deus, não teriam lugar. O manifesto de Oswald de Andrade voltava, devidamente adaptado: “A peste dos chamados povos cultos e cristianizados. É contra ela que estamos agindo”. Substituamos “cristianizados” por algo como “Freyrianizados”, como dá a perceber no seu ensaio escrito em 2001 Crueldade e confraternizações: breve ensaio de psicanálise selvagem.
Deixemos Jomard falar um pouco sobre seu desejo de implosão da cultura no altar, sua ânsia por vê-la livre dos grilhões daquela casa de detenção, o que reflete sua aproximação com o que se convencionou chamar de tropicalismo. Essas palavras que escreve nos deixa entrever sua vontade de potência extração do múltiplo a partir do uno, já que mesmo não havendo “nada de novo sob o sol”, a relação ontológica e autopoiética se tornaria possível. Esta seria a lógica make yourself Jomardiana: [...] talvez as raízes da modernidade se encontrem mais longe do que pensamos, entre fantasmas carcomidos e abandonados de outros séculos. Hoje tornou escassa a diferença entre criar e citar, construir e bricolar.20
19 DELEUZE, 1994. p, 24. 20 BRITTO, 2002. p, 51.
No ato de “bricolar”, Jomard enxergou potências que considerava fundamentais no contexto cultural. A lógica do rizoma, da extração do múltiplo a partir do uno, multiplicidades extraídas de polos pretensamente unos. Jomard enquanto leitor de Gilles Deleuze – o que podemos perceber através de suas várias alusões à sua pop filosofia –, foi por este influenciado no sentido de adotar uma filosofia da cultura que reflete de forma intensa a máxima deleuzeana que se encontra no prólogo da tese principal do filósofo francês diferença e repetição: “Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever”.21 Isso o aproxima dos chamados tropicalistas, onde busca se inserir. É no tropicalismo que Jomard vê a bricolagem ser concretizada e aceita. Em depoimento ao Dzine, entrevista que se encontra na terceira parte dos seus atentados poéticos, JMB diz: “creio que os Manifestos tropicalistas possam ter irritado um pouco a nobreza do nosso eterno professor de estética [Ariano Suassuna], do qual, até então, desconhecíamos sua ética sertaneja mais radical”.22 A ironia presente nessas palavras mostram o seu apoio a atitudes que buscasse fazer a deglutição de conceitos culturais diferentes entre si e produzir um terceiro que não pertencesse a ninguém – a irritação ao professor de estética vinha como um bônus em forma de ídolo que perdeu a compostura ao se ver ameaçado.
Caso consultasse o oráculo de Delfos, este provavelmente não saberia responder. Afinal, que crédito deu Jomard aos seus mestres e oráculos de um Brasil vindouro encarnados nas figuras de Freyre e Suassuna? O destino de Jomard
21 DELEUZE, 1988. 22 BRITTO, 2002. p, 333. certamente escaparia a Apolo, pois Jomard não era Édipo. Impossível dizer se ele queria ser rei ou não. Improvável seria açambarcá-lo na categoria edipiana inventada por Freud, que se ancorava numa sociedade falocrática. As convulsões contemporâneas em que Jomard esteve em contato, manteve sua subjetividade na sua dimensão processual criativa, de devir, ressoando os seus múltiplos desejos,23 tomando itinerários imprevisíveis. A subjetividade Jomardiana esteve em choque com outras – como através das leituras –, atingindo uma “enorme complexificação, produção de híbridos, harmonias, polifonias, ritmos existências inéditos e inusitados”, e como é possível imaginar do pop filósofo que buscava encarnar, sempre buscando a desterritorialização e as multiplicidades.
Ao indagar quais máquinas desejantes moviam os afetos e as produções de JMB, um murmúrio fragmentar – vindo de um sujeito que se dá aos pedaços –, vem em forma de poema: Sei de sobra. Que nunca terei uma obra. [...] amor a amor, ou livro a livro, amemos nossa caveira breve. [...] coroais-me de rosas e de folhas breves. que sempre serei outro. 24
Nota-se o desejo premente da existência de multiplicidades, e vetores de subjetivação que vão se metamorfoseando no tempo e no espaço, continuamente, como se ele inventasse máscaras para si mesmo, ressurgindo um outro dos seu eus anteriores e, às vezes reconstituindo seus fragmentos. Para ilustrar isso, Homi K. Bhabha remete às identidades no mundo pós-moderno que dizem respeito a uma gama de novidades que liquidam com as noções de nacionalidade por
23 GUATTARI, 2012. 24 BRITTO, 2002. p, 29-30.
meio da diáspora e nos lançam num mundo de possibilidades transnacionais de identificações, buscando o encontro, novas fronteiras de coalisão com o Outro, novos locais para a cultura.
Estar no além é habitar um espaço intermediário, como qualquer dicionário lhe dirá. Mas viver ‘no além’ é ainda ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de lá [...]. 25
As identidades do sujeito na emergência da condição pós-moderna se encontra desfragmentada e ontologicamente dividida num processo de desreferencialização e descentramento. “Linhas, fusos e meridianos o que nos daria a condição de corpos cartográficos”26 entende-se assim, que a identidade do sujeito não podendo ser fichada, catalogada, pois é múltipla e está em processo constante de vim a ser outro, o método cartográfico, portanto, permite perceber, ainda que de maneira diáfana, essas múltiplas linhas, fusos e meridianos.
Desse modo, escrever sobre JMB talvez seja esse desafio de tentar capturar dimensões escorregadias de um sujeito que não deseja ser taxonomizado e não economiza esforços para isso, “tal como a esfinge da mitologia grega, jamais dáse a ler por completo, e, em geral, parece também nunca encontrar-se completo. Mas, assim como ela, seduz os que por ele passa e os desafia a decifrá-lo, sob o risco de ser por ele devorado”.27 A citação anterior exemplifica o cuidado, talvez
25 BHABHA, 2014. p, 28. 26 DELEUZE; GUATTARI, 1996. 27 BRITO, 2016. p, 21. uma pretensa impessoalidade – talvez em vão –, das pesquisas envolvendo JMB. Quase como se lidasse com um estranho pelo qual qualquer contato mais próximo poderia fazê-lo cair nas suas teias de sedução e passasse a enxergar a pretensa realidade com as lentes Jomardianas, como ele se enxergava e queria que o enxergassem. O fruto desses esforços são histórias que soam como se o seus cartógrafos pouco ou nada soubessem do personagem, semelhante ao narrador não onisciente dos romances Kafkianos. As narrativas e dizibilidades sobre JMB parecem fadadas a uma ambiguidade nas suas leituras, pontas soltas que sempre possibilitam novas pesquisas, já que não tem sido possível nem desejável canonizar uma verdade una sobre algum aspecto desse poliedro de faces infinitas.
O eterno retorno do outrem: à procura de raízes?
É possível que ele tenha, em um momento específico, pretendido dar um rosto ao Brasil, subir ao Olimpo com a chama da cultura e brasilidade, formar seu próprio panteão, ao seu modo? Ou teria ele se pretendido um Prometeu28 e roubar o fogo dos deuses – leia-se os pensamento em torno de uma brasilidade idêntica a si mesma e os regionalismos –, e dar aos “homens comuns”, para estes produzir seus híbridos e polifonias? Um inconclusivo “talvez” pode ser respondido para ambas as indagações, embora possa se pensar com alguma justiça que ele talvez tenha buscado uma apoteose, seja para deus ou titã. Vestígios de sua vontade de ser baluarte, no mínimo, duma reinvenção de culturas brasileiras podem ser encontradas no posfácio em seu livro do modernismo à bossa nova, escrito já na década
28 Referência à mitologia grega. Prometeu foi um titã que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens e recebeu como castigo a condenação de ser acorrentado a uma rocha onde abutres comeriam seu fígado eternamente.
de 2000. Nesse mesmo livro, João Carlos Teixeira gomes, em 2004, provavelmente refletindo os discursos de Jomard sobre si mesmo, diz: “Gil e Caetano até hoje não se lembraram de registrar as dívidas do tropicalismo para com o trabalho difusor e pertinaz de Jomard, aliás, já documentado”. O nome do texto é “Jomard, o carbonário”, atribuindo a ele o papel de “revolucionário” que lutava contra os absolutismos da cultura e seus ícones consagrados.
O posfácio que Jomard escreve, além de admitir a noção de aperfeiçoamento do eterno retorno de Nietzsche que é apropriado por Deleuze em Diferença e repetição, 29 faz uma análise em retrospectiva Da Tropicália para antropofagia. A noção de bricolagem se faz presente no texto, produzindo sentido como sendo ele mesmo um dos protagonistas de uma antropofagia aperfeiçoada que retornou, onde não se buscava mais apenas recuperar uma “alegria [que] é a prova dos nove”, mas o canibalismo agora iria mais longe, nos Beatles à banda de pífanos de caruaru. “Não querem que imaginem que pretendi fazer desse livro uma expressão de cultura nacional brasileira. Deus me livre. É agora, depois de feito, que me parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa”, pronunciou o notável antropófago Mário de Andrade no prefácio escrito em 1928 para seu Macunaíma.30 De maneira semelhante a Mário, JMB busca conformar a pretensa obra tropicalista e suas neoantropofagias como uma expressão mais alinhada ao desejo do povo.
“Destroçando heroísmos, cordialidades, metarraças, unanimidades. Reatando polêmicas. Leituras em abismo”,31 diz Jomard de maneira apologética ao “movimento tropicalista” – negando, ou pelo menos não evidenciando a sua
29 DELEUZE, 1988. 30 ANDRADE, 2007. p, 226. 31 BRITTO, 2009. p, 148. dispersão constitutiva, estabelecendo origens –, ao mesmo tempo que, em seus escritos, busca filiar-se a ele. Sugere-se então uma evidência de sua faceta arborescente: Para Deleuze Guattari, “árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem tecido a conjunção “e... e... e...” ao mesmo tempo que “quando um rizoma é fechado, torna se árvore, não se dobra mais”.32
“Ser” tropicalista o tira do devir minoritário, aproximando-se de um novo panteão da cultura e associa-se à verdade tropical. O eterno retorno do outrem parece se configurar como uma busca de cristalizar-se, de alguma forma, como marginalherói.
Essas considerações, porém, não tem forças de sentenças. O itinerários desterritorializantes de JMB podem ser potencialmente imprevisíveis. De qualquer forma, “no coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar”, diz Deleuze. Como personagem vivo, a obra aberta continua em Recife no continuum passado-presente-futuro, sendo continuamente interpelado enquanto sujeito.
“O cinismo é a ironia com poder”: Considerações finais
Compreendemos o sujeito Jomard enquanto segmentarizado, nos damos liberdade para o relacionar, através de Deleuze, que cada segmento se relaciona com um centro, ou um foco de poder. Para Jomard Muniz de Brito, esses centros de eram metonimizados na Casa da Cultura de recife, Gilberto Freyre, e ainda na pessoa de seu professor Ariano Suassuna. É importante essa caracterização dialógica entre esses sujeitos já que: “pode-se objetar que os próprios segmentos
supõem um centro de poder como aquilo que os distingue e os reúne, os opõe e os faz ressoar”, 33
ou seja, em toda produção Jomardiana existia uma relação dialógica com esses centros de poder.
Como definiu Carlos Guilherme Mota,34 a ideologia da cultura brasileira se faz presente em diversos tipos de produção intelectual. Quando os esforços bélicos falharam em consolidar projetos, meios menos violentos e mais sutis poderiam ser considerados para “transformar o país”, ou afinar a melodia político-cultural sob determinado diapasão. Anotamos a existência do paradoxo do Brasil ser tanto uma ideia quanto um lugar, e que grupos de intelectuais de épocas distintas entraram, por seu turno, numa corrida para redefinir e reinterpretar o significado da “ideia” e remanejar a materialidade do “lugar”. Temos então a busca de um “verdadeiro Brasil”, flertando em cada momento com os diversos brasis, uma “estratégia argumentativa e discursiva” que significava uma projeção para o futuro. Em outras palavras, as cargas de sedução envolvidas para fazer parecer transcendente e definitivo um determinado Brasil perpassavam por estratégias que tinham variados níveis: primeiro, estava implícito a existência de “verdadeiros brasileiros”; depois, tal narrativa tinha de se fazer o mais verossimilhante possível.
Dentro de uma lógica histórica contingente, os assujeitados a “estar-nosmundos” do século XX se engajaram a explicar o Brasil, projetar um tempo. Essa projeção, que era mestiça de interpretação e crítica, era também ideológica na medida que partiam de lugares e interesses diferentes e desejavam ser vencedores em suas respectivas ideias. O país como enigma a ser desvendado era, por igual, visto como uma tábula-rasa a ser preenchida de significados, isto
33 DELEUZE, 1996. p. 115. 34 MOTA, 1980. é, por uma Cultura especialmente esculpida. Vários instrumentos poderiam ser apropriados para cimentar uma certa visão de mundo. Essas intepretações, se comparadas a “evangelhos” da cultura brasileira, pretendiam se tornar canônicos. Nessas tentativas de recortar o palco cultural segundo vontades individuais, fica em evidência os formigamentos dos começos de uma inteligência que criava e ao mesmo tempo “descriava”.35 Em outras palavras, esses intelectuais penetraram nas brechas da política, e conforme nos lança a epígrafe que abre esse texto, se atribuíram o privilégio dizer “que o que é não é e o que não existe, existe”, utilizando a ironia como poder. Assim, geravam-se ruídos e conflitos entre contemporâneos em um campo de batalha insólito.
Francisco Adriano Leal Macêdo é graduado em História e mestrando em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí - UFPI.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez. 2011.
ANDRADE, Mário.
Macunaíma, o herói sem
nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007. p, 226.
BHABHA, Homi K.
O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
35 Concluímos o presente artigo com essa ideia como sugestão de reflexão para o leitor, na intenção de conexão autônoma desse artigo com outras produções. Nesse texto do pensador italiano Giorgio Agamben, os argumentos em torno da ideia de criação apresentam contrapartidas, ou seja, em cada ato de criação por meio do pensamento uma outra perspectiva sofre um atrito. Ver: AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, ou da contingência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p.3543.
BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários
de um Brasil profundo: invenções da cultura brasileira em Jomard Muniz de Britto e seus
contemporâneos. 2016. 301 p. Tese (Doutorado em História Social) - Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará. p, 237.
BRITTO, Jomard Muniz de. Atentados poéticos. Recife, Bagaço, 2002. p, 78.
_____________. Do modernismo à bossa nova. São Paulo: Ateliê editorial, 2009.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1994.
____________. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 1988.
____________; GUATTARI, Félix.
O que é a
filosofia?. São Paulo: Editora 34, 2010.
Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia v.1. São Paulo: Editora 34, 2011.
Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia v.3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
____________. Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte: Editora 34, 2014.
GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 2012.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
MOTA, Carlos Guilherme. A ideologia da cultura brasileira. (1930-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. 4 ed. São Paulo: Ática, 1980.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A vontade de potência. (Fragmentos póstumos). Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d.
O PALHAÇO DEGOLADO. Direção: Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro. Recife, 1977. 9min22s, son. color.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Banquete com os deuses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
WEHLING, A. As origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. RIHB, Rio de janeiro, n.338, p.7-16, 1983.
Artigo
DE NORTE A SUL: FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO E INTERVENÇÃO NA POLÍTICA NACIONAL
Por Max David Rangel Cassin
RESUMO: Pretende-se com esse artigo, analisar o discurso fundamentalista entre os pentecostais brasileiros, observando a origem desse discurso no fundamentalismo religioso norte-americano do início do século XX e seus reflexos nas agendas políticas no Brasil, que culminou na eleição de Jair Messias Bolsonaro a presidente da República com apoio maciço dos pentecostais. É um pesquisa bibliográfica, onde usamos literaturas, como “Os demônios descem do Norte”, de Delcio Monteiro de Lima que fala sobre a influência dos EUA na política no Brasil; artigos que focam sobre o fundamentalismo norte americano; notícias que mostram como isso é real em nossa sociedade nos dias atuais e vídeos, mostrando trechos de discursos dos televangelistas norte americanos que influenciaram as igrejas protestantes brasileiras.
O surgimento do fundamentalismo e sua influência no pentecostalismo norteamericano
A
pesar de terem surgido na mesma época, fundamentalismo e pentecostalismo não podem ser tratados como sinônimos, embora possuam pontos em comuns naquilo que eles entendem como inegociáveis e fundamentais à fé cristã. O termo “fundamentalismo”1 teve
1 Patrocinados por empresários que comungavam com suas ideias, esses teólogos produziram uma série de livretos, em doze volumes, intitulados The Fundamentals: A Testimony of Truth – daí a origem do termo fundamentalismo. Esses volumes compunham as seguintes doutrinas fundamentais: O nascimento virginal de Jesus, a sua ressurreição literal, física, a inerrância do texto sagrado, quanto aos seus manuscritos originais, promessa da ressurreição do corpo dos que crêem, origem em um embate teológico no Princeton Theological Seminary, no final do século XIX, onde teólogos presbiterianos de linha conservadora se posicionaram contra o método científico denominado Alta Crítica,2 método usado para contestar certas doutrinas bíblicas.
Sendo assim, teólogos conservadores
a segunda vinda iminente e física de Cristo. Os textos eram defesas de alguns pontos da fé cristã que os teólogos conservadores consideravam inegociáveis, combatendo a relativização da aplicação do método histórico-crítico de análise. “O fundamentalismo foi organizado para fazer oposição às tendências liberais nas escolas religiosas e nas igrejas evangélicas.” CHAMPLIN, 2008 p. 828. 2 “Alta Crítica” é o exame dos textos bíblicos que vá além dos próprios textos em si, como a questão do autor, a data, a forma da escrita, as ideias envolvidas, as doutrinas ensinadas e etc.
justificaram uma suposta urgência de reação em defesa da ortodoxia cristã, iniciando a defesa da bíblia como única fonte irrefutável de verdade histórica, científica e a única fonte de acesso a Deus.
Devido a algumas lacunas doutrinárias no movimento pentecostal norte-americano, dogmas fundamentalistas foram usados para preenchê-las. Esses dogmas, uma das marcas da denominação, faz com que ambos os grupos concordem com os pontos que eles entendem como fundamentais e inegociáveis da fé cristã. A base da doutrina pentecostal é o batismo com o Espírito Santo, através da experiência mística do falar em outras línguas.3
Os fundamentalistas, assim como os pentecostais,4 se enxergam como representantes de Deus na Terra, reiterando o discurso da maldade
3 Baseado na leitura bíblica do livro bíblico dos Atos dos Apóstolos, no capítulo 2, o texto aborda o momento em que os discípulos de Jesus começaram a “falar em outras línguas”. A doutrina pentecostal afirma que essas línguas são a evidência do batismo com o Espírito Santo, quando a pessoa recebe um revestimento de poder para poder suportar algumas aflições do mundo. Há um embate teológico sobre as línguas, seriam elas línguas humanas ou celestiais? Seria uma xenolália ou uma glossolalia? Glossolalia é o ato de falar em línguas celestiais e xenolália é um termo grego para “linguagem estranha”. Porém, a doutrina pentecostal acredita que essa experiência mística se trata de uma glossolalia. PEARLMAN, 2008. p. 68-72. 4 Pentecostais são todas aquelas denominações oriundas do movimento pentecostal norte americano. Aqui no Brasil ela é divida no que chamamos de três ondas: 1º onda: Pentecostais clássicos (Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus) que foram os pioneiros do movimento pentecostal no Brasil. 2º onda: Deuteropentecostal (Deus é Amor, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja O Brasil Para Cristo), essa igrejas foram formadas por ex-obreiros das pentecostais clássicas, depois de uma divisão da primeira onda. 3º onda: Neopentecostais (Igreja de Nova Vida, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus e etc.), essa onda se iniciou no Brasil com a chegada da Igreja de Nova Vida, tendo como seu fundador o canadense Robert McAlister, trazendo junto consigo a Teologia da Prosperidade, teologia oriunda dos EUA. humana e certa decadência moral, vivendo assim uma lógica dualista e entrando em embate com aquilo que eles acreditam que ameaçam sua fé, como as questões voltadas à legalização do aborto, direitos dos homossexuais, darwinismo, comunismo, Estado laico, entre outros. Seus posicionamentos condizem com o espírito dos Pilgrims Fathers5 que chegaram ao Novo Mundo acreditando ser a nova “terra prometida” e por isso desejavam estabelecer um país dentro dos preceitos bíblicos. Era o sonho de fabricar o reino de Deus na Terra.
A maioria dos pentecostais, assim como os fundamentalistas, faz análises bíblicas baseadas em linha teológicas pré-milenaristas6 e dispensacionalistas,7 que influenciam a sua
5 “Foram os primeiros ingleses protestantes a emigrarem para a América do Norte e lá fundarem as primeiras colônias, que, a posteriori, deram origem aos Estados Unidos da América. Esses imigrantes partilhavam da fé puritana (resultante do calvinismo que se desenvolveu na Inglaterra) e, assim como os católicos ingleses, eram perseguidos, no século XVII, pela monarquia absolutista anglicana. Essas perseguições acabaram por levá-los a sair dos domínios britânicos.” Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/ historia-da-america/peregrinos-mayflower.htm> Acesso em 01/05/2020. 6 “O pré-milenarismo é a asserção de que haverá uma futura era áurea, mas que para tanto será mister o aparecimento pessoal de Cristo, o qual inaugurará o milênio”. CHAMPLIN, 2008 p. 370. “Segundo alguns intérpretes, envolve períodos de tempo durante os quais Deus estaria tratando com os homens de maneiras específicas.” Baseado no conceitos de dispensação de Scofield, que foi a que mais se propagou, temos sete dispensações na Bíblia, que seria dividas da seguinte maneira: 1) Inocência (no Éden), 2) Consciência (entre a Queda e o Dilúvio), 3) Governo Humano (entre Noé e Babel), 4) Promessa (de Abraão ao Egito), 5) A Lei (de Moisés a João Batista), 6) Igreja ou Graça (de Cristo até o arrebatamento dos crentes) e 7) O Milênio. CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filos2008 p. 186. 7 “Segundo alguns intérpretes, envolve períodos de tempo durante os quais Deus estaria tratando com os homens de maneiras específicas.” Baseado no conceitos de dispensação de Scofield, que foi a que mais se propagou, temos sete dispensações na Bíblia, que seria dividas da seguinte maneira: 1) Inocência (no Éden), 2) Consciência (entre a Queda e o Dilúvio), 3) Governo Humano (entre Noé
maneira de enxergar a política, a sociedade e a história. O debate que se iniciou no final do século XIX como teológico, inevitavelmente chegaria a questões de políticas públicas, visando questões sociais de uma forma em geral.
Acreditando que os EUA estava se afastando dos valores bíblicos e da ideia dos pais peregrinos, sentiam que o cristianismo estivesse vivendo uma forte ameaça. Com isso, fizeram investimentos em programas televisivos, a partir de 1950, e ampliaram o alcance dos programas radiofônicos, sendo combativos ao discurso contra o comunismo, a degradação moral da sociedade e contra métodos de interpretações bíblicas diferentes do que era usado por eles, acreditando estarem com a missão de levarem a sociedade de volta a Deus.
A partir de 1979, os canais televisivos dos EUA8 como CBS, NBC e ABC, fizeram uma reestruturação em suas programações para poder atender os anseios dos televangelistas. Com isso, alcançaram uma audiência de aproximadamente 60 milhões, durante as horas de transmissão desses programas diários.
Os mais populares desses televangeslistas, com suas mensagens fundamentalistas, foram Pat Robertson, Jimmy Swaggart e Billy Graham, sendo este último o de maior prestígio no país, chegando a influenciar a política dos EUA e um dos mais combativos no meio religioso a favor do anticomunista. Segundo Cecília Azevedo:
Estrela da militância evangélica anticomunista, em 1950 Billy Graham chegou
e Babel), 4) Promessa (de Abraão ao Egito), 5) A Lei (de Moisés a João Batista), 6) Igreja ou Graça (de Cristo até o arrebatamento dos crentes) e 7) O Milênio. CHAMPLIN, 2008 p. 186. 8 Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=AOaoohsuews. Acesso em 07/05/2020 a pregar para soldados americanos em acampamentos na Coréia, insistindo sempre que a Guerra Fria era, na verdade, uma confrontação entre uma cultura fundada na palavra de Deus e o comunismo, religião diretamente inspirada pelo demônio, que declarara guerra ao Altíssimo. Os cultos pirotécnicos de Graham, com forte apelo nacionalista, incluíam a venda de bônus de guerra, recolhidos ao som do hino nacional, e até mesmo a apresentação de um cavalo, de nome “McArthur”, que se ajoelhava diante da cruz. 9
A análise de Daniel Rocha (2011) mostra uma visão diferente sobre Graham
Embora a origem de Graham seja no ambiente do fundamentalismo clássico e suas pregações tratassem de temas e abordagens caras aos fundamentalistas, como a ênfase conversionista e a defesa dos family values, seu destaque midiático e sua popularidade romperam, de certa forma, com a postura contracultural do “gueto” fundamentalista. Segundo Marsden (2001, p. 227), “Graham was part of a larger effort of many fundamentalist Protestants who, having found themselvs now as cultural outsiders, were working to become insiders again”. Suas boas relações com as grandes denominações protestantes tradicionais (acusadas de liberais pelos fundamentalistas) e, até mesmo, com católicos o fizeram ser visto com suspeita por outras lideranças fundamentalistas mais tradicionais que o acusavam de ecumenismo, entre outros “desvios teológicos”. Nesse contexto, Graham e os que seguiam sua linha de atuação passaram a ser conhecidos como neo-evangelicals ou simplesmente evangelicals. 10
9 AZEVEDO, p. 117, 2001.
Devido ao seu destaque nos programas televisivos, Graham teve acesso à Casa Branca e proximidade com os presidentes estadunidenses, entre eles, Dwight Eisenhower, John F. Kennedy, Richard Nixon, Ronald Reagan e Bill Clinton. Com o primeiro, ministrou o culto de posse e logo depois batizou Eisenhower, na própria Casa Branca.
O vislumbre por um projeto de cristianização evangélica do Estado foi ficando em evidência e ganhando força através da aproximação dos religiosos aos presidentes norte-americanos; suas pregações se voltavam para os temas das crises sociais e políticas, que só poderiam ser resolvidas se os EUA se voltassem para Deus.
Entre as décadas de 1960 e 80, houve um alto investimento dos pentecostais estadunidenses com envio de missionários11 e evangelistas norteamericanos12 para o Brasil, com o intuito de evangelizar além da fronteiras norte-americanas. Isso fez com que os cristãos protestantes brasileiros, principalmente os pentecostais, no final da Guerra Fria, absorvessem o discurso anticomunista dos missionários norte-americanos. Discurso esse herdado dos fundamentalistas estadunidenses.
Os inimigos que vêm do Norte
Gunnar Vingren e Daniel Berg, fundadores da Assembleia de Deus (AD) no Brasil em 1911, eram missionários de origens suecas que, antes de virem para o país, tiveram uma breve passagem nos Estados Unidos da América, passando pela experiência mística do movimento pentecostal norte americano, cuja doutrina era difundida no
11 LIMA, 1987. Capítulo 3 (Versão Digital). 12 Missionários norte-americanos a serviço da CIA é assunto desde 1960. Disponível em: https://www.gospelprime.com. br/missionarios-eua-espioes-cia/. Acesso em 20/11/2019.
Vieram para o país na 3ª classe do navio “Clement”, em 19 de novembro de 1910, e encontraram o Brasil vivendo a recente experiência da República, e as normativas sobre o Estado Laico.13 Aqui se mantinham financeiramente não apenas com os trabalhos de Berg, mas também pelas provisões enviadas pelas igrejas suecas.
No princípio, os missionários sofreram perseguição religiosa por parte das igrejas históricas14 e católica,15 mas isso não desanimou os suecos, pois em seu país de origem já haviam passado por algo parecido, e aqui no Brasil, foram favorecidos pela constituição que protegia a liberdade religiosa.16 Por esse motivo, há indícios de elogios por parte dos missionários ao governo republicano. 17
13 Em 1810, com a coroa portuguesa já no Brasil, Dom João VI assinou o Tratado de Comércio e Navegação com o Reino Unido. Nesse acordo foi dada a garantia de liberdade de culto aos ingleses em terras portuguesas (incluindo o Brasil), com algumas ressalvas: era proibido a eles converter a população portuguesa, seus locais de cultos não poderiam ter aspectos de templo religioso e não poderiam manifestar sua fé publicamente. Na Constituição de 1824, foi conferido à Igreja Católica o título de religião oficial do Império. Entretanto, quando Dom Pedro II se tronou imperador do Brasil em 1840, estabeleceu uma política de liberdade religiosa, devido às suas inclinações anticlericais e liberais, adotando assim uma política semelhante a dos países vizinhos que já haviam se tornado repúblicas e visando também o incentivo de imigrantes protestantes. Em 1891, já na República, houve uma nova constituinte e na constituição definiram a separação entre a igreja e o Estado. E. GONAZÁLEZ, 2010. p. 286 14 Igrejas protestantes históricas são as denominações que têm uma ligação histórica direta com a Reforma Religiosa, de 1517, e que são adeptos a Teologia Reformada. As denominações históricas são: Luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, congregacionais e metodistas. BARROS, Angélica. Infográfico: a árvore evangélica. Revista de História da Biblioteca Nacional. ano 8, n. 87, p. 23, dezembro de 2012. ALENCAR, 2010. p. 19. 15 ALENCAR, 2010. p. 19. 16 Artigo 72, parágrafos, 4º, 5º, 6º e 7º da Constituição de 1891. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/ fed/consti/1824-1899/constituicao-35081-24-fevereiro-1891532699-publicacaooriginal-15017-pl.html> Acesso 19/11/2019. 17 ALENCAR, 2010. p.20.
Berg e Vingren não concordavam com ideia de a igreja ser ligada ao Estado, por acreditarem que a correlação causou danos ao seu país de origem. Os missionários defendiam a concepção das “igrejas-livres”, e por esse motivo, igualmente pelo fato de serem estrangeiros em solo brasileiro, não se envolviam com as questões políticas, pois o período que aqui se estabeleceram foi uma fase tensa na história da República brasileira. 18
Os missionários conseguiram expandir a denominação Assembleia de Deus por todo o Brasil, desenvolvendo lideranças regionais, entre pessoas simples e excluídas, fundando igrejas e mantendo-as sob a liderança geral de Vingren, iniciando essa ampliação acompanhando a construção da linha férrea Belém-Bragança. 19
Os suecos mantinham um pequeno vínculo com a AD norte-americana que se resumia apenas ao nome da denominação.20 Porém, os líderes pentecostais estadunidenses tinham interesse em ter um vínculo maior com a AD brasileira, o que não era bem visto pelos missionários suecos em virtude das missões que faziam em território brasileiro.
Com o início da Primeira Guerra Mundial, a igreja de Estocolmo não conseguia enviar o sustento financeiro para os seus missionários no Brasil, devido às travessias de navios pelo Atlântico. Mediante a situação, a AD dos EUA
18 ALENCAR2010.p. 42. 19 ALENCAR2010.p. 69. 20 No ano de 1912, ume pequena igreja de Findlay, Ohio, passou a se chamar Assembly of God, nome esse dado pelo pastor Thomas King Leonard. Em 02 de abril de 1914, em Hot Springs, foi fundado o Concílio Geral da Assembleia de Deus nos Estados Unidos da América. Aqui no Brasil, o nome Missão de Fé Apostólica não teve boa aceitação por parte dos nordestinos, tendo o nome mudado para Assembleia de Deus ainda em 1914, segundo relatos de Manoel Maria Rodrigues. Porém, o nome só foi registrado em Cartório em 11 de janeiro de 1918, pelos seus fundadores. ARAUJO, 2011. pp.17, 18. aproveitou a situação e enviou ajuda financeira para a AD brasileira, o que acabou contribuindo para criar e reforçar laços.
Em 1930, Gunnar Vingren, que era o principal líder da denominação, perdeu a liderança nacional, e a partir disso, não teve mais forças para impedir o avanço dos missionários pentecostais norteamericanos, que passaram a ter forte influência na AD brasileira.
O livro, O Diário do Pioneiro (ANO), registra que Vingren começou a ter dificuldades relacionadas à liderança da igreja brasileira21 no trabalho missionário com os obreiros locais, deixando subentendido que esse problema remetia-se ao fato de sua esposa, Frida Vingren, tomar a liderança da igreja em momentos de sua ausência. Em uma carta para o pastor Samuel Nyström, Vingren comentou que o problema relacionavase às mulheres22 serem ordenadas como pastoras, o que era costume no movimento pentecostal norte-americano e sueco.
A partir desse momento, a AD dos EUA fez empréstimos financeiros para a AD brasileira. Uma dessas ajudas foi para a construção da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD), que é a responsável por elaborar e produzir material didático e literário de linha doutrinária pentecostal no Brasil, até os dias de hoje.
Entre as décadas de 60 e 80, os pentecostais estadunidenses enviaram missionários e evangelistas para o Brasil, realizando concentrações de massas em estádios23 e
21 VINGREN, 1973.p.162. 22 VINGREN, 1973.p. 195. 23 Público lotou o estádio do Pacaembu, em São Paulo, para ouvir Billy Graham. Disponível em: http://m.acervo.estadao. com.br/noticias/acervo,publico-lotou-pacaembu-para-ouvirbilly-graham-,13133,0.htm. Acesso em 14/05/2020.
ginásios.24 Enviou também literatura teológica norte-americana,25 o que de certa forma incutiu nos assembleianos brasileiros a ideia dos valores da América cristã.
Em seus discursos os evangelistas norteamericanos diziam ser um povo escolhido por Deus, usando como base o discurso da prosperidade financeira do país (o que geraria a Teologia da Prosperidade nas décadas seguintes), mostrando que isso dava a eles condições de salvar o mundo e que o território dos Estados Unidos da América era a nova terra prometida, usando a mesma a história de Israel, de acordo com a bíblia, no Antigo Testamento,26 assim como os pais peregrinos pensavam.
Os missionários se mostravam superiores aos cristãos de outros países e usavam frases de desprezo e inferioridade aos países socialistas e comunistas,27 sempre colocando em destaque os EUA, dizendo que o fato de serem um país próspero era o sinal que Deus estava com eles. 28
Billy Graham e Jimmy Swaggart se tornaram figuras populares, principalmente no período da redemocratização no Brasil, tendo um dos canais televisivos brasileiros, Bandeirantes, transmitindo
24 O canadense bispo Robert McAlister foi convidado pelo pastor estadunidense, Lester Sumrall, da Assembleia de Deus dos EUA, para participar de uma das suas cruzadas no ginásio do Maracanãzinho. Disponível em: http://www.invbotafogo. com.br/sobre-nos/historia/ Acesso em: 14/05/2020. 25 GOMES, José Ozean. Da objeção ao reconhecimento: uma análise da política eclesiástica da Assembleia de Deus brasileira com respeito à educação teológica formal (19431983). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo. 26 Algumas dessas mensagens estão disponíveis em plataformas digitais pela internet.
27 Billy Graham falando contra o comunismo em uma de suas mensagens. Billy Graham talks about communism. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=xcn5T6NsTtw> Acesso 20/11/2019. 28 MARTELLI, 2009. p. 10. tapes do programa de Swggart, com filmagens realizadas em sua igreja nos Estados Unidos. Tanto Jimmy29 quanto Billy30 foram responsáveis por grandes mobilizações em massa, realizadas no Maracanã, recebendo todo apoio estrutural da AD no Brasil para a realização do evento. Os pregadores eletrônicos norte-americanos, e seus discursos fundamentalistas que foram importados para o Brasil, influenciaram os pentecostais a se envolverem com a política partidária nacional e negociar concessões de canais de rádios e TV, doações de terrenos, materiais de construção, cestas básicas, recursos públicos e etc. 31
Tendo em vista a Constituinte de 1988, a princípio, os assembleianos não tinham nenhum projeto político de poder, e o discurso que era feito para justificar a entrada da igreja na política era o da liberdade religiosa. Fazia-se, muitas vezes, o uso de discursos anticomunistas para causar medo,32 assim como os fundamentalistas estadunidenses, e com isso, impulsionar os membros da denominação a votar nos candidatos que eram escolhidos pela cúpula da igreja, alienando politicamente os membros das igrejas
29 Disponível em https://www.sbb.org.br/hotsites/bibliade-estudo-do-expositor/ministerio-de-jimmy-swaggart-nobrasil/. Acesso 07/05/2020. 30 Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=4umH6-hBPuE. Acesso em 07/05/2020. 31 No final da década de 1980, foi denunciado um esquema de corrupção que favorecia o governo Sarney, onde muitos deputados pentecostais estavam envolvidos, pois fizeram do parlamento um “balcão de negócios”, recebendo assim cargos públicos, verbas federais e concessões de canais de rádio e televisão. DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: Ideologia e Ação da “Bancada Evangélica” na Câmara Federal. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – PUC-SP. São Paulo, 2011.p. 25. 32 Antes do golpe militar de 64, o discurso dos parlamentares protestantes era apenas anticatólico, justificando pela luta da liberdade religiosa. Já na redemocratização, o discurso anticatólico e anticomunismo. MARIANO; PIERUCCI, 1992. Essa questão de usar o “medo” como um instrumento no meio pentecostal, está presente em muitos dos seus ensinos, e até mesmo em sua teologia. Exemplo disso é o ensinamento sobre dízimos e ofertas.
pentecostais brasileiros, cumprindo, de certa maneira, com a política imperialista norteamericana, no final da Guerra Fria, conforme relata Delcio Monteiro Lima:
Os especialistas do Departamento de Estado americano têm dado, igualmente, reiteradas provas do seu particular interesse nessa alienação política dos pentecostais do Terceiro Mundo. No caso da América Latina, fomentam por todos os meios a passividade dos crentes, instruindo abertamente os missionários do Brasil no sentido de que seu trabalho de evangelização seja sempre norteado pela,preocupação de manter o rebanho pentecostal longe da política, dedicado somente aos misteres espirituais. A mesma doutrinação é feita junto aos pastores brasileiros que vão aos Estados Unidos para cursos de pós-graduação ou programas de intercâmbio.
[...] A estratégia enfim, é não permitir qualquer tipo de militância que deságüe numa posição de antagonismo à situação dominante e possa evoluir para um estágio vulnerabilidade à contaminação esquedista.33
O discurso anticomunista ainda apresenta uma força muito grande na Assembleia de Deus, devido a toda afinidade entre essa denominação e grupos cristãos, notadamente neopentecostais, dos EUA, que manifestaram, ao longo do tempo, bastante interesse pela AD no Brasil.
A influência dos fundamentalistas estadunidenses no Brasil e o bolsonarismo
A partir da redemocratização no Brasil, sempre houve intenção por parte dos evangélicos em ter um presidente da República pertencente ao seu grupo, como solução aos problemas morais do país. Essa perspectiva política vem sendo denunciada por líderes evangélicos progressistas, como é o caso do pastor Ariovaldo Ramos (ANO), que denuncia esse intento evangélico argumentando como poderia prejudicar a sociedade, inclusive, a própria igreja:
Quando percebo desejos, um tanto suspeitos, de ver a nação governada por quadros evangélicos, impressionam-me com a inaptidão ao eclético. Não tenho dúvida de que nós, evangélicos, podemos oferecer à nação substancialmente contribuição para a sua administração, entretanto, tal engajamento só fará sentido se adição a um esforço conjunto que contemple todos os segmentos da sociedade. [...] É indisfarçável o crescimento do envolvimento da Igreja evangélica brasileira nas questões políticopartidárias, quanto escândalo, quanta vergonha! Isso, sem contar o desempenho de muitos dos nossos pretensos representantes. Deveria, a Igreja, envolver-se nisso? Se não, qual o caminho, a alienação? Origines, no tratado contra Celso, advoga que o cristão será tanto mais útil à sociedade, quanto mais for Igreja, advogando, assim, a separação total, o não envolvimento. Creio que o proposto pelo tão querido Pai da Igreja, do século III, não encontra mais espaço nos dias de hoje, já fomos longe demais. Mas, será que a forma que temos encontrado é a que deveríamos levar a efeito? Penso que não! Entendo que o nosso papel é cooperar com o aprimoramento da democracia e do Estado, através da pregação e da vivência de nossos postulados sobe a questão política e social. Mas, nós o temos? Perguntaria o cristão menos avisado.34
Ramos mostra que a Igreja evangélica tem muito a cooperar com a sociedade brasileira, mas não da forma como tem se posicionado.
[...] Precisamos mesmo salvar essa nação, mas, isso, ao invés de messianismo, se fará com o compromisso de todos os cidadãos, com um governo amplamente representativo, que seja sustentado por um arco de alianças progressistas: comprometido com a erradicação da miséria e da pobreza, com o aperfeiçoamento institucional da democracia, com o desenvolvimento de um mercado interno sólido, com uma política de pleno emprego, com a sustentação da soberania nacional, conditio sine que non para que a nação ocupe espaço relevante no concerto das nações; se o mandatário de tal governo for um evangélico, ficaremos contentes por estarmos contribuindo, principalmente, porque tal político terá chegado lá por sua história e não simplesmente por sua religião. [...] A Igreja não deve ter interesse em poder, mas na paz social, racial, democrática e religiosa que é fruto da justiça.35
Para entender como Jair Bolsonaro conseguiu se eleger presidente em 2018 com o apoio dos pentecostais, precisamos conhecer como funciona o voto de boa parte deles. O fato de se prenderem às leituras do Antigo Testamento de maneira fundamentalista faz com que se identifiquem com um imaginário de um líder autoritário, algo que está vivo dentro de boa parte das igrejas pentecostais na figura dos líderes. De acordo com Aline Coutrot:
A fé teocêntrica, submissão a um Deus todo poderoso, dá ao crente o sentimento da sua fragilidade. Ele se insere numa ordem natural que é preciso respeitar, ligada a estabilidade da sociedade fortemente estruturada por imagens paternais e familiares. O prolongamento de uma tal atitude no domínio político se deixa adivinhar. Esse tipo de crente será levado a preferir os regimes que se apóiam numa figura de autoridade indulgente, será atraído pelos sistemas hierárquicos nos quais cada um tem seu lugar se tensões nem rivalidades.36
O fundamentalismo torna os religiosos radicais, levando-os a fazerem conciliações da bíblia com guerras e execução sumária, não acreditando mais no amor e na humanidade de todos os homens. Conforme Leon Tolstoi:
O homem que crê no caráter divino do Antigo Testamento e na santidade de Davi, que em seu leito de morte delega a missão de matar o velho que o ofendeu, a quem ele não pode matar pessoalmente por estar ligado a um juramento (Livro 1 Reis 2.8), e muitas outras vilanias das quais o Antigo Testamento está cheio, não pode crer no sagrado amor de Cristo.37
Os discursos de Jair Bolsonaro estmularam o sentimento de ódio contra posicionamentos que evangélicos entendem como ameaça à fé cristã. Queiroz explica o porquê da adoção desse discurso e que muitas vezes foi pedida a volta da ditadura no país:
O Reino Messiânico é em geral um reino futuro, espera-se por ele. Tanto poderá ser algo de inteiramente novo, como poderá reproduzir uma Idade de Ouro que já tenho existido no passado, mas em ambos os casos os mesmos caracteres de santidade
36 RÉMOND, 2003. pp. 338,339. 37 TOLSTOI, 2018. pp. 78,79.
e perfeição. [...] É a crença na vinda de um redentor que porá o fim à ordem presente de coisas, universalmente ou para um só grupo, instituindo nesse mundo uma nova ordem de justiça e felicidade. [...] felicidade que teriam conhecido em tempos anteriores e que então seria restaurada.38
Devido ao discurso anti-petista pela imprensa hegemônica corporativa, dos líderes evangélicos midiáticos e o fato de o governo do PT ter abordado projetos de leis que envolviam questões da homoafetividade e do aborto, fez com que alguns evangélicos buscassem um representante para combater não apenas esses projetos, como também o kit de material didático “Escola Sem Homofobia”, chamado de kit-gay, e que acabasse com a corrupção na política nacional, por meio da democracia ou mesmo da ditadura, como muitos pediram naquele período.
Ataques às minorias foi uma das formas de Bolsonaro ganhar força eleitoral em sua campanha. Sobre isso, Queiroz afirma:
Justamente porque contém “ideias muito definidas” de como sanar as imperfeições, o messianismo não é crença passiva e inerte de resignação e conformismo; apontando para a possibilidade de um futuro melhor, pode levar – e em certas circunstâncias leva – os homens a se congregarem para conseguir, por meio da ação, os benefícios que almejam. O messias só merecer este título na medida em que uma coletividade diligente o reconhece como líder. 39
Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro fez o seu discurso de campanha pautado na questão da moralidade, conforme a necessidade dos que
38 QUEIROZ. Messianismo no Brasil e no Mundo... pp. 8, 10. 39 QUEIROZ. Messianismo no Brasil e no Mundo... p. 15. o apoiavam, recebendo adesão dos principais líderes evangélicos do Brasil e fazendo usos equivocados de versículos bíblicos. A imagem do Bolsonaro como candidato ao cargo de presidente pode ser analisada com base no conceito de “messianismo” de Weber e Alphandéry, conforme citado por Queiroz:
O messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do Paraíso Terrestre, tratando-se, pois, de um líder religioso ou social. O líder tem tal status não porque possui uma posição dentro da ordem estabelecida, e sim porque suas qualidades pessoais e extraordinárias, provadas por meio de faculdades mágicas ou estáticas, lhe dão autoridade; trata-se, pois, de um líder essencialmente carismático. Assim, age graças ao seu dom pessoal apenas, colocandose fora ou acima da hierarquia eclesiástica ou civil existente, desautorizando-a ou subvertendo-a, a ruptura de ordem estabelecida podendo ser breve ou de longa duração. 40
Jair assume um posicionamento de alguém enviado por Deus para executar uma missão, que seria acabar com um suposto mal que advinha do PT, além das pessoas alinhadas à política de esquerda e todas as pautas progressistas que estivessem em trâmite para serem aprovadas. Para cumprir a missão Bolsonaro foi escolhido por apresentar um discurso de que não tinha envolvimento com corrupção política, e que não era a favor da ordem estabelecida na política nacional.
Nesse ínterim entra em cena um sujeito
chamado Silas Malafaia, pastor e presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), que, semelhantemente a Billy Graham nos EUA, possui influência entre os pentecostais brasileiros e tem acesso aos governantes do Brasil, desde o período do governo Lula. Sua abordagem foi fundamental para que os pentecostais direcionassem seus votos para Jair Bolsonaro. Existe um vídeo no canal oficial do pastor, no Youtube, que tem o título “Porque você deve votar em Bolsonaro?”.41 Isso fortaleceu a imagem do candidato.
À declaração de Malafaia, sucederam outras como as do líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), bispo Edir Macedo, e do presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus (CGADB), pastor José Wellignton Bezerra.
Considerações finais
Vivemos momentos difíceis no Brasil, onde temos visto o Estado ser aparelhado pela religião, baseando sua agenda apenas em pautas morais, recebendo o apoio expressivo por parte dos pentecostais, justamente devido às leituras bíblicas pautadas em interpretações equivocadas, conforme os fundamentalistas norte-americanos.
Muitos líderes evangélicos usaram interpretações do Antigo Testamento, com visões milenaristas, para justificar o voto em Jair Bolsonaro ao invés de Fernando Haddad, em suas reuniões religiosas e em suas redes sociais, afirmando que Haddad, diferente de Bolsonaro, era inimigo do “povo de Deus”. Para tanto, descontextualizaram versículos bíblicos usando-
41 Silas Malafaia Oficial. Pastor Silas Malafaia comenta: Porque você deve votar em Bolsonaro? 2018. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4uBxAl-rPyw. Acesso em 02/12/2019.
E foi adversário de Israel, por todos os dias de Salomão, e isto além do mal que Haddad fazia; porque detestava a Israel, e reinava sobre a Síria (I Reis 11.25).
E depois dele se levantou Jair, gileadita, e julgou a Israel vinte e dois anos.
E tinha este trinta filhos, que cavalgavam sobre trinta jumentos; e tinham trinta cidades, a que chamaram Havote-Jair, até ao dia de hoje; as quais estão na terra de Gileade. E morreu Jair, e foi sepultado em Camom (Juízes 10.3-5).
Pelos fatos citados acima e por defender pautas políticas conservadoras, Bolsonaro se tornou para os evangélicos o “messias”, aquele que iria salvar a família tradicional, restaurar a moral, a ética e os bons costumes, acabar com o comunismo e acabar com as pautas do aborto e do homossexualidade, sendo essas as mesmas pautas42 usadas pelos fundamentalistas norteamericanos do início do século passado.
Vimos como anos de investimento por parte da AD dos EUA acabou nos levando a ter o governo que temos nos dias de hoje, e que, lamentavelmente, fizeram dessa governança sua religião.
Max David Rangel Cassin é Bacharel em Teologia, licenciado em História e mestrando em História pela UNIVERSO
42 Mais do que as pautas estarem parecidas, não houve rupturas, e sim ampliação das mesmas até hoje. Como a movimento dos homossexuais veio sofrendo mutação ao longo do tempo criou-se a sigla LGBT, isso a partir de 1988, pois entendiam que o termo “gay” soava como uma rejeição da falsa dicotomia homossexual / heterossexual. Uso aqui o termo “homossexualidade”, pois era a forma como os fundamentalistas se dirigiam aos assuntos concernentes a homoafetividade em sua época, evitando assim o erro de anacronismo.
ALENCAR, Gedeon. Assembleia de Deus – origem, implantação e militância (1911 – 1946). São Paulo. Arte Editorial. 2010.
ARAUJO, Isael de.
100 Acontecimentos Que Marcaram a História das Assembléias de Deus no
Brasil. Rio de Janeiro, CPAD. 2011.
AZEVEDO, Cecília. A santificação pelas obras: experiências do protestantismo nos EUA. Tempo, Rio de Janeiro, n. 11, v. 6, p. 111-129, 2001.
BARROS, Angélica.
Infográfico: a árvore
evangélica. Revista de História da Biblioteca Nacional. ano 8, n. 87, p. 23, dezembro de 2012.
CHAMPLIN, Russel Norman.
Enciclopédia de
Bíblia Teologia e Filosofia. Vol. 2. D-G. 9ª ed. São Paulo – Hagnos. 2008.
______. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. Vol. 5. P-R. 9ª ed. São Paulo – Hagnos. 2008.
DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião
e Política: Ideologia e Ação da “Bancada
Evangélica” na Câmara Federal. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – PUC-SP. São Paulo, 2011.
E. GONAZÁLEZ, Odina. Cristianismo na América Latina: uma história. São Paulo, Vida Nova. 2010.
GOMES, José Ozean.
Da objeção ao reconhecimento: uma análise da política eclesiástica da Assembleia de Deus brasileira com
respeito à educação teológica formal (1943-1983). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo.
LIMA, Delcio Monteiro de, Os demônios descem do norte. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1987. (Versão Digital).
O Envolvimento dos Pentecostais na Eleição do
Collor. Novos Estudos CEBRAP, n° 34, novembro 1992.
MARTELLI, Lindolfo Anderson. O pentecostalismo
em alteridade ao comunismo: construções imaginárias sobre “o mal que precede o Fim dos
Tempos”. ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Fortaleza, 2009. p. 10.
PEARLMAN, Myer.
Atos: e a Igreja se Fez
Missões. 1ed. Rio de Janeiro, Casa Publicadora da Assembleia de Deus, 1995.
QUEIROZ, Maria Isaura de Pereira. Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo, Dominus/Edusp, 1965.
RAMOS, Ariovaldo. Nossa Igreja Brasileira: uma opinião sobre a história recente. São Paulo. Hagnos, 2002.
RÉMOND, René. Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2003.
ROCHA, Daniel. “Ganhando o Brasil para Jesus”:
alguns apontamentos sobre a influência do movimento fundamentalista norteamericano sobre as práticas políticas do pentecostalismo
brasileiro. HORIZONTE, v.9, n.22. pp. 583-604, 2011.
STOTT, John R. W. A Mensagem de Atos: Até os confins da Terra. 2ª ed. 2ª reimpressão. São Paulo, ABU Editora, 2008.
TOLSTOI, Leon. O reino de Deus está em vós. 5ª ed. Rio de Janeiro. BestBolso, 2018.
VINGREN, Ivar. Gunnar Vingren, O Diário do Pioneiro. Rio de Janeiro, CPAD, 1973.
Plataformas digitais
Disponível em https://brasilescola.uol.com.br/historia-daamerica/peregrinos-mayflower.htm> Acesso em 01/05/2020.
Missionários americanos são espiões da CIA,
afirma líder evangélico: Disponível em https:// www.gospelprime.com.br/missionarios-euaespioes-cia/. Acesso em 20/11/2019.
CONSTITUIÇÃO DE 1891: Disponível em https:// www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1824-1899/ constituicao-35081-24-fevereiro-1891-532699publicacaooriginal-15017-pl.html> Acesso 19/11/2019.
Público lotou Pacaembu para ouvir Billy Graham:
Disponível em http://m.acervo.estadao.com.br/ noticias/acervo,publico-lotou-pacaembu-paraouvir-billy-graham-,13133,0.htm. Acesso em 14/05/2020.
História. Amor a Cristo Jesus: Disponível em http://www.invbotafogo.com.br/sobre-nos/ historia/ Acesso em: 14/05/2020.
Ministério de Jimmy Swaggart no Brasil:
Disponível em https://www.sbb.org.br/hotsites/ biblia-de-estudo-do-expositor/ministerio-dejimmy-swaggart-no-brasil/. Acesso 07/05/2020.
Doc: A verdade sobre Jimmy Swaggart: Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=AOaoohsuews. Acesso em 07/05/2020
Billy Graham talks about communism: Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=xcn5T6NsTtw> Acesso 20/11/2019.
Billy Graham no Brasil. Cruzada no Estádio do
Maracanã: Disponível em https://www.youtube. com/watch?v=4umH6-hBPuE. Acesso em 07/05/2020.
Pastor Silas Malafaia comenta: Por que você deve
votar em Bolsonaro? Disponível em https://www. youtube.com/watch?v=4uBxAl-rPyw. Acesso em 02/12/2019.
Artigo
ANÁLISE DOS DEBATES SOBRE SENHORIO E FEUDALISMO NA PRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA EUROPEIA: O CASO IBÉRICO1
1 O presente artigo é resultado do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica (PVD3323-2015) intitulado “Querelas conceituais da erudição: (re)pensando o senhorio e o feudalismo através dos debates historiográficos sobre a Idade Média”, desenvolvido entre os anos de 2015 e 2016 sob coordenação do Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro.
Por Cassiano Celestino de Jesus
RESUMO: Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição de feudalismo se revelou um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia. As discussões giravam em torno de seu surgimento, sua caracterização e, principalmente, sobre a feudalização da Espanha. Neste artigo, objetivamos desenvolver reflexões críticas a respeito dos debates acerca do senhorio e do feudalismo inseridos na produção historiográfica Ibérica, sobretudo, espanhola. Palavras Chaves: Feudalismo, Senhorio, Historiografia Ibérica.
Considerações Iniciais
Q
uando, onde, e como surgiu o feudalismo? Como este se caracterizou? Tudo começou por uma “revolução” na qual os príncipes e senhores de castelo, sobre as ruínas de um Império Carolíngio alquebrado pelos normandos, tomaram o poder?1 O feudalismo foi um fenômeno exclusivamente europeu? Houve outros países que (supostamente) não se feudalizaram como a Espanha? Ele varia, a depender do ponto de vista que se adote, tanto em sua cronologia quanto no âmbito territorial? Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição do feudalismo se revelou um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia. Neste artigo, propomos uma síntese das opiniões e abordagens possíveis sobre tal temática. Enfatizando, preferencialmente, o caso espanhol.
Para muitos escritores, feudalismo referese ao sistema de relações sociais e políticas característicos da Idade Média, desaparecidos com a eclosão do Estado Moderno. Outros, situam sua abolição, pelo menos no leste europeu, nos finais do século XVIII e começos do XIX, época da revolução francesa e da queda do antigo regime. Fora dos círculos acadêmicos, na visão popular, a
imagem do feudalismo é claramente negativa. A Europa feudal aparece como uma época escura, de predomínio rural esmagador, de exploração dos trabalhadores pelos senhores e de escassas comunicações.
Julio Valdeón Baruque2 expõe dois conceitos fundamentais sobre o feudalismo: o Institucionalista, que põe sua atenção aos aspectos políticos e jurídicos. E outra vertente, denominada de Materialismo histórico, que põe sua atenção nos elementos sociais e econômicos.
Um dos principais expoentes do chamado feudalismo institucional foi o belga Ganshof.3 Para este autor, as características fundamentais que definem uma sociedade feudal são: I- desenvolvimento considerável de vínculos de dependência entre homens que estão em uma posição de supremacia a uma classe de guerreiros profissionais. II- Um extraordinário fracionamento do direito de propriedade. III- uma hierarquia de direitos sobre a terra derivados desse fracionamento. IV- Uma fragmentação do poder público que originaria em cada país uma hierarquia de instituições autônomas que exercem em seu próprio interesse os poderes normalmente atribuídos ao Estado.
Este autor, ainda define feudalismo como um conjunto de instituições que criam e regem obrigações de obediência e serviço – principalmente militar – por parte de um homem livre, chamado vassalo, para um homem livre, chamado senhor. Esta definição de Ganshof se referia a relações entre um número muito reduzido de pessoas, os grupos dominantes da sociedade medieval e em particular a área militar. Tudo o que estava relacionado ao trabalho da
2 VALDÉON BARUQUE,1999. 3 GANSHOF, 1976. terra, a jurisdição exercida pelos senhores sobre os trabalhadores, as rendas e etc, estavam fora dessa definição.
Entretanto, para Valdeón Baruque,4 não é possível entender o feudalismo se somente fixarmos nossa atenção nas relações pessoais entre os membros da elite militar ou no peculiar sistema de governo, e esquecer, no entanto, a problemática ligada ao trabalho da terra e a dependência dos camponeses. O correto é entender o feudalismo observando os aspectos feudais e senhoriais. Contemplar o senhorio como parte integrante do feudalismo.
Dito isto, como e quando se constituiu o
feudalismo? Para Valdeón Baruque,5 a opinião mais generalizada diz que a sociedade feudal se constituiu no transcurso de um processo de grande amplitude cronológica e de enorme complexidade. É apresentado como um período de transição entre o mundo antigo e medieval. O início desta transição pode situar-se na crise e posterior desintegração do Império Romano com as invasões. Segundo o materialismo histórico entre o modo de produção escravista e o feudal.
Para o autor, foi um processo lento, procedente de elementos integrados vindos uns do mundo romano e outros originários do mundo germânico. Os principais acontecimentos para o seu surgimento são, a crescente ruralização, as ruínas e extinção do Império Romano, as imigrações dos chamados povos “bárbaros” e a formação dos diversos reinos germânicos no território do falecido império. No período compreendido entre os séculos III e VI, foram tomando corpo uma série de elementos que podem ser consideradas precedentes das futuras instituições feudais, como: encomendação e benefício.
As novas condições de vida existentes no ocidente da Europa, a raiz da extinção do Império Romano e do estabelecimento dos reinos germânicos, proporcionaram o terreno favorável para o desenvolvimento dos diversos ingredientes que constituíram a sociedade feudal. De acordo com as circunstancias da época, os grandes domínios (que eram a grande propriedade) foram se convertendo, gradualmente, em senhorios rurais. Os proprietários das terras passaram a ser senhores e acumular em suas mãos poderes diversos sobre os camponeses que habitavam em seus domínios. Estes poderes eram de natureza variada: militar, fiscais, judiciais, econômicas. O autor cita os pensamentos dos historiadores Abilio Barbero e Marcelo Vigil,6 que afirmam que o feudalismo se caracteriza basicamente pela existência de relações de dependência a todos os níveis. No mundo feudal as relações sociais de produção se estabeleciam entre os senhores e os camponeses. O vínculo entre os dois era o senhorio. Era nele que se desenrolavam as relações sociais entre classes, as relações de dependência e de exploração.
O feudalismo, quer consideremos como um conjunto articulado de instituições, um modo de produção ou um sistema global de organização social, faz tempo que desapareceu da Europa. Para o autor, data basicamente dentre os finais do século XVIII e começos do XIX.
Perspectivas sobre a feudalização no território espanhol
A Espanha foi feudal? Numa carta de 1931, o medievalista francês Marc Bloch lamentava para o historiador espanhol Claudio Sánchez-Albornoz “que não saber sobre o feudalismo espanhol era, realmente, uma lacuna enorme na sua visão da Europa, que deveria preencher algum dia”.7
A ideia da não feudalização da Espanha foi defendida no começo do século XIX pelo clérigo iluminista Martínez Marina, o qual afirmava que os Reinos de Leão e Castela era inconciliável com as “monstruosas” instituições dos governos feudais. Algum tempo depois, um destacado historiador português, Herculano, mesmo sob uma perspectiva diferente das de Martinez também afirmava não ter existido feudalismo nos
6 BARBERO; VIGIL, 2006. 7 KOSTO, Adam .What about Spain? Iberia in the historiography of Medieval European Feudalism. Feudalism: new landscapes of debate, p. 135 -158, 2011.
O principal porta-voz da interpretação jurídicoinstitucional do feudalismo, Sánchez Albornoz, afirma que na Espanha visigoda houve um processo de pré-feudalização, e que tudo não passou de apenas um ensaio do que posteriormente poderia chamar-se de feudalismo. Pois, a invasão muçulmana de 711 cortou pela raiz tais processos. Com raras exceções, não houve feudalização na Espanha medieval. Ele definia Castela medieval, por exemplo, como uma ilha de homens livres frente a Europa medieval. Tal concepção prevaleceu por muito tempo na historiografia espanhola, e isto se deve ao exercício do seu magistério.9
Sánchez Albornoz10 afirmou que a Espanha medieval não se feudalizou, exceto o território de Cataluña. O seu conceito de feudalismo limitouse, exclusivamente, ao âmbito das relações feudovassaláticas. O feudalismo, portanto, referiase unicamente às relações entre o senhor e o vassalo. Tais relações dariam a partir da concessão do feudo que o primeiro fazia ao segundo, de um poderoso a outro inferior a ele, de um mesmo grupo social, em troca de que o beneficiário lhe preste um juramento de vassalagem no terreno das atividades militares.
O veredicto dos historiadores que partem da concepção jurídico-institucionalista do feudalismo, acerca de sua presença na Espanha é bem conhecido: a Espanha não se feudalizou. Houveram instituições feudais, mas seu desenvolvimento foi tardio e incompleto, porque nunca levaram na formação de um autêntico estado feudal semelhante à de outros países
8 VALDÉON BARUQUE, Julio. El feudalismo hispánico en la historiografía reciente. Historia, instituciones, documentos, Sevilha, n. 25, p. 677-684, 1998. 9 SANCHEZ ALBORNOZ, Claudio. En torno a los orígenes del feudalismo. Buenos Aires: Eudesa, 1979. 10 Idem. Contrapondo-se a isso, e se referindo às invasões muçulmanas, José Maria Mínguez Fernandez11
afirma que não cabe dúvida que ela afetou uma sociedade – a visigoda – cujas estruturas estavamse praticamente desmanteladas. Mas, para ele, a invasão muçulmana não precipitou de maneira imediata a quebra definitiva das estruturas econômicas-sociais e político-institucional visigodos.
A partir das décadas de 1960-1970 o conceito de feudalismo começa a ser revisitado. Principalmente influenciado pela escola francesa dos Annales e o materialismo histórico. Este último, em especial, propunha a aceitação do termo feudal como equivalente a um modo de produção e não somente a um conjunto de instituições que expressavam o desenvolvimento das relações pessoais. Assim, para o materialismo histórico, o feudalismo, como modo de produção, sucedeu a fase dominada pelo escravismo e precedeu o triunfo do capitalismo.
A publicação em 1978 do livro “El feudalismo en la Península Ibérica” dos professores Marcelo Barbero e Abilio Virgil, marca um autêntico “ponto de inflexição” na historiografia espanhola sobre a feudalização. Tais autores, defendiam uma concepção de feudalismo distinta da tradicional (restringida aos aspectos políticos-jurídicos).
Tais autores, afirmaram que podia-se falar em feudalismo na Península Ibérica desde fins do Império Romano até meados do século XIX. Na introdução de “Formação do feudalismo na Península Ibérica”,12 diziam não fazer distinção entre feudal e senhorial, nem por ênfase do
11 MÍNGUEZ FERNÁNDEZ, José María, Ruptura social e implantación del feudalismo en el noroeste peninsular (siglos VIII-X), Studia Historica. Historia Medieval, nº 3, p. 7-32, 1985. 12 BARBERO; VIGIL, 2006.
caráter militar no feudal. O que pretendiam com o trabalho era expor de maneira coerente a formação das relações de dependências feudais a todos os níveis, desde o econômico até o político.
Além dos historiadores acima apresentados, cabe apontar os estudos de Carlos Estepa Díez sobre o feudalismo no mundo ibérico e, principalmente, no território Castelhano. Segundo o autor,13 uma versão restringida do feudalismo e das relações feudais é legítima desde que sirva para analisar parte da realidade histórica. Doravante, mesmo que os conceitos de feudal e feudalismo tenham sido formuladas na Idade Moderna, eles estão longe de serem um obstáculo para o conhecimento das sociedades medievais.
13 ESTEPA DÍEZ, Carlos. Notas sobre el feudalismo castellano en el marco historiográfico general. In: SARASA SÁNCHEZ, Esteban; SERRANO MARTÍN, Eliseo. (Eds.). Estudios sobre señorío y feudalismo (Homenaje a Julio Valdeón). Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2010. p. 77-106. Ao apresentar a formação do feudalismo em Castela, Estepa Díez14 afirma que se pode perceber as raízes de um feudalismo espanhol a partir do século X, quando ia se produzindo em Castela uma transformação das comunidades rurais. Estas estavam articuladas em unidades supralocais, constituindo os “alfoces”, leia-se, unidades territoriais em que se concretiza e se materializa o controle político que exerce o conde ou rei sobre os homens que nele ocupam.
Em suma, identifica a formação do feudalismo com a presença e extensão da chamada “propriedade dominical” durante o período Astur, mais cedo em Leão do que em Castela. Não se trata, portanto, de uma crise das antigas estruturas, mas da competência entre a monarquia e a alta aristocracia em estender seu domínio senhorial. Muito provavelmente seja no Reinado de Alfonso VI (1065-1109) que se consolidaram as instituições feudo-vassalática, não feudalismo no seu sentido mais amplo.
Carlos Estepa Díez não tem a preocupação de propor uma reformulação metodológica, mas, novas ferramentas conceituais para entender a formação e desenvolvimento do feudalismo em Castela e Leão. O centro de suas análises se situa no poder dos senhorios e na dependência camponesa. Para seu estudo ele se utiliza de novas categorias de análise, tais como: propriedade dominical, referindo-se a propriedade dos senhores.
O domínio senhorial, que abarca direitos mais amplos, geralmente sobre o conjunto de uma vila ou aldeia, suponha a extensão de direitos de camponeses não sujeitos a propriedade dominical. E por fim, o senhorio jurisdicional, que seria o desenvolvimento do domínio senhorial durante
a baixa Idade Média. Como categorias são mais flexíveis e moldáveis, podendo ajustar-se melhor a realidade histórica.
Considerações Finais
Portanto, após a leitura e análise de textos sobre a temática do feudalismo na Espanha percebeu-se que tais debates alcançaram sua maior ressonância nas últimas décadas do século XX. Pois, na sua primeira metade prevaleceu nos âmbitos historiográficos o ponto de vista de que o feudalismo hispânico tinha sido imaturo, nunca completamente desenvolvido.
Doravante, o materialismo histórico segue tendo um papel protagonista nos estudos sobre o feudalismo no passado espanhol. A jovem historiografia espanhola aceita/admite a existência do feudalismo, partindo de um conceito global, que integra os aspectos jurídicos-institucionais e os socioeconômicos.
Por conseguinte, existe uma unanimidade entre os autores espanhóis em afirmar que até os anos 70 do século XX a história de Castela na alta Idade Média estava claramente orientada pela interpretação de Claudio Sánchez Albornoz, que defendia uma Castela de homens livres e, portanto, sem feudalismo. Pois, este entendia o conceito de feudalismo pela ótica da relação feudo-vassalática, assim, para ele, somente os aspectos jurídicospolíticos pertenciam ao feudalismo. E também que o panorama historiográfico muda radicalmente a partir dos trabalhos de Abilio Barbero e Marcelo Vigil, em seu livro “El feudalismo en la Península Ibérica”. Cassiano Celestino de Jesus é doutorando em História Social pela Universidade Federal da Bahia (PPGH/UFBA), Pesquisador do Dominium: Estudos sobre Sociedades Senhorias. e Bolsista FAPESB.
REFERÊNCIAS
SALLES, Bruno Tadeu. O Senhorio nos séculos XI e XII: Perspectivas historiográficas. In: ALVES, Aléssio Alonso; MIATELLO, André Luís Pereira; RIBEIRO, Felipe Augusto (Orgs.). Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil: Workshop, 29 e 30 de setembro de 2011, Belo Horizonte, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Anais... Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012. BARBERO, Abílio; VIGIL, Marcelo. El feudalismo en la Península Ibérica. Barcelona: RBA Coleccionables, 2006. ESTEPA DÍEZ, C.
Formación y características del feudalismo en la Extremadura castellana: a propósito
de un libro reciente. In: Studia historica. Historia medieval, nº 3, 1985. ESTEPA DÍEZ, Carlos.
Notas sobre el feudalismo
castellano en el marco historiográfico general. In: SARASA SÁNCHEZ, Esteban; SERRANO MARTÍN, Eliseo. (Eds.). Estudios sobre señorío y feudalismo (Homenaje a Julio Valdeón). Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2010. p. 77-106. GANSHOF, François-Louis. Que é feudalismo. Lisboa: Europa-América, 1976. KOSTO, Adam .What about Spain? Iberia in the
historiography of Medieval European Feudalism,
Feudalism: new landscapes of debate, p. 135 -158, 2011. MÍNGUEZ FERNÁNDEZ, José María, Ruptura social e
implantación del feudalismo en el noroeste peninsular
(siglos VIII-X), Studia Historica. Historia Medieval, nº 3, p. 7-32, 1985. SANCHEZ ALBORNOZ, Claudio. En torno a los orígenes del feudalismo. Buenos Aires: Eudesa, 1979. VALDÉON BARUQUE, Julio. El feudalismo. Madrid: Alba, 1999. ______. El feudalismo hispánico en la historiografía reciente. Historia, instituciones, documentos, Sevilha, n. 25, p. 677-684, 1998. _____. “Sobre el feudalismo. Trinta años después”. In: SARASA SÁNCHEZ, Esteban; SERRANO MARTÍN, Eliseo. (Eds.). Estudios sobre señorío y feudalismo (Homenaje a Julio Valdeón). Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2010. p. 9-25.