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TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NA CADEIA PRODUTIVA DA MARCA DE VESTUÁRIO AMÍSSIMA

Fernanda Brandão Cançado. Mestra e graduada em Direito pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). MBA em Gestão e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Program Manager na American Bar Association (ABA-ROLI). Conselheira Estadual da OAB-MT. fernandabrandaocancado@gmail.com Carla Reita Faria Leal. Pós-Doutoranda pela Universidade de Nottingham (UK). Doutora e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora associada da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Juíza do Trabalho aposentada. Líder do Projeto de Pesquisa “O meio ambiente do trabalho equilibrado como componente do trabalho decente” (FD/UFMT). crfleal@terra.com.br

Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar a ocorrência de trabalho em condições análogas à de escravo na cadeia produtiva têxtil, em específico o caso envolvendo o termo de ajustamento de conduta celebrado pela luxuosa marca de vestuário Amíssima.

Palavras-chave: Trabalho em condições análogas à de escravo; trabalho escravo contemporâneo; cadeia produtiva têxtil; termo de ajustamento de conduta; Amíssima;

INTRODUÇÃO

Em que pese o Estado brasileiro ter erradicado formalmente o trabalho escravo há mais de 130 (cento trinta) anos, sabe-se que referida prática ainda é uma realidade no território nacional. Tanto é assim que no período entre 1995 e 2020, mais de 55.000 (cinquenta e cinco mil) pessoas foram resgatadas trabalhando em condições análogas à de escravo no Brasil (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2021).

Apesar de a ocorrência do trabalho escravo contemporâneo brasileiro estar usualmente associada às atividades rurais, sabe-se que no caso da cadeia produtiva têxtil os flagrantes têm ocorrido principalmente na área urbana. Dentro deste contexto, o caso envolvendo trabalhadores escravizados na cadeia produtiva da luxuosa marca Amíssima veio à tona, na capital de São Paulo, no ano de 2018. O presente ensaio teórico se propõe analisar as especificidades do caso concreto.

O CASO AMÍSSIMA: DA DENÚNCIA À CELEBRAÇÃO DO TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA COM O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

Apesar de saber-se que que as nomenclaturas “trabalho em condições análogas à de escravo” e “trabalho escravo contemporâneo” não refletem a gravidade da situação vivenciada pelos trabalhadores resgatados na atualidade, desde a publicação da Lei Áurea (BRASIL, 1888), o trabalho escravo foi formalmente erradicado do território brasileiro e é especialmente por este motivo – a erradicação formal do referido crime e o apreço ao rigorismo científico – que as autoras do presente ensaio teórico deixam de utilizar o termo “trabalho escravo”. De acordo com Flávia Piovesan,

A proibição do trabalho escravo é absoluta no Direito Internacional dos Direitos Humanos, não contemplando qualquer exceção [...] tal como o direito a não ser submetido à tortura, o direito a não ser submetido à escravidão é um direito absoluto, insuscetível de qualquer relativização ou flexibilização, a não permitir qualquer juízo de ponderação. (PIOVESAN, 2011, p. 143).

Ainda do ponto de vista conceitual, desde 2003 houve alteração do art. 149 do Código Penal brasileiro (BRASIL, 2003), e o trabalho em condição análoga à de escravo passou a ser considerado um gênero dos quais são espécies o trabalho forçado; o trabalho em jornada extenuante; o trabalho em condições degradantes; a servidão por dívida; o trabalho com cerceio de uso de meio de transporte e com vigilância ostensiva no local de trabalho, ou a retenção de documentos ou objetos pessoais do trabalhador com a finalidade de reter o próprio empregado no local de trabalho.

Sendo assim, qualquer um dos meios de execução acima mencionados caracterizam o trabalho em condições análogas à de escravo. Atualmente um dos conceitos mais bem aceitos na doutrina é o formulado por José Cláudio de Brito Filho, que considera o trabalho escravo contemporâneo uma antítese ao trabalho decente e, portanto, àquele prestado de forma digna (BRITO FILHO, 2017). Desta forma, não é apenas a falta de liberdade que caracteriza o trabalho em condições análogas à de escravo, mas também o trabalho sem condições mínimas de dignidade, dentro dos limites traçados pelo art. 149 do Código Penal brasileiro. O caso envolvendo a cadeia produtiva da marca Amíssima reflete justamente esta realidade, afinal, o Ministério Público do Trabalho publicou a Portaria de Instauração de Inquérito Civil n. 1305.2018 por condições degradantes e jornada exaustiva. Ou seja, não se tratou de um caso que a ausência de liberdade de locomoção tenha sido necessária para a caracterização do crime.

O procedimento teve início quando em 2018 quando o referido órgão ministerial recebeu uma denúncia de que bolivianos e paraguaios estavam em situação análoga à de escravo em uma oficina têxtil que produzia diretamente as roupas da marca. Realizadas fiscalizações, quatorze adultos foram encontrados em duas oficinas. Os auditores fiscais do trabalho verificaram que os trabalhadores trabalhavam cerca de quatorze horas por dia. Não havia descanso semanal, registro na Carteira de Trabalho, recolhimento de INSS e de FGTS. A remuneração máxima era de R$ 900,00 (novecentos reais) mensal, porque a remuneração era paga por produção, sendo R$ 9,00 (nove reais) por peças “difíceis” e R$ 6,00 (seis reais) por peças “fáceis” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2018). Estes valores eram divididos em três partes iguais, das quais os trabalhadores ficavam com apenas um terço (THE INTERCEPT, 2018). Apesar de a existência cada vez maior de tecnologia agregada às lojas virtuais, a exemplo da possibilidade de a compra ser feita por um clique de rede social, nota-se que tal qual ocorre com o setor produtivo pecuário, setor econômico líder na ocorrência de trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil, em que carnes são comercializadas em restaurantes e supermercados – áreas majoritariamente livres de trabalho escravo contemporâneo – a cadeia produtiva do vestuário também apresenta incoerências difíceis de serem constatadas pelo consumidor. Afinal, além de possuir lojas nos renomados shoppings centers JK Iguatemi e Cidade Jardim e ter como garotas propagandas digitais influencers, a exemplo de Thássia Naves, Lele Saddi e Marcela Tranchesi (AMISSIMA, 2021), a marca Amíssima se utilizou de trabalho em condições análogas à de escravo em sua respectiva cadeia produtiva sem que consumidores tivessem qualquer conhecimento da procedência da roupa que lhes é vendida.

Mais do que uma forma de estruturação da cadeia produtiva, os elos existentes entre os fornecedores demonstram verdadeiras relações de cumplicidade. O Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe a noção de esfera de influência e de cumplicidade na responsabilização por desrespeito aos direitos humanos e, em seu segundo princípio, previu que as empresas devem se assegurar da não participação – seja ela direta ou indireta – em violações desses direitos (UN GLOBAL COMPACT, s/d).

Dentre as formas de cumplicidade existentes entre parceiros comerciais, a mais conhecida é a da cumplicidade benéfica, na qual uma empresa beneficia-se diretamente dos abusos contra direitos humanos cometidos por um terceiro. No caso concreto, imagens feitas pela jornalista Thaís Lazzeri, do The Intercept, em uma das oficinas, demonstram o áudio do que seria uma das empregadas da marca Amíssima informando um dos trabalhadores sobre falhas na produção. Na oportunidade, flagrou-se ainda que todos os trabalhadores produziam exclusivamente peças da referida marca.

Uma vez instaurado o Inquérito Civil perante o Ministério Público do Trabalho, autuado sob o n. 002522.2018.02.000/5, a Amíssima optou por celebrar um Termo de Ajuste de Conduta, que pode ser definido, em linhas gerais, como uma espécie de acordo. Na oportunidade, a empresa se comprometeu a diversas medidas, dentre as quais, mencionam-se: o pagamento de débitos previdenciários e trabalhistas; o pagamento de indenização por dano moral coletivo ao Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI); o ressarcimento de todos os custos da ação fiscal; a elaboração e execução de um programa multidisciplinar destinado à assistência e qualificação dos trabalhadores resgatados; a contratação de trabalhadores egressos de programação de qualificação em pelo menos igual número aos que foram encontrados em condições análogas à de escravo quando da inspeção; a implementação de programa de auditoria para monitoramento de todos os trabalhadores que prestem serviços – diretos ou indiretos – à marca; a criação de mecanismos de fiscalização; a prestação de constas semestralmente ao Ministério Público do Trabalho. Apesar de inexistente texto de lei expresso que preveja a responsabilização da cadeia produtiva em casos de trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil, há margem para construção de soluções jurídicas neste sentido (CANÇADO, 2021). Tanto é assim, que outras marcas de vestuário já foram responsabilizadas por tais práticas, como Zara e M. Officer, exemplificativamente. Não por acaso que a marca optou por, de forma voluntária, assumir referidos compromissos perante a autoridade competente para regularizar a conduta de seu parceiro e se comprometer a erradicar situações semelhantes.

Se, por um lado, a empresa ficou ilesa de condenações trabalhistas e penais, por outro lado, o termo de ajustamento de conduta serviu como uma forma alternativa de construir uma solução eficaz não apenas para a continuidade das atividades da empresa de forma regular, mas principalmente para a mudança da realidade dos trabalhadores inseridos naquela realidade indigna. Exemplos como estes, ao que tudo indicam, aparentam ser uma boa solução jurídica para todos os atores envolvidos em cena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de absolutamente reprovável, o trabalho em condições análogas ainda se faz presente no Brasil e, em grande parte das vezes, de forma oculta aos olhos dos consumidores. Ocorrências como a da marca Amíssima demonstram o quanto, por um lado, o Estado brasileiro é deficitário no combate a esta prática – que permanece existente no território brasileiro - e por outro lado, o quanto soluções extrajudiciais podem ser frutíferas para a solução de situações como a ora analisada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMISSIMA. Disponível em: https://www.amissima.com.br/elas-usam. Acesso em: 05 jul. 2021.

CANÇADO, Fernanda Brandão. Selos sociais na cadeia produtiva da carne bovina: um mecanismo alternativo de combate ao trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 99.

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_____. Lei Federal n.º 10.803, 11 dezembro de 2003. Altera o art. 149 do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.803.htm#:~:text=LEI%20No%20 10.803%2C%20DE,condi%C3%A7%C3%A3o%20an%C3%A1loga%20%C3%A0%20de%20 escravo. Acesso em: 05 set. 2022.

BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho escravo: caracterização jurídica. 2. ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 41.

LAZZERI, Thaís. Exclusivo: com vestidos a R$ 800, grife Amíssima faz roupas com trabalho escravo. The Intercept. Disponível em: https://theintercept.com/2018/12/17/amissima-trabalho-escravo/. Acesso em: 05 set. 2022.

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MORAIS, Bárbara. Amíssima assina TAC por trabalho escravo. Ministério Público do Trabalho. Disponível em: https://www.prt2.mpt.mp.br/686-amissima-assina-tac-por-trabalho-escravo. Acesso em: 05 set. 2022.

PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e degradante como forma de violação aos direitos humanos. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel Napoleão; FAVA, Marcos Neves (Coord). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. 2. ed. São Paulo: LTr, 2011. p. 143.

UN GLOBAL COMPACT. Pacto Global Rede Brasil. Os 10 princípios. s/d. Disponível em: https://www.pactoglobal.org.br/10-principios. Acesso em: 05 set. 2022.

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