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o Santo inimigo do mal

  • por Filipe Chagas

A criatividade está intrinsecamente conectada à libido e ao desejo. É o tesão que inicia o processo criativo d’o Santo inimigo do mal. Raciocínios lineares vão se tornando extrapolações errantes – “infidelidades”, como ele diz – que ativam sua vontade de subverter signos, assim como os grandes mestres fizeram, seja por meio da pintura, da escultura, da performance, do vídeo ou de outras expressividades.

O Santo inimigo do mal é um projeto pessoal performático e de vida do artista goiano Saint Clair Cerqueira Araújo. Ele afirma que constantemente encontra novas poéticas e posicionamentos frente ao cotidiano, ao mesmo tempo que faz suas curas e se organiza para estar no mundo.

Sustento o incômodo de não saber qual é meu próximo passo, e deixo isso pro Santo. Ele vai dando as cartas e sempre me surpreendo de como essas cartas são interessantes e tesudas. [risos]
Adas
arte digital da série "A chave: O sagrado e o provando", 2022.
Glowing Bitch
arte digital da série "A chave: O sagrado e o provando", 2022.
Astronauta
fotografias com intervenção digital da série "Corpo Universo", 2019.
Águas Universais
fotografia com intervenção digital da série "Corpo Universo", 2023.
Artes da série "A lista das putas astrais do Grindr", 2024-2025.
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óleo sobre tela, 2023.
Cross Selfie 0001
óleo sobre tela, 2022.

Seu interesse pela pintura começou na escola, e o levou a fazer um curso em um centro cultural de sua cidade. Chegou a flertar com a escultura, mas a tridimensionalidade só começou a se tornar uma grande paixão no meio da graduação em Arquitetura pela Universidade Federal de Goiás e pela Portland State University, nos Estados Unidos. O que conecta todas as linguagens artísticas que exercita é sua exploração visual do explícito em tom autobiográfico.

Cross Selfie 0016
óleo sobre tela, 2023.
Cross Selfie 0002
óleo sobre tela, 2022.
Cross Selfie 0020
óleo sobre tela, 2023.

O artista vem mesclando símbolos tradicionais com construções contemporâneas para provocar masculinidades como ferramenta de criação e compreensão do mundo (“as cruzes entre o mistério e o concreto”). O retrato – de si e dos outros – utilizado como comunicação e conexão do desejo aparece com frequência em sua produção que se inspira em suas aventuras erótico-espirituais. Seu manifesto nos revela que ele tende a oferecer percepções tanto particulares quanto plurais, que possibilitam a expansão e a sacralização do obsceno.

Seja esculpindo concreto, compondo imagens ou escrevendo palavras, opero com apuro e intenção, como quem crava significados em corpos. Minha técnica não é apenas habilidade manual, mas um gesto de inscrição: marcar presença, erotizar o sagrado, dar forma ao invisível. Materializo em pornografia, como pornografia e para pornografia. Eu sou aquele que transforma dor, desejo e delírio em linguagem. Assim como no orgasmo, assim como na vida.
Fragmento 006
concreto em fragmento arquitetônico, da série "Nenhuma pika foi lesionada", 2021.
Fragmento 003
concreto e vidro em fragmento arquitetônico, da série "Nenhuma pika foi lesionada", 2021.
Fragmento 001
concreto e vidro em fragmento arquitetônico, da série "Nenhuma pika foi lesionada", 2021.

Essa ligação com a pornografia, com o explícito, vem de infância. Santo lembra que desde que viu o primeiro pênis, ficou curioso pelas texturas e diferenciações e tinha dificuldade de entender porque precisava escondê-lo ao invés de ostentálo como marca estética (“depois veio Freud e Bataille e me explicaram o porquê [risos]”). Se colocar nu dentro do contexto artístico – “e não só aí!”, como faz questão de afirmar – é validar a diversidade de corpos e formatos de pênis, enfrentando a saturação de estereótipos físicos de uma sociedade homogeneizante de consumo.

Estagnação IV (pouso)
da série "Blocos de Prazer", concreto, 2020.
Estagnação VI (esfacelamento)
da série "Blocos de Prazer", concreto, 2020.
Estagnação V (estandarte)
da série "Blocos de Prazer", concreto, 2020.

Suas primeiras representações do falo foram feitas nas últimas páginas dos cadernos escolares e conta que, certa vez, um de seus desenhos o excitou e decidiu arrancar a página para guardar no bolso e olhar de vez em quando (“ali eu comecei perceber que tinha alguma coisa”). Apesar dessa orientação libidinal, a masculinidade heteronormativa não se apresentava como objetivo:

Eu sempre tive uma aversão a grupinhos de machos normativos. Reproduziam tantas bobagens e tinham certos rituais de validação e umas escrotices… só mais tarde eu vim perceber o que significa realmente ser um homem e, sobretudo, um ser humano; também de estar além dessas performances. Foi e é o contato com homens sensíveis que vem curando minhas feridas.
Chaveirinho de hétero
concreto, 2021.
Norte but things went South
da série "Manufaturas", concreto, 2025.
00584 (ruptura)
da série "Manufaturas", concreto, 2025.
Vários ângulos da escultura em concreto Tales of Enkidu (Worship version), da série Sumerian Porn, 2024.

Santo vislumbra mudanças. Considera o desenvolvimento crescente de arte erótica como “uma resposta tardia à era vitoriana que alicerçou uma moral doentia amplamente normatizada”. Ao ver a arte sendo usada para revisar de forma crítica os problemas estruturais, compreende sua missão de provocar, de “criar respiros para que a alma respire”, usando seu corpo e sua história como um campo de atravessamentos simbólicos. Sem almejar agradar ou ensinar, Santo atesta que a legitimação de si é o que leva à experimentação e à subversão necessárias para incomodar e transformar. 8=D

Fotos da performance "Pornotátil", realizada no 4º Festival Vórtice, em São Paulo, 2025.

Por que o concreto?

A utilização do concreto é um traço da arquitetura de Saint Clair que se realiza no trabalho artístico do Santo. Segue os preceitos do brutalismo – estilo arquitetônico emergido no pós-Segunda Guerra com auge entre as décadas de 1950 e 1970 – que valorizava os materiais à mostra. É nessa ideia de “verdade dos materiais” que Santo ancora sua escolha e dialoga com o obsceno, a pornografia.

Concreto é a pedra que eu consigo moldar. Simboliza nossa natureza urbana que posso transformar. É meu gozo arquitetônico.
Tales of Gilgamesh (version E)
da série "Sumerian Porn", concreto e ferro, 2024.

Não é comum se pensar na técnica de modelagem em concreto, mas o artista sabe que, ao trabalhar com os tempos de cura do material, é possível esculpi-lo manualmente.

Para ele, fazer um falo de concreto é a combinação ideal: ambos falam de rigidez, imperfeições e crueza. Algumas de suas peças ainda possuem pequenas armaduras internas emulando o concreto armado usado na construção civil.

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