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Contos do Falo

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FALOLOGIA

FALOLOGIA

  • por Jozias Benedicto

Um homem alto

Ele era muito alto. Era, não; deve ser ainda, se não morreu ou encolheu. As pessoas encolhem quando envelhecem. Quanto a mim, morrer não morri, mas tenho encolhido um pouco a cada segundo, o oráculo do app de IA me responde que a média de encolhimento para homens brancos depois dos sessenta anos é de quase meio centímetro por ano. Mas quando eu marquei de encontrar com ele, e isso já faz uns bons dez, quinze, dezoito anos talvez – o tempo passa – eu já era baixinho, na verdade sempre fui baixinho. Eu suspeitava que ele era, ou ainda é, alto; quando a gente teclou antes de se encontrar eu contei “sou baixinho, tem problema?” e perguntei a altura dele, respondeu que não sabia direito, era mais ou menos um e oitenta e sete algo assim, não se media há muito tempo, desde a época do serviço militar. Eu, bobo, acreditei em tudo o que ouvia e fui encontrar com ele em um shopping.

Quando eu vi aquele homem alto, altíssimo, chegando ao longe, acenando envergonhado e sorrindo para mim, de longe no corredor da praça de alimentação daquele shopping furreca – eu pensei, um e oitenta e sete meu cazzo. Foi a primeira pergunta que fiz, antes de indagar coisas mais pessoais, “você mentiu para mim? Qual sua altura, de verdade?”

Ficou envergonhado, um garotão, um tanto tímido naquela altura toda, sorriso de gente boa; mas isso eu sei, são os piores. Os piores psicopatas têm sempre um sorriso de gente boa. E mentem na cara dura. Não respondeu. E eu que sou muito idiota perguntei de novo, insisti, ele acabou confessando. Dois metros e nove. Não são dois metros e quatro nem um metro e noventa e nove, são dois metros e nove centímetros, ou um pouco mais, quem sabe?

Eu ri sem graça e fui pegar um chope para mim e um para ele. “Um só”, ele disse, “quase não bebo”. Trouxe o chope, bebemos, conversamos sobre o trabalho dele, o meu trabalho, o que eu estava fazendo naquela cidade tão árida, os dois evitando temas difíceis. Se ele mente a altura quem sabe o que mais deve mentir? Em quem será que ele votou? Enquanto eu falava como se estivesse com meu piloto automático ligado, ia pensando pensando e já tinha concluído para mim mesmo que não ia rolar mais nada; ele bebeu o chope dele bem devagar, eu fui pegar outro para mim e tomei de um gole.

Levantei e disse, “bem, acho que ficamos por aqui”. Ele fez de novo uma cara de desamparado, de bom moço, levantou e me abraçou, aqueles braços enormes e eu tão pequenininho, me abraçou como quem está se despedindo, só que disse, aquela voz rouca vindo de cima como o anjo do Senhor, “a conversa está boa, vamos continuar conversando, pode ser na sua casa?”

Eu disse não, continuei no não e querendo me desvencilhar do abraço dele, mas aos poucos fui cedendo. Ainda objetei, “mas as nossas alturas, as diferenças de altura, você é quase um gigante e eu sou quase um pigmeu?”

Ele me abraçou mais forte ainda como se eu fosse um bebê, um filhote, um pequeno gatinho tímido e disse em meu ouvido, sem nem vergonha de sermos notados na praça de alimentação onde eu vinha tantas vezes, solitário, engolir rápido algum fast-food sem nem sentir o gosto, só para não morrer de fome – um gigante e um pigmeu aos abraços – ele sussurrou em meu ouvido enquanto me abraçava, sei que é um lugar-comum mas enfim, a vida é toda feita de lugares-comuns e tudo vale a pena se não é para jantar sozinho à noite em uma praça de alimentação de um shopping fuleiro – ele disse “na horizontal você vai ver que não tem mais nenhuma diferença de altura”. Fomos. Para minha casa. Ele não era um psicopata. E na verdade não tem mesmo diferença de altura, e as diferenças de tamanho, grossura, tudo o mais que os homens ficam procurando o tempo todo para comparar, tudo isso não significa nada, nada. Só o prazer tem algum significado, principalmente quando se está toda noite jantando sozinho na praça de alimentação de um shopping, quando se está morando completamente só em um universo tão árido.

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