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ESPECIAL: Ser modelo vivo

A figura humana é representada de alguma forma desde a Pré -História. Há registros de sua representação em cavernas ou ainda na estatueta “Vênus de Willendorf ”. Ainda que naquele tempo o homem não tenha se prestado ao papel de “fonte de observação”, seu corpo foi reproduzido para registro.

A pintura e a escultura foram as principais solicitadoras da exposição dos corpos das pessoas. É certo que esculturas e desenhos datados da Antiguidade Egípcia tenham sido esquematizados a partir da observação dos corpos, mas é no Renascimento que a atuação dos modelos da figura humana tornou-se tão evidente e atingiu sua excelência. Observar o corpo e as expressões de um modelo deixou de ser somente o conhecimento da anatomia em suas proporções ou a relação do corpo com o espaço. A relação indivíduo-coletivo se tornou plena de questionamentos que culminaram em compreensão e respeito pela singularidade humana, influenciando diretamente as obras através de um aprendizado mais complexo e necessário para a Arte.

O ESTADO DA NUDEZ: PROFISSÃO?

Pelado adj (particípio do verbo pelar): A que se tirou a pele ou o pelo, sem pelo; pobre, sem dinheiro.

Nu adj (lat. nudu): Despido; descoberto; desfolhado; desguarnecido; desarmado; sincero, não vestido.

A atividade do modelo vivo é feita por pessoas e motivos diversos. Há quem se expõe pelo amor à arte e entendimento do seu papel e importância. Há quem se expõe pelo tempo ocioso em que se encontra em sua profissão, pelo dinheiro, complemento de orçamento ou desemprego. Seja para testar a coragem, para adquirir um desprendimento do corpo e da inibição, seja pelo prazer da exibição ligada ao sexo ou voyeurismo, sem dúvida há quem deseja apenas conhecer o trabalho, tão mitificado pelo tabu da nudez e pela própria história da arte, já que pouco se conhece e se tem registro sobre o trabalho dos modelos observados pelos grandes artistas. Há os próprios artistas que o fazem pelo conhecimento de causa. Assim como, há os que se expõem como profissão escolhida e que é também pertencente às artes do corpo. Portanto, vemos posando atores, bailarinos, músicos, artistas circenses, pintores, desenhistas, escultores, modelos fotográficos e de passarela, praticantes de yoga, pilates, fisioterapeutas, ginastas, executivos, profissionais do sexo, entre tantos outros.

Bastidores de ensaio fotográfico com Franklin Maimone.

Bastidores de ensaio fotográfico com Franklin Maimone.

(Foto: Gustavo Sérvio)

Costumo dizer que ficamos pelados em casa, no banho, no sexo, na sauna, às vezes em praias, outras em piscinas. Costumo dizer que meus amigos ficam pelados, meus parentes ficam pelados, os alunos ficam pelados e os professores também ficam pelados. Nós modelos vivos não ficamos pelados enquanto nos apresentamos. Pelo menos não deveríamos, pois ficamos nus.

“Estar pelado” é uma expressão que carrega pré-conceitos e significados que não correspondem com o ato de posar nu. É estar passivo, é estar sem algo, é ser alvo de determinações de valor (menor, errado, vergonhoso, sexual, generalizado, descuidado, miserável, necessitado). Definitivamente a Arte não é feita com pessoas peladas.

Estar nu, enquanto modelo vivo é ser ativo e propositor de mediações e alterações. É estar sempre com algo a ser dito, a ser mostrado através do corpo. É colocarse não em uma, mas em infinitas posições de julgamentos. Ficamos nus para que a observação recaia sobre o corpo e para que as inúmeras consequências dela contaminem o espectador, sem a interferência das relações que a palavra “pelado” provoca.

Curso na área de saúde da Universidade Anhembi Morumbi.

Curso na área de saúde da Universidade Anhembi Morumbi.

Pintura: Kazuyo Yamada.

Geralmente as sessões de observação de modelo vivo acontecem com o profissional (ou iniciante) colocado nu ao centro de uma roda de pessoas que se propõem a retratá-lo. O modelo se coloca numa posição escolhida por ele ou, geralmente, pelos participantes e permanece em pausa (variando de 30 segundos a 20 minutos, podendo chegar a 40) enquanto os presentes realizam o registro artístico. As sessões costumam durar de 1 a 4 horas, onde, de forma passiva, o modelo aparentemente imóvel e em silêncio recebe os olhares dos artistas que registram aquilo que conseguem expressar através de suas mídias e conhecimentos técnicos. A interação entre modelo e artistas se limita, na maioria das vezes, aos resultados obtidos através dos desenhos, pinturas, esculturas e fotografias. Porém, é preciso também modificar esta maneira passiva da exposição do corpo, para que os modelos sejam sujeitos da exposição de seus corpos e saibam agir criativamente através da nudez.

É um trabalho que costuma estar velado ao conhecimento somente das pessoas que participam da experiência, sendo segregado e muitas vezes omitido pelos próprios profissionais e pessoas que o realizam, sem o entendimento de sua potência e importância. Mais do que exibidores de formas anatômicas e proporções oriundas de comparações geométricas, o modelo vivo é capaz de interferir na concepção de corpo daquele que o investiga atentamente com os olhos. Compartilha não apenas traços, espalhados pelas linhas vivas da matéria, mas inclusive suas referências e histórias. Além de observar as características físicas, o artista pode também se valer das expressões para adentrar níveis mais acentuados de seu estudo.

Foto: Gabriel Fox

Através do nu, esta busca por conhecimento se engrandece. Ele permite que o observador consiga acompanhar as linhas e volumes inerentes do corpo sem a interrupção de vestes, sem precisar supor ou imaginar como são as referidas partes, quando estão cobertas pelos tecidos. Isto propicia resultados mais próximos do real e mais distantes do ideal. Além disso, o contato visual com a realidade corpórea alheia, no instante da observação, costuma proporcionar também um enfrentamento de significados, questionamentos e comparações que podem contribuir com o estudo.

O interesse pela atividade do modelo vivo é muito comum por parecer ser um jeito fácil de ganhar dinheiro, já que, supostamente, “qualquer pessoa seria capaz de ficar parada sem fazer nada”. Porém, é preciso saber que esta profissão necessita urgentemente ser vista e valorizada como deveria, pois poucos são os que conseguem se sustentar dela. Ainda se acredita que tirar a roupa e se mostrar para os artistas é algo que se faz porque não se faz outra coisa ou por puro exibicionismo. Dessa forma, o pagamento pela exposição do corpo se torna relativo. Se o modelo realmente só está ali para mostrar sua anatomia, sem o conhecimento da abrangência de sua participação no processo criativo de quem o observa, costuma receber o equivalente à sua intenção. No entanto, se há uma proposta artística de interação maior, o valor pode ser dado considerando diversos fatores: tempo de exposição, quantidade e/ou dificuldade de poses, quantidade de alunos ou artistas presentes, o ambiente onde se está acontecendo a sessão, entre outras variáveis. Claro que o mercado se vale dos “iniciantes que querem ganhar um troco” (e dos exibicionistas ou aventureiros da profissão), o que costuma baixar o valor da atividade.

Foto: Lucas Marques

Experimentar este trabalho sem cobrar nada, ou por valores abaixo do justo, para adquirir alguma experiência e, posteriormente, ganhar algum dinheiro a partir dele sustenta o errado conceito do pelado sobre a nudez artística, empobrecendo os resultados artísticos advindos de sua observação. Tira oportunidades de trabalhos dos profissionais e prejudica a credibilidade do próprio ofício.

Há um preparo intelectual e físico para exercer a atividade que deve ser entendido não só por quem a realiza e por quem a contrata, mas também pelos professores, coordenadores e diretores dos cursos de arte. O ideal é que o modelo vivo profissional seja visto não só pela exposição de seu corpo, mas principalmente pelo papel disparador do processo criativo e de aprendizado artísticos que sua coparticipação ocasiona. Claro que as variantes citadas acima devem influenciar o custo, porém o que precisa ser considerada é a importância desta atividade na aprendizagem do artista. Observar tão atentamente um ser humano completamente disponível e com tudo o que é e o que tem para ser compartilhado, faz da exposição desta nudez um estado indispensável na Arte. Esta essencialidade dá ao modelo vivo a merecida e reconhecível categoria de, também, artista. Para realizar a arte de ser um modelo nu, é necessário estar com todas as peles presentes, como disse uma amiga outro dia, “mais vivas e presentes do que nunca, por isso, jamais pelados”.

CORPO MÓVEL E MUTANTE

Durante uma sessão, pede-se que, para que o registro seja o mais preciso possível, o modelo se mantenha completamente estático no espaço. Esta pausa serve para a adequação do corpo ao espaço enquanto o observador cria relações de direcionamento, estrutura, nivelamento, proporções, volume, luminosidade e sombreamento e, principalmente, de foco na expressão que o modelo propõe naquele exato momento, tempo e local da pose. Tudo está relacionado com o ambiente físico, psicológico e intelectual dos que estão presentes durante a observação, e por isso, vinculado a esse direcionamento imóvel do corpo em relação ao espaço.

No entanto, a pose é a consequência de um movimento, uma rápida situação congelada do corpo que se move em direção a um objetivo a partir de um estímulo. Quando se pára num determinado momento, a continuidade dos movimentos internos precisa ser cada vez mais intensa e verdadeira. Quando um artista observa o corpo ilusoriamente imóvel de seu modelo como fonte de estudo, a ilusão de que este corpo está parado é determinante e estimulante na proposição de sua arte.

Um corpo que propõe constantemente novos discursos ativando mediações, como é o corpo de um modelo vivo consciente, qualifica diferentemente sua observação. Seu movimento e pausa deixam de ser consequências de um estímulo e passam a ser o próprio estímulo, que se move através de pequenas pausas em direção a uma transformação, não mais a um “lugar”. Assim, qualquer iniciativa de imobilidade para a observação do espectador, se torna ilusória e também passível de alterações. Mover-se é o objeto de busca da manutenção da vida. Pausar-se neste trajeto permite-nos refletir sobre ela.

Foto: João Mussolin

Entende-se, de uma maneira superficial, que ter uma infinidade de corpos e biotipos distintos para o ensino da Arte é uma forma de ampliar o conhecimento e as referências visuais. Pessoas magras ou gordas, atléticas ou não, baixas ou altas, loiras ou morenas, negras ou amarelas, homem ou mulher, etc, é sem dúvida o ideal de diversidade e representatividade, caso o ensino seja somente anatômico. É preciso entender o modelo vivo para além da anatomia humana, pois isso é insuficiente e substituível. O ser humano é uma fonte incessante de expressão e isto é o que faz o exercício da observação ser tão necessário na Arte.

Em certa ocasião, uma aluna que me desenhava a meses em um curso universitário perguntou o que havia mudado em meu corpo, pois percebia algo diferente. Respondi que tudo era diferente, assim como em todas as aulas anteriores em que me observara. Era o seu olhar que havia mudado, sendo capaz de identificar as infinitas expressões que meu corpo (ou qualquer corpo com consciência amplificada) é capaz de comunicar.

Não há pose inteiramente imóvel, mesmo que o corpo esteja parado. Só há pausas, curtas ou longas, para que possamos rever nossos modos e conceitos e aprender com nossas observações. Somos repetidamente distintos a cada minuto. Um corpo nunca se repete, ainda que o modelo seja o menos criativo e profissional possível. Por isso a imobilidade e a diversidade devem ser compreendidas de uma forma mais complexa e dinâmica. Isso é importante não só pra quem realiza alguma atividade artística, como desenhar, fotografar e também interpretar personagens no palco ou dançar, mas para qualquer pessoa que tenha ou necessite o mínimo de sensibilidade para tratar com o outro, de relações profissionais às pessoais. E é para isso também que ali estamos nós modelos vivos.

E EU?

Analisado pelo artista minuciosamente, centímetro por centímetro, dos pés à cabeça, meu corpo no espaço e de minhas interferências neste espaço, eu penso: preciso me conhecer? Afinal, o que penso, o que sinto, como me vejo e como me expresso em determinada pose, reflete no que o artista capta e registra em seu trabalho. Então, permanecer imóvel e nu diante de pessoas é sem dúvida um exercício de autoconhecimento.

Todos sempre perguntam o que penso na hora. São momentos longos onde me vejo por dentro e também fora de mim, como se entrasse e saísse do meu próprio corpo.

Observo meus pés, onde estão, se estão devidamente apoiados e equilibradamente tonificados. Penso que eles são a base de tudo e se estou “plantado” por inteiro na superfície.

Vejo meus olhos. Onde se apoiam, para onde olham e o que veem, se estão brilhando ou cansados. Se consigo manter o olhar vivo num ponto escolhido. Como penso, como sinto, o que quero e para onde vou à próxima pose. Eles dizem muito. Vejo-me sempre num processo de interiorização e reflexão.

Foto: Ana Noda

Dos olhos abro o plano para o corpo todo. Vejo se a pausa condiz com o que pretendo expressar. Se braços, mãos, tronco e cabeça estão na mesma vibração do que propus quando me coloquei naquela posição. Os segundos que separam as pausas são suficientes para a proposição da posição seguinte, sem roteiro, lidando quase que totalmente com o improviso do momento, com a ação-reação do movimento, com a resposta criativa do corpo-mente. Existe um coeficiente de idealização versus realização que deve ser considerado. É difícil calculá-lo com precisão e, uma vez que você se posiciona de forma errada, ou seja, quando se erra neste cálculo, você terá de suportar a dor durante o tempo pré-estabelecido. E como é difícil e sofrido este erro! Nele você aprende a lidar com o insuportável, com seus limites de resistência física e psicológica.

O exercício do autoconhecimento requer observação e concentração, e o trabalho do modelo vivo também necessita de um ambiente propício à criação (com música adequada, por exemplo). Quaisquer ruídos e conversas paralelas dificultam a boa realização do trabalho. Essa concentração se inicia antes, com alongamentos e exercícios de respiração, e se estende até o último momento da exposição.

Ser um modelo vivo não é apenas despir-se e se colocar “imóvel” numa posição. É expor suas formas imperfeitas, suas buscas e desistências, certezas e incertezas, seu lado mais obscuro e velado pela moral. Por isso, não fico “pelado”, mas sim nu das vestimentas consequentes de uma sociedade impositiva e falso-moralista; dos exemplos copiados e referências tomadas como próprias, porém nunca questionadas. Quando estou nu diante de meus observadores, estou propício a uma evolução sempre infinita, baseada na coragem necessária para se viver a vida de forma verdadeira.

TESÃO DE VIVER

“Nenhum nu, ainda que abstrato, deve deixar de despertar no espectador algum vestígio de sentimento erótico, ainda que seja uma leve sombra – e se ele não o faz, então trata-se de arte ruim e de falsas morais.” (Kenneth Clark, Historiador de Arte)

O desejo sexual e a sua consumação podem ser talvez um dos únicos momentos da existência em que o homem se despe totalmente da moral. Creio que é aí que mora o real motivo de tanta preocupação com o desejo sexual alheio, já que entregues, nos sentimos nas mãos do outro, completamente desprotegidos. O erotismo se manifesta através da sexualidade, mas também em outras áreas do dia a dia, como, por exemplo, realizar o trabalho que ama com o mesmo brilho, com a mesma gana, sim, com o mesmo tesão. É a delícia de fazer o que gosta, provocando o bem e a alegria nas pessoas. Há no erótico uma porção de cobiça, sem dúvida, porém desvincule o objeto sexual dela e encontrará tantas outras formas de prazer que lhe justificará viver.

É neste ponto que o erotismo converge para a Arte. Quando o mestre historiador inglês, Sir Clark, pontua como ruim a arte que não desperta este sentimento é provavelmente sobre todas essas possibilidades de prazer a que ele se refere. E o nu tem esta propriedade, graças a Deus! É claro que, sem hipocrisia nenhuma, essa concupiscência da carne, essa lascívia, faz parte e, por favor, que continue sempre existindo; e ainda espero pelo dia em que nossa visão sobre o sexo deixe de ser este monstro arguidor, meticulosamente instaurado pela igreja.

Então, existe sim o teor erótico no trabalho do modelo vivo. O que eu faço quando percebo alguém me desejando enquanto me desenha? Transformo este desejo em novos estímulos e significações. Procuro dizer que usem o desejo em seus traços, em suas pinceladas, que o depositem nos movimentos de seus braços e todo o corpo enquanto me representam, que transponham a vontade de transar com o modelo para a argila ou para a lente da câmera, pois com certeza o resultado será surpreendente. Quando as coisas são feitas com tesão, o resultado é muito melhor, não é mesmo?

É claro que o sexo também passa por nossa cabeça, mas não é o que nos move para realizar este trabalho. Particularmente, jamais penso em fazer amor com nenhuma das pessoas que me observam, porque estou no exercício da minha profissão.

Penso que se nos colocamos diante do(s) observador(es) também com este único intuito, o de despertar desejos sexuais, esta atitude limita o processo criativo de quem nos observa e também a nós mesmos enquanto posamos. A interpretação erótica e sexual da nudez é apenas UMA possibilidade. Existem diversos outros sentimentos e sensações que o nu é capaz de despertar, senão, de conduzir à reflexão sobre alguns deles. Por isso, excentricamente falando, os artistas estarão à frente nas reflexões humanas, pois trabalhamos e produzimos aquilo que possibilita o mundo conhecer novas, outras e infinitas realidades.

CONCLUSÃO

Observar o outro para representá-lo artisticamente é tornar-se, então, um ser humano melhor, mais compreensivo das diferenças e particularidades humanas, reconhecendo no outro as habilidades e limitações próprias, aprendendo com o outro os sentimentos expressados através do corpo observado. É colocar-se à disposição do crescimento intelectual e humano, é propiciar-se ver no outro aquilo que não se permite descobrir em si mesmo. Esta prática, se realizada com frequência e planejada com modelos vivos profissionais que pensam o corpo artisticamente, transforma e enriquece o homem e o ensino artístico.

“Olhei no outro as buscas que deixei. Olhei no outro as falas que calei. Olhei no outro os mimos que guardei. Olhei no outro poemas que rasguei. Olhei no outro beijos que não dei. Olhei no outro rumos que voltei. Olhei no outro tudo aquilo que perdi e não recuperei. Olhei no outro paixões que recusei. Olhei no outro medos que não enfrentei. Olhei no outro desejos que neguei. Olhei no outro portões que fechei. Mas também olhei no outro o espelho em que me vi.” (J.Hollivier)

8=D

Juliano Hollivier é modelo vivo, ator e escritor de performances desde 2006. Une à exposição artística do corpo nu seu repertório sensorial, cênico, musical e poético, transformando as clássicas sessões de desenho de observação em verdadeiras performances artísticas.

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