Revista Científica da ESA: Desafios da Responsabilidade Civil Contemporânea - Ed. 43

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Revista Científica Virtual Edição 43 Ano 2023 RE S P ON SA B I LI DADE CON T E MP OR Â N EA C I V I L
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Sumário

10

A QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL NO BRASIL

Eduardo Lemos Barbosa

26

O ABANDONO AFETIVO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E NOS 20 ANOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Flávio Tartuce

39

RESPONSABILIDADE CIVIL POR ESTELIONATO SENTIMENTAL

Luciana Fernandes Berlini

47

O VELHO DANO MORAL E OS NOVOS DANOS – Um debate necessário

Eugênio Facchini Neto

64

DANOS EXTRAPATRIMONIAIS:

Existe uma maneira prática e eficaz de distingui-los?

Marcelo Marques Cabral

74

POR UMA NOVA RESPONSABILIDADE CIVIL NO AMBIENTE DIGITAL

Carolina Nobre

Caroline Amadori Cavet

85

RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL: CONTRATO DE SEGUROS COMO INSTRUMENTO DE SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS

Angélica Carlini

96

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO INCORPORADOR NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS INFORMAIS

Luiz Gustavo Lovato

108

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXTRAPATRIMONIAL NAS RELAÇÕES TRABALHISTAS: BREVE ANÁLISE DOS ARTIGOS DO TÍTULO II-A DA CLT

Rodolfo Pamplona Filho Epifanio A. Nunes

131

A INCONSTITUCIONAL LIMITAÇÃO DAS INDENIZAÇÕES POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Rodrigo Portela Gomes

José Paes de Santana

144

RECONFIGURANDO PARADIGMAS: POR UM NOVO LÉXICO ANTIDISCRIMINATÓRIO

Luana Pereira da Costa

Fabiano Machado da Rosa

154

RESPONSABILIDADE CIVIL NA CONSULTORIA E PARECERES JURÍDICOS

Rogéria Fagundes Dotti

162

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Rosana Chiavassa

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Edição 43 Ano 2023

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A QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL NO BRASIL

Palavras-chave

Indenização. Dano Moral. Quantificação. Jurisprudência brasileira.

Resumo

O presente estudo tem como tema a quantificação do dano moral no sistema jurídico brasileiro. Como questionamento, apresenta-se quais seriam os efeitos gerados pelos métodos e parâmetros adotados na jurisprudência brasileira? Dentre os objetivos, o geral será o de analisar o histórico, conceitos e fundamentos do dano moral. Ademais, nos objetivos específicos, o artigo tratará dos critérios para quantificar o instituto do dano moral, com enfoque na quantificação por arbitramento, que é o modelo majoritariamente utilizado no sistema jurídico pátrio. A pesquisa se fundamenta nas críticas realizadas pelo caráter subjetivo nas decisões prolatadas pelos magistrados. Com relação ao método adotado, trata-se do tipo qualitativo e exploratório e o procedimento de coleta será o bibliográfico, por meio do uso da metodologia de abordagem crítico-descritiva das leituras da doutrina, leis, jurisprudência e artigos sobre o tema. Por fim, conclui-se que em decorrência de parâmetros abertos que são aplicados na quantificação do dano moral, os julgadores não avaliam as particularidades de cada caso em concreto, restando críticas e polêmicas no que se refere a sua eficiência na reparação de dano moral.

Eduardo Lemos Barbosa

Advogado formado pela PUC/RS. Mestre em Direito pela UNISC/RS com dissertação apresentada na Universidade de Santiago de Compostela/ES. Presidente da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do CFOAB. Coordenador de Interiorização da ESA/NACIONAL. Presidente da Comissão Estadual de Responsabilidade Civil da OAB/RS. Vice-diretor da ESA/RS. Conselheiro Estadual da OAB/RS. Diretor do Departamento de Responsabilidade Civil do IARGS (Instituto dos Advogados do RS). Professor e palestrante. E-mail: eduardo@eduardobarbosaadv.com.br.

01

A pesquisa tem como tema central a quantificação do dano moral pelo sistema jurídico pátrio, e tem como finalidade responder quais são os efeitos gerados pelos métodos e parâmetros adotados na jurisprudência brasileira? Para isso, ao longo do estudo houve a apresentação de conceitos teóricos e cases práticos dos tribunais.

Dentre os objetivos que baseiam a pesquisa, o geral buscou analisar o histórico, os conceitos e os fundamentos do instituto do dano moral. Ainda, nos objetivos específicos, o artigo delineou a respeito dos critérios para quantificar o do dano moral, com enfoque nos modelos majoritariamente utilizados no sistema jurídico pátrio.

Pontua-se que a sustentação dos questionamentos sobre o tema se fundamenta em críticas quanto a forma que são baseadas as decisões pelos magistrados, considerando seu caráter aberto que pode se nortear por uma subjetividade pelo juiz, o que vem gerando valores baixos, na maioria dos processos, causando ineficácia nas reparações. Contudo, frente aos modelos já utilizados no sistema jurídico pátrio, verifica-se que são utilizados tabelamentos como forma de medir a indenização, o que gera ainda mais prejuízos às vítimas, visto que estas não recebem a indenização devida conforma as particularidades do caso.

No que se refere ao método adotado na pesquisa, trata-se do tipo qualitativo e exploratório e o procedimento de coleta será o bibliográfico, a partir do uso da metodologia de abordagem crítico-descritiva das leituras da doutrina, leis, jurisprudência e artigos sobre o tema. Como conclusão, tem-se que as polêmicas que envolvem as reparações de dano moral geram ainda mais injustiças com base nos parâmetros abertos utilizados pelos magistrados, que por vezes não permite ao julgador analisar cada caso sob uma

ótica mais particular, gerando efeitos negativos em decisões dos tribunais brasileiros. Por fim, levanta-se o absurdo tabelamento nas indenizações de reparação moral, na justiça do trabalho, que foi derrubado em julgamento ocorrido no mês de junho de 2023, pelo Superior Tribunal Federal.

2. A Evolução Histórica do Dano Moral e os Fundamentos Legais do Instituto

O instituto do dano moral se transformou ao longo da história, foi de tema questionável até sua íntegra aplicação nas legislações, consagrando-se como sendo o dano que ofende o íntimo, atinge os direitos da personalidade, honra, dignidade, entre outros. Posto isto, inicialmente, no primeiro tópico, apresenta-se o contexto histórico para que se aprofunde, posteriormente, aos fundamentos do objeto do presente estudo: o dano moral.

Partindo-se deste pressuposto, o linear histórico do dano moral se faz necessário, considerando a evolução que seus fundamentos passaram até os tempos atuais. Ademais, para que se tenha um panorama geral do assunto, e, se consiga ponderar a respeito de suas bases clássicas até a flexibilização dos pressupostos na contemporaneidade, se mostra cabível a contextualização histórica-evolutiva acerca da temática em análise.

Portanto, será respondido ao final do estudo, se os parâmetros utilizados para reparar o dano moral são eficientes, com enfoque nas decisões dos tribunais brasileiros, e quais seriam as propostas de soluções jurídicas para a problemática em exame.

2.1. O desenvolvimento histórico do dano moral

De plano, verifica-se que a noção de reparação de dano teve disposição no Código de Hamurabi, ao indicar que ofensas pessoais seriam então reparadas na mesma classe social, à custa de ofensas idênticas. Contudo, o citado Código não disciplinava sobre

11 1.
Introdução

a reparação do dano à custa de pagamento de um valor pecuniário, o que era conhecido como “olho por olho, dente por dente” (a Lei de Talião). 1

Frente a esse entendimento, tem-se que na ausência de um poder central, a vendeta era levada a efeito pela própria vítima ou pelo grupo ao qual pertencia. O passo sucessivo foi a Lei de Talião: olho por olho, dente por dente – típico da tradição bíblica -, a qual, não obstante o seu rigor, tratava –se indubitavelmente de um temperamento dos costumes primitivos, em função d proporcionalidade do castigo2

Pontua-se, ainda, que a Lei de Talião, foi repetida pelo Código de Hamurabi, na Mesopotâmia antiga, no início do segundo milênio antes de Cristo3. A partir desse ponto de vista histórico, assinala a doutrina que, com o Código Manu, da cultura hindu, houve uma evolução em relação ao Código de Hamurabi, tendo em vista a determinação no que se referia a aplicação de multa ou indenização a favor do lesado, sendo posteriormente substituída a pena corporal por uma pena pecuniária, fundamentada na ideia do pacifismo, momento em que se superou a ideia de vingança4

Neste rumo, a consagração da Lei das XII Tábuas encerra o período da vingança privada, mas ainda se verificava a priorização da punição do ofensor à reparação do ofendido. Logo, a mencionada Lei era a que definia sobre as penas devidas pelo réu, 1 STOLZE, Pablo; PAMPOLHA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

2 FARIAS, Cristiano Chaves. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2. ed., 2017, p. 55.

3 SILVA, Mauricio Tartuce. Reflexões sobre o dano social. Revista Âmbito Jurídico na Internet. Disponível em: https://ambitojuridico. com.br/cadernos/direito-civil/reflexoessobre-o-dano-social/. 2012. Acesso em: 11 jul. 2023.

4 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

mediante soma de dinheiro, para substituir a pena capital, tornando-se um ônus, isto é, uma obrigação pelo sistema, já que o adimplemento em moeda era eivado a morte.

Observa-se a preocupação de Hamurabi em conferir ao lesado uma reparação equivalente 5. Contudo, ainda se verificava a necessidade de uma legislação eficiente, lacuna preenchida pela Lex Aquilia. Neste passo, iniciou-se a elaboração do princípio orientador do dano, que mesmo sem possuir uma regra de conjunto, nos moldes do direito moderno, consagrou a jurisprudência clássica com relação à injúria e se baseou na fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana, que tomou da Lex Aquilia o seu nome característico6

No decorrer da história, adentrando-se ao período da modernidade, verifica-se que a culpa norteou muitas codificações que estavam vigorando na época, sendo a base central do Código de Napoleão de 1804. Registre-se que foi o code francês inclusive que influenciou o Código Civil brasileiro, de 1916, ao tratar sobre a reparação em favor da vítima em situações em que o lesante, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violasse direito ou causasse prejuízo a outrem, gerando-se o dever de reparar o dano.

Entretanto, tais os conceitos foram evoluindo em conjunto com a sociedade, principalmente com os reflexos da Segunda Guerra Mundial, momento em que a reparação do dano moral passou a ser aceita em diversos ordenamentos jurídicos. No sistema jurídico brasileiro, em 1830, o Código Criminal 7 já tratava do tema das indenizações, e no âmbito cível aos as -

5 REIS, Clayton. Dano moral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

6 WILSON Melo da Silva. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1962.

7 BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Código Criminal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 15 maio 2023.

12

pectos das organizações Filipinas, onde encontrava-se penas para infratores.

Pontua-se que o princípio da reparabilidade do dano moral no Brasil teve seu início severamente criticado, pela doutrina quanto pela jurisprudência, reflexo nas inúmeras decisões produzidas que eram manifestadamente contra a reparabilidade do dano moral8. A trajetória do dano moral no Brasil pode ser dividida em duas fases: antes, quando se discutia sobre o cabimento, denominada de fase do questionamento; depois, quando houve a superação de qualquer dúvida, na doutrina e jurisprudência, acerca de sua pertinência, conhecida como fase do consenso9

Nas palavras de Cavalieri Filho, o cenário “numa primeira fase negava-se ressarcibilidade ao dano moral sob fundamento de ser ele inestimável, uma vez que se chegava ao extremo de considerar imoral estabelecer um preço para dor”.10 Nota-se, portanto, que o dano moral foi extremamente questionado no sistema brasileiro, que buscava afastar sua aplicabilidade, sob o pretexto de estar se dando valor para o sofrimento, como se questões emocionais ou físicas não pudessem ser reparadas.

Assim, o que antes era tido como inconcebível passou a ser aceitável, e, de aceitável, passou a evidente. Se era difícil dimensionar o dano, em questão de poucos anos tornou-se impossível ignorá-lo. Se era imoral receber alguma remuneração pela dor sofrida, não era a dor que estava sendo paga, mas sim a vítima, lesada em sua esfera extrapatrimonial, quem merecia ser (re)compensada pecuniariamente, para assim desfrutar de alegrias e outros estados de bem-estar psicofísico, contrabalançando (rectius,

8 SILVA, Américo Luís Martins da. O dano moral e a sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999.

9 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2012.

10 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil.12. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 102.

abrandando) os efeitos que o dano causara em seu espírito11

Retomando às disposições do Código Civil de 2002, a modalidade de dano moral está na descrição do artigo 11, que dispõe sobre a proteção dos direitos à personalidade e no caput do artigo 12 em conjunto com o artigo 186 12. Dito isto, percebe-se que o dano moral está relacionado à violação direta ou indireta aos direitos da personalidade, e isso ocorre sempre que alguém sofre injusta agressão à sua estrutura psíquico-afetiva, diretamente aos direitos da personalidade, como a honra, o nome e a imagem. 13

Na fase do consenso, pela Súmula 37 do STJ “são cumuláveis as indenizações por dano material e moral oriundos do mesmo fato.”14, a divergência foi superada, em favor da possibilidade de cumulação. Ficam, a partir disto, todos de acordo que as normas constitucionais e a aplicação jurisprudencial resolviam em definitivo a questão.

Nota-se que a questão do dano moral se mostra sensível, considerando o ponto de se reparar um dano, que por vezes não é passível de ser mensurado por meio de valores, uma vez que como avaliar a perda de um ente familiar ou de uma parte do corpo, por exemplo. É com base nessas questões que envolvem o dano, que se observa a tendência de cada vez mais o legislador olhar direto para a vítima, conforme as peculiaridades do caso em concreto.

11 DE MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 147.

12 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 15 maio 2023.

13 SANTOS, Romualdo Baptista dos. Critérios para fixação da indenização por dano moral. 2009. Disponível em: https://www. yumpu.com/pt/document/read/13488989/criterios-para-fixacao-da-indenizacao-por-dano-. Acesso em: 11 maio 2023.

14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 37. Disponível em:https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index. php/sumstj/article/view/5223/5348. Acesso em: 20 abr. 2023.

13

Desta forma, o cabimento do dano moral passa a ser admitido sem reversas pela legislação, doutrina e jurisprudência. Ao delinear sobre o breve contexto histórico do dano moral até sua consagração no direito pátrio. Assim, o próximo tópico tem a finalidade de apresentar os elementos que formam o instituto, para que seja possível, no decorrer da pesquisa, analisar o tema em sua aplicação jurisprudencial.

2.2. Conceitos que formam o instituto do Dano Moral no Brasil

No que se refere a conceituação de dano moral, este tem sofrido transformações ao longo da história, considerando as diferentes teorias conhecidas. Dito isto, em uma definição em sentido amplo, tem-se o dano moral como uma lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela, abrindo-se para o magistrado um espaço para a ponderação de bens conforme as peculiaridades de cada case, conforme suas particularidades, ao permitir que a doutrina conceba critérios objetivos para orientação judicial face às inevitáveis tensões entre direitos fundamentais e ainda, oxigenar a cláusula geral do artigo 186 do Código Civil, tornando-a permeável aos influxos de consistentes argumentos que densificam normas constitucionais15.

Isto posto, entende-se que havendo dano, produzido injustamente na esfera alheia, surge a necessidade de reparação, como imposição natural da vida em sociedade, considerando que as investidas ilícitas ou antijurídicas no circuito de bens ou de valores alheios perturbam o fluxo tranquilo das relações sociais, exigindo, desta forma, que haja reações que o Direito aplique para a restauração do equilíbrio rompido16

15 ROSENVALD, Nelson. Por uma tipologia aberta dos danos extrapatrimoniais. Coluna Migalhas de Responsabilidade Civil. Publicado em 23 de abril de 2020. Disponível em: https://www. migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/325209/por-uma-tipologia-aberta-dos-danos-extrapatrimoniais. Acesso em: 18 jul. 2023.

16 BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade em

Percebe-se que as disposições da responsabilidade civil estão relacionadas à noção de que os indivíduos são responsáveis pelos fatos decorrentes da sua própria conduta, e que as ações devem ser praticadas sem causar prejuízos em desfavor dos indivíduos, pois se isso acontecer, existirá a necessidade de reparar os danos ocasionados. Em síntese, as pessoas têm o direito de não serem injustamente invadidas em suas esferas de interesses, por força de uma conduta individual, e caso isso aconteça, caberá a elas o direito de serem indenizadas na proporção do dano sofrido. 17

Inclusive, sobre relevância da responsabilidade civil na sociedade contemporânea, frisa-se que na atualidade, por buscar à restauração de um equilíbrio moral e patrimonial desfeito e à redistribuição da riqueza de conformidade com os ditames da justiça, sua tutela tem a finalidade de garantir a proteção de questões presentes e futuras de um sujeito determinado18

Nesses termos, o dano ou prejuízo são resultado da lesão a um interesse jurídico tutelado, causado por ação ou omissão de outrem. Assim, para que se configure o prejuízo, deverá existir uma ação em face dos direitos ou interesses personalíssimos, a exemplo daqueles representados pelos direitos da personalidade, especialmente o dano moral19. Dito isto, pontua-se que no direito atual, a responsabilidade civil tem a função de proteger a dignidade da pessoa humana, tendo proteção ao patrimônio material, mas

Face do Projeto de Código Civil. 8ª Ed. Rev. Aum. e Mod. Saraiva. São Paulo, 2015.

17 SANTOS, Romualdo Baptista dos. Critérios para fixação da indenização por dano moral. 2009. Disponível em: https://www. yumpu.com/pt/document/read/13488989/criterios-para-fixacao-da-indenizacao-por-dano-. Acesso em: 11 maio 2023.

18 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Saraiva, 2022.

19 STOLZE, Pablo; PAMPOLHA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

14

também garante tutela dos direitos da personalidade20

Registre-se que dentre os princípios da responsabilidade civil, o pilar central é de restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado. Ou seja, nos casos em que um prejuízo ou dano não reparado é um fator de inquietação social21.

No que tange ao dano moral, este se refere a privação ou a diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, tais como a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a honra e os demais sagrados afetos22. Assim, a Constituição Federal de 1988 visou garantir que os danos morais sejam aplicados no ordenamento jurídico, conforme dispõe o artigo 5, incisos V e X, ao indicar que os danos extrapatrimoniais são aqueles que atingem os direitos da personalidade, acarretando a vítima v.g., dor, sofrimento, humilhação, vexame.

Posto as conceituações que formam o instituto do dano moral, parte-se para o próximo objeto da pesquisa: como se quantifica o dano moral no Brasil.

3. A Quantificação do Dano Moral no Sistema Jurídico Brasileiro

Conforme se apresentou acima, não se busca “medir a dor”, pois se tem um caráter estritamente subjetivo do que pode ser sofrimento para uma pessoa e não ser para outra. Assim, dentre as particularidades do dano moral, encontra-se as formas de se quantificar o instituto dentro do ordenamento pátrio. Isto

20 SANTOS, Romualdo Baptista dos. Critérios para fixação da indenização por dano moral. 2009. Disponível em: https://www. yumpu.com/pt/document/read/13488989/criterios-para-fixacao-da-indenizacao-por-dano-. Acesso em: 11 maio 2023.

21 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021.

22 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 3ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

posto, a predeterminação, legal ou jurisprudencial, do valor da indenização que é aplicando pelo juiz se torna a regra a cada caso concreto, sendo observado o limite do valor estabelecido em cada situação, cabendo ao julgador a competência para fixar o quantum subjetivamente correspondente à reparação/compensação da lesão23

Passa-se no presente tópico delinear sobre os itens que são utilizados para quantificar o dano moral.

3.1. Os critérios utilizados para a quantificação do dano moral

De pronto, indica-se que dentre os fundamentos para a quantificação do dano moral estão as condições econômicas, sociais e pessoais das partes. Ademais, deve-se considerar também como agravante o proveito obtido pelo lesante com a prática do ato ilícito, ou ainda, a ausência de eventual vantagem, o que não o isenta da obrigação de reparar o dano causado ao ofendido.24

Neste passo, leva-se em consideração

a valoração dos danos morais, que o nosso sistema confia inteiramente ao magistrado, reveste-se de especial dificuldade, e o prudente arbítrio do julgador, seu equilíbrio e moderação, têm tido, nessa matéria, o mais amplo espaço de atuação. Há, no entanto, alguns critérios objetivos que normalmente são levados em conta. Com poucas variações, costumam ser genericamente mencionados os seguintes: i) o grau de culpa e a intensidade do dolo do ofensor; ii) a situação econômica do ofensor; iii) a natureza, a gravidade e a repercussão da ofensa; iv) as condições econômicas da vítima; v) a inten-

23 STOLZE, Pablo; PAMPOLHA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

24 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Saraiva, 2022.

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sidade de seu sofrimento25

Ou seja,

embora possam ser estabelecidos padrões ou faixas indenizatórias para algumas classes de danos, a indenização por dano moral representa um estudo particular de cada vítima e de cada ofensor envolvidos, estados sociais, emocionais, culturais, psicológicos, comportamentais, traduzidos por vivências, as mais diversas. Os valores arbitrados deverão ser então individuais, não podendo ser admitidos padrões de comportamento em pessoas diferentes, pois cada ser humano é um universo único26

Soma-se ainda o proveito obtido pelo lesante com a prática do ato ilícito, tendo em vista a ausência de eventual vantagem, mas que não o isenta da obrigação de reparar o dano causado ao ofendido. Desta forma, são avaliadas também a notoriedade e fama dos fatores relevantes na determinação da reparação, com base no tamanho da repercussão do dano moral, influindo na exacerbação do quantum da indenização27.

Leva-se também em análise a valoração da gravidade da falta cometida pelo ofensor, já que a conduta do agente tem relevância na indenização como um caráter de sanção exemplar. Ainda, em consideração também a intensidade da lesão no que se refere o padrão geral da intensidade da dor, isto é, quanto maior o pesar experimentado pelo sujeito ativo, maior o valor da indenização. E assim poderá o julgador extremar ou hierarquizar duas ou mais situações dolorosas, pela sua própria experiência de vida28

25 DE MORAES, Maria Celina Bondin. Conceito, função e quantificação do dano moral. Revista IBERC, v. 1, 2019, p. 7.

26 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021, p. 322.

27 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

28 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. vol. 2. São Paulo:

Verifica-se que o dano moral, a partir do que se apresentou no estudo, tem caráter exclusivamente reparatório e sua ponderação para avaliar a indenização deve observar o grau de repercussão ocasionado na esfera ideal do ofendido, tais como os reflexos sociais e pessoais, a possibilidade de superação física ou psicológica e a extensão e duração dos efeitos da ofensa29

Com base no princípio de justiça, deve ser imposto àquele que causa um dano a outrem o dever de indenizá-lo integralmente, responsabilizando-se os indivíduos pelos atos ilícitos praticados em afronta ao conjunto de interesses e direitos imateriais da vítima30. Assim, os critérios utilizados para quantificar o dano moral e ao se observar a natureza jurídica do instituto, que tem função de reparar como forma de compensar o dano suportado, passa-se a discutir a respeito de um dos métodos que embasam a fixação do montante condenatório pela doutrina brasileira: o arbitramento.

3.2.

O arbitramento como forma da quantificação do dano moral no Brasil

Baseando-se no foco do presente estudo, qual seja, como a quantificação do dano moral reflete nas decisões das instâncias superiores, parte-se para a análise de uma das formas de se quantificar o dano moral, o arbitramento. A concepção central do arbitramento tem como prevalência o livre-arbítrio do magistrado – arbitrium boni viri, isto é, tem a função de transferir para o juiz o poder de aferir, com o seu livre convencimento a extensão da lesão e o valor da reparação correspondente. Neste método cabe ao juiz, usando de parâmetros subjetivos, fixar a pena

Saraiva, 2012.

29 CIANCI, Mirna. O Valor da Reparação Moral. São Paulo: Saraiva, 2013.

30 SANTANA, Héctor Valverde. A fixação do valor da indenização por dano moral. Revista de Informação Legislativa, p. 21-40, 2007.

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condenatória de réus processados criminalmente, bem como arbitra o quantum indenizatório nas ações de danos patrimoniais31

No Brasil a solução genérica em que o ordenamento jurídico se ampara é o arbítrio do juiz para quantificar o dano moral, sem qualquer tabela ou sequer um limite preestabelecido. Por meio dessa aplicação, o juiz por ser quem tem contato direto com as partes, as ouve, quem determina as provas a serem produzidas e acompanha sua produção, é quem seria então o mais indicado para valorar a indenização32

Em uma visão mais prática do tema, questiona-se

(...) como deverá proceder o juiz? Diz-se, comumente, que deve seguir determinados critérios preestabelecidos, na doutrina e na própria jurisprudência, os quais deverão nortear a complexíssima tarefa de quantificar, nos seus mais diversos aspectos, os danos à pessoa humana. Por outro lado, e mais relevante, os critérios de avaliação usualmente aceitos, embora não sejam critérios legais, apresentam-se como lógicos, devendo, porém, ser sempre explicitados, de modo a fundamentar adequadamente a decisão e, assim, garantir o controle da racionalidade da sentença. Esta é a linha que separa o arbitramento da arbitrariedade33

Cabe mencionar que são diversas as críticas em face do uso de um sistema aberto para quantificar o dano moral, tendo pontos que devem ser discutidos, considerando não se tratar de um sistema perfeito, visto que não é composto nos moldes de uma lógica matemática apoiado exclusivamente em procedimento cartesiano. Dito em outras palavras, o sistema aberto de fixação do valor do dano moral possui 31 REIS, Clayton. Dano moral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 32 ALVES, Lorena Sanches da Costa Maia; GUIMARÃES, Luciana Aparecida. Dano moral e a problemática que envolve a sua quantificação. Revista de Ciências Jurídicas e Sociais. v.1, n.1, 2011. 33 DE MORAES, Maria Celina Bondin. Conceito, função e quantificação do dano moral. Revista IBERC, v. 1, 2019, p. 17.

questões que não garantem uma aplicação plena, pois leva em consideração uma intensa atividade subjetiva do juiz, porém, tendo em vista a peculiaridade de cada caso, utilizar uma métrica exata poderia então desabrigar uma parcela das vítimas que utilizam do dano moral para buscar sua reparação34

Uma importante vantagem desta perspectiva diz respeito ao fato de que ela, embora por vias oblíquas, procura melhor elaborar o enorme problema, um dos maiores enfrentados no Direito Civil, das disparidades e contradições teleológicas nos valores indenizatórios de danos morais que se assemelham. Se cada caso é um caso, como se tenta aqui demonstrar, não se terá por objetivo atingir qualquer tipo de “tabelamento”, o que não deixa de ser uma significativa tomada de posição filosófica, tratando-se de bens dessa natureza. O reconhecimento devido a cada pessoa humana, impede que se adote qualquer método ou critério, matemático ou mecânico, válido para todos. Cada perda e cada dano deverão ser avaliados separadamente, valorizados em relação à pessoa da vítima (pessoalmente, quase se poderia dizer), de modo que de nada servirá produzir uma tabela, por assim dizer fixa. Claro está que, considerando todas as circunstâncias do caso concreto, tampouco será possível afastar-se demais de algum valor médio, que será resultado da repetição de valores atribuídos a casos semelhantes, controlados pela instância superior35

Frete a isso, percebe-se que ao magistrado cabe um raciocínio que não busque um parâmetro objetivo definitivo, considerando que inexiste forma matemática de se solucionar questões que envolvam sentimentos humanos. Portanto, a ampla liberdade do juiz para fixar o quantum indenizatório pode ser 34 SANTANA, Héctor Valverde. A fixação do valor da indenização por dano moral. Revista de Informação Legislativa, p. 21-40, 2007.

35 DE MORAES, Maria Celina Bondin. Conceito, função e quantificação do dano moral. Revista IBERC, v. 1, 2019, p. 19.

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considerado insatisfatório ou excessivo, momento em que as partes poderão expor sua irresignação a uma instância superior, que irá então revisar a decisão prolatada, por força do duplo (quiçá triplo ou quádruplo, se contarmos a instância extraordinária) grau de jurisdição36

Com base no que se apresentou até aqui, verifica-se que o modo de arbitrar o dano moral recebe críticas e elogios, o que no próximo tópico poderá ser ponderado ao se observar seus efeitos na jurisprudência pátria.

4. Os Parâmetros Utilizados Pelos Tribunais na Quantificação do Dano Moral

Superada a apresentação sobre o dano moral e sua quantificação no sistema brasileiro, dá-se seguimento a principal questão objeto deste trabalho: a aplicação do instituto na jurisprudência dos tribunais e sua eficácia.

4.1. O uso do método bifásico pelo Superior Tribunal de Justiça

Conforme se compreendeu no tópico anterior, o arbitramento tem sido utilizado como forma de quantificar o dano moral, consagrando-se a partir disso o critério bifásico no Recurso Especial n. 959.78060 37 , ao ser disciplinado pelo Ministro Paulo de Tarso fundamentos utilizados em um arbitramento equitativo, que passou a ser usado pelo Superior Tribunal de Justiça para definir o montante das indenizações por danos morais.

36 STOLZE, Pablo; PAMPOLHA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

37 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (3. Turma). Recurso Especial. REsp 959780 ES 2007/0055491-9.1. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, 26 de abril de 2011. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_ registro=200700554919&dt_publicacao=06/05/2011. Acesso em: 01 jun. 2023.

Cabe citar que o Min. Paulo de Tarso Sanseverino não realiza críticas os critérios consolidados pelo Superior Tribunal de Justiça, mas os incorpora em seu método. Dito isto, o método considera tanto os precedentes jurisprudenciais quanto as particularidades do caso concreto, o que impede um tabelamento jurisprudencial rígido, contrário ao princípio da reparação integral38

Neste modelo, a primeira fase deve ser arbitrado um valor base da indenização, com base no interesse jurídico lesado e o entendimento jurisprudencial com temas semelhantes. Ademais, na segunda fase é fixada a indenização de forma definitiva, ao ser levando em consideração as particularidades de cada caso. No ponto prático, tem-se entendimentos distintos com base em cada decisão. Senão vejamos:

O Superior Tribunal de Justiça ao utilizar dos critérios e o reconhecimento, entende que existe dever de reparar por dano moral no presente caso abaixo colacionado:

(...) 1. O entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça é de que o valor estabelecido pelas instâncias ordinárias a título de indenização por danos morais pode ser revisto nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que se evidencia no presente caso. 2. No caso, a indenização fixada, a título de danos morais, no valor de R$ 10.000,00, atende os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, evitando o indesejado enriquecimento sem causa do autor da ação indenizatória, sem, contudo, ignorar o caráter preventivo e pedagógico inerente ao instituto da responsabilidade civil, notadamente diante das peculiaridades do caso, tais como o fato de que a empresa, sem nenhuma justificativa,

38 COUTO, Igor Costa; SILVA, Isaura Salgado. Os critérios quantitativos do dano moral segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Orientação da Prof. Maria Celina Bodin de Moraes. Departamento de Direito da PUC/RJ, 2011.

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obrigou “os passageiros a permanecerem dentro da aeronave após o pouso por cerca de quatro horas, principalmente no caso dos autores, que levavam um bebê de 9 nove meses”. 3. Agravo regimental não provido39.

Já em outra decisão, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por não conceder a indenização por não verificar os elementos necessários do dano moral:

(...) 3. O propósito recursal é definir se a companhia aérea recorrida deve ser condenada a compensar os danos morais supostamente sofridos pelo recorrente, em razão de cancelamento de voo doméstico. 4. Na específica hipótese de atraso ou cancelamento de voo operado por companhia aérea, não se vislumbra que o dano moral possa ser presumido em decorrência da mera demora e eventual desconforto, aflição e transtornos suportados pelo passageiro. Isso porque vários outros fatores devem ser considerados a fim de que se possa investigar acerca da real ocorrência do dano moral, exigindo-se, por conseguinte, a prova, por parte do passageiro, da lesão extrapatrimonial sofrida. 5. Sem dúvida, as circunstâncias que envolvem o caso concreto servirão de baliza para a possível comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à

39 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (4. Turma). Agravo Regimental no Recurso Especial. AgRg no REsp 742860 RJ 2015/0168820-2. Relator: Ministro Raul Araújo. Brasília, 01 de setembro de 2015. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/ revista/inteiroteor/?num_registro=201501688202&dt_publicacao=24/09/2015. Acesso em: 07 jun. 2023.

ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros. 6. Na hipótese, não foi invocado nenhum fato extraordinário que tenha ofendido o âmago da personalidade do recorrente. Via de consequência, não há como se falar em abalo moral indenizável. 7. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários40

Nota-se, de plano, que em dois casos semelhantes, qual seja, atraso de voo, o STJ ponderou as circunstâncias subjetivas do caso, amparando-se nos elementos que apoiam a quantificação do dano moral, ao disciplinar quais seriam os fatos presentes nas lesões levantadas pelos consumidores e nas ações tomadas pelas empresas. Assim, para que seja possível reparar o dano moral, além das provas que devem ser robustas para que o magistrado possa decidir com o maior número de informações possível, deve-se também levar em conta a participação de fatos extraordinários, o que como caráter subjetivo pode alterar conforme interpretação do julgador.

Fundamentando-se nas decisões acima, percebe-se que o dever de reparar só ocorre quando alguém pratica ato ilícito e causa dano a outrem, razão que gera a obrigação de indenizar, que pressupõe o dano e sem ele não há indenização devida41. Ademais disso, o conceito de dano moral não necessariamente se vincula somente a sentimentos ou sofrimentos, que são aspectos subjetivos, intangíveis e inaveriguáveis, e que variam, por definição e de 40 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (3. Turma). Recurso Especial. REsp 1796716 / MG 2018/0166098-4. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 27 de agosto de 2019. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201801660984&dt_publicacao=29/08/2019. Acesso em: 03 jun. 2023.

41 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil.12. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

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modo significativo, de pessoa para pessoa, devendo conectar-se as noções jurídicas consolidadas, construídas e tuteladas pelo ordenamento jurídico, que visam garantir os direitos fundamentais de cada pessoa humana42

Verifica-se que nos casos em que não a concordância sobre o arbitramento do juiz, o Egrégio Tribunal assim dispõe: “o valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ com o escopo de atender a sua dupla função: reparar o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o ofensor para que não volte a reincidir43.”

Sabe que toda decisão do Superior Tribunal de Justiça serve como corretivo da decisão impugnada e, também, é um exemplo a ser seguido pelos demais tribunais, uma vez que se busca, a partir disso, uniformizar a jurisprudência brasileira. Desta forma, a Corte tem a palavra final nos valores indenizatórios do dano moral ao ter a tarefa de consolidá-los44. Observa-se, portanto, quando um prejuízo ou dano não reparado, torna-se um fator de inquietação social e os ordenamentos contemporâneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcançando novos horizontes, com o objetivo de diminuir danos irressarcidos45

Para que pondere ao final os questionamentos apresentados na presente pesquisa, o último tópico irá tratar sobre pontos polêmicos que envolvem a quantificação do dano moral em recente decisão do

42 DE MORAES, Maria Celina Bondin. Conceito, função e quantificação do dano moral. Revista IBERC, v. 1, 2019.

43 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental na suspensão de liminar e de sentença. AgRg nº 1.887-DF (2014/0096266-3). Relator: Ministro Presidente do STJ. Brasília, 11 de julho de 2014. Disponível em . Acesso em: 8 jun. de 2023.

44 COUTO, Igor Costa; SILVA, Isaura Salgado. Os critérios quantitativos do dano moral segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Orientação da Prof. Maria Celina Bodin de Moraes. Departamento de Direito da PUC/RJ, 2011.

45 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021.

STF e o tabelamento do dano moral na esfera trabalhista.

4.2. A polêmica da quantificação do dano moral na decisão do Superior Tribunal Federal

Observou-se, ao longo do estudo, que a reparação do dano moral corresponde a singularidade de cada caso, o que torna necessário inserir o caso (rectius, o problema) no sistema46. Partindo-se desse entendimento, questões como a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017) ao introduzir na CLT os artigos 223A e 223-G, parágrafos 1º, incisos I, II, III e IV, 2º e 3º, disciplinou sobre a utilização como parâmetro para a indenização o último salário contratual do empregado e classificam as ofensas com base na gravidade do dano causado (leve, média, grave ou gravíssima). Neste passo, ao se nortear pelo salário, parte-se para um tabelamento do dano, o que se verifica inconstitucional de pleno direito47.

O tema foi questionado no STF em três Ações Diretas de Inconstitucionalidade: ADI 6050, ADI 6069 e ADI 6082, sendo um dos principais argumentos a violação do princípio da isonomia, uma vez que funções distintas da mesma empresa que sofressem um mesmo dano, receberiam valores diferentes a título de indenizção, considerando seus salários para quantificação. Frente a isso, em recente decisão, O Supremo Tribunal Federal decidiu que o tabelamento das indenizações por dano extrapatrimonial ou danos morais trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) deverá observar o critério orientador de fundamentação da decisão judicial, o que não impede a fixação de condenação

46 DE MORAES, Maria Celina Bondin. Conceito, função e quantificação do dano moral. Revista IBERC, v. 1, 2019.

47 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Tabelamento de dano moral na CLT não é teto para indenizações, decide STF. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/tabelamento-de-dano-moral-na-clt-n%C3%A3o-%C3%A9-teto-para-indeniza%C3%A7%C3%B5es-decide-stf

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em quantia superior, desde que devidamente motivada.

Nota-se, no que se refere a citada decisão, o relator Gilmar Mendes afirmou que a jurisprudência do STF já assentou a inconstitucionalidade do tabelamento do dano moral, por entender que o julgador se tornaria um mero aplicador da norma, o que deve levantar diversos pontos de discussão quando se iniciar as aplicações de reparação de dano moral. Portanto, pontua-se que o tabelamento que a Reforma Trabalhista impôs em seu texto, gerou a possibilidade de um tratamento desigual de lesões por meio da renda auferida pelo trabalhador, o que limita a liberdade do juiz de analisar as peculiaridades do caso concreto.48

Ainda com base em decisões envoltas de aparência de justiça, não parece razoável existir uma “tabela”, posto que são tantos parâmetros a serem observados no momento de fixar uma indenização em danos morais, que ao se tarifar um dano e uma condenação seria inviável, para dizer o mínimo. Desta forma, verifica-se que existem diversas demandas reparatórias semelhantes que são julgadas pelo mesmo órgão de forma tão discrepante, não se podendo padronizar o dano moral, sob pena de se lesar ainda mais a vítima.

Percebe-se tal lesão em casos em que indenizações em casos de familiares de vítimas fatais de acidente rodoviário em situações semelhantes que oscilavam entre o equivalente a 200 e 625 salários-mínimos, sendo razoável que se ajuste no caso concreto, considerando que as indenizações são estipuladas inicialmente em 1.500 salários-mínimos e reduzidas em segunda instância para 142 salá. Acesso em: 20 jul. 2023.

48 RAYOL, Rayane Araújo Castelo Branco; GOMES, Ana Virginia Moreira. O tabelamento do dano extrapatrimonial na Lei 13.467/2017 e a mitigação da função preventiva de sua reparação. Revista de Direito do Trabalho, vol. 203, 2019, p. 97 – 124.

rios49. Frente a isso, cabe ao magistrado a tarefa de dimensionar a indenização de forma eficiente, atentando-se as particularidades de cada caso, afastando qualquer consenso subjetivo das decisões, com a finalidade de evitar a padronização de julgados através de tabelas.

Neste rumo, se a Constituição protege a dignidade da pessoa humana, caberá a indenização compensar a vítima, da forma mais completa possível. Observou-se ao longo da pesquisa que o livre arbitramento como regra geral, tem sido considerado o que menos problemas traz e o que mais justiça e segurança oferece, atento que está para todas as peculiaridades do caso concreto, o que permite que ele se utilize da equidade e aja com prudência e equilíbrio50.

4.3. Fixação da indenização em Fa ‘Punitive Damages’

Como afirma Clayton Reis51, os países anglos saxões são conhecidos pelo pragmatismo, e as decisões judiciais, estão fundadas em jurisprudência. Enquanto o civil law, baseia-se em um direito positivado, rígido, onde a lei, é a principal fonte.

E sendo assim, no common law, a reparação de danos extrapatrimoniais é, em geral, ampla geral e irrestrita. E assim, o instituto do ‘punitive damages’ tem por finalidade majorar o valor das indenizações como forma de punição, de modo a desestimular as condutas ofensivas e evitar que outras pessoas sejam de igual modo, lesadas, trata-se de uma sanção civil aplicada pelo magistrado.

49 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. (3 Turma). Recurso Especial. REsp 710.879 - MG (2004/0177882-4). Relatora: Nancy Andrighi. Brasília, 01 de junho de 2006.

50 DE MORAES, Maria Celina Bondin. Conceito, função e quantificação do dano moral. Revista IBERC, v. 1, 2019.

51 REIS, Clayton. Avaliação do dano moral. São Paulo: Forense, 1999.

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Com a aplicação do  punitive damages pelos nossos Tribunais, é possível se verificar que está sendo utilizado algo próximo do paradigma anglo saxão, mas não ainda ao ponto de efetivamente equiparar ao caráter punitivo e pedagógico o que nos deixa o seguinte questionamento: será que os valores arbitrados, são realmente suficientes para inibir reiteradas condutas lesivas das grandes empresas?

Cumpre aos Julgadores, data a máxima vênia, acerca da efetiva aplicação deste à luz do ordenamento jurídico pátrio, consubstanciado na perda emocional dos autores ao arbitramento a título de punição, pois enquanto o caráter compensatório gira em torno do ofendido, o punitivo está ligado à punição e desestimulo aos agentes causadores dos danos. Pois, os mesmos sabem, da demora e do valor baixo das indenizações no Brasil, e assim, não procuram evitar que as tragédias aconteçam.

No Brasil, existem casos pontuais de aplicação do punive damage. Como segue:

INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. QUAN-

TUM FIXADO. O Tribunal Regional, ao reduzir a indenização por dano moral em 75% do que fora fixado na sentença de primeiro grau, registrou que “consoante os fundamentos exarados no item 2 alhures, é evidente que o nexo se deu não por causalidade, mas apenas por concausalidade” e que “houve contribuição, mas não causa primária efetiva”, fazendo referência ao biótipo e a fatores genéticos do trabalhador e, ainda, ressaltando de ele ser “confesso quanto à demora em procurar ajuda médica, deixando por meses de reportar-se à demandada acerca dos problemas, emergindo daí, comportamento negligente quanto à sua delicada situação de saúde, que pode ter contribuído ainda mais para o referido agravamento das lesões”. Por outro lado, ao analisar o capítulo a respeito da pensão mensal, o Regional afirmou que “as condições de trabalho a que esteve exposto o trabalhador por longos anos

atuaram como certeira concausa para o agravamento da situação” e que “pouco importa se obeso o trabalhador, porquanto a reclamada ignorou tal fato ao submetê-lo à prática das tarefas supra descritas, e, como bem consignado nos trabalhos periciais, tratava-se de função dotada de alto risco ergonômico”. Em que pese ao reclamante ter demorado a acionar a empresa após o acidente de trabalho, observa-se que a reclamada não cumpriu com o seu dever de zelar pela incolumidade física do trabalhador. Nesse esteio, vale recordar que o fim precípuo da indenização por dano moral não é apenas compensar o sofrimento da vítima, mas, também, punir de forma pedagógica o infrator (punitive damages), desestimulando a reiteração de práticas consideradas abusivas. Dentro desse contexto, é de se concluir que o valor arbitrado pelo TRT não atende ao critério pedagógico, uma vez que não foi considerado o porte econômico da reclamada e o referido valor não inibe que ela continue a descuidar da ergonomia de seus empregados no ambiente laboral. Consoante a jurisprudência do TST, a minoração ou majoração do quantum indenizatório a título de danos morais só é possível quando o montante fixado na origem mostra-se fora dos padrões da proporcionalidade e da razoabilidade, o que se verifica no caso. Recurso de revista conhecido e provido52

Portanto, a aplicação do referido instituto é plenamente viável, na opinião deste autor, a fim de punir de forma severa, os agentes causadores, que de forma reiterada, geram danos aos trabalhadores, ou consumidores. E que tal, valor se destine aos fundos de amparo ao trabalhador, ou instituições similares.

Considerações Finais

Após o estudo sobre o do dano moral no ordenamento jurídico pátrio, com enfoque na jurisprudência brasileira, foi possível constatar que o instituto evoluiu ao longo da história, que de tema questionável se tornou plenamente aplicável na legislação 52 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista. Processo: RR - 1416-34.2010.5.15.0026. Data de Julgamento: 25/10/2017. Relatora Ministra: Maria Helena Mallmann, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/10/2017.

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vigente. Neste passo, o dano moral, após sua consagração, tornou-se a forma de garantir que a lesão sofrida pela vítima, que ofende o íntimo, atinge os direitos da personalidade, honra, dignidade, entre outros possa ser reparado, partindo-se do “olho por olho, dente por dente” até a chegada do dano in re ipsa. Desta forma, o cabimento do dano moral passou a atender os casos em que se lesa injustamente a esfera alheia, sendo dever do Direito restaurar o equilíbrio rompido pelo lesante.

Registre-se que não se busca “medir a dor” da vítima, considerando o caráter estritamente subjetivo do que pode ser sofrimento para uma pessoa e não ser para outra. Dito isto, dentre as particularidades do dano moral, encontra-se as formas de se quantificar o instituto dentro do ordenamento pátrio, que se baseia no arbitramento dos parâmetros aplicados pelo juiz conforme cada caso concreto, sendo

observado o limite do valor estabelecido em cada situação, cabendo ao julgador a competência para fixar o quantum subjetivamente correspondente à reparação/compensação da lesão.

Pontua-se, ainda, que as negativas para o dano moral cessaram, mas passaram a recair sobre a forma de se quantificar a indenização, pois para parte da doutrina os critérios para a quantificação da indenização deveriam ser mais objetivos, e menos abertos como é o arbitramento, contudo, ponderar sobre o sofrimento, dor, exposição de imagem, de um indivíduo, carece de maior avaliação por parte do julgador, uma vez que inexiste garantia que cada caso seja ponderado com base nas suas particularidades, ou que não haja qualquer tabelamento para o dano, sendo essa incerteza a realidade de diversos tribunais brasileiros, incluindo as instâncias superiores.

Ademais, no que se refere as soluções adotadas pelos magistrados, a adoção de critérios e mecanismos podem ser base para que se combata a grande “indústria do dano moral” instaurada, que limita danos e acaba por desabrigar vítimas por entender que se tornou uma grande banalização de danos, o que gera uma insegurança para os que objetivam restaurar seu direito atingido por outrem. O que se efetiva é que não se tabele e configure tudo como “mero aborrecimento do cotidiano”, afinal de contas, o que distinguiria o mero aborrecimento de um grande dano?

Portanto, não cabe ao advogado ou a parte indicar o valor devido ao dano, tampouco um cálculo matemático pode ser capaz de apontar uma reparação da perda de um pai, o atraso de um voo ou algum dano que sequer possui precedente, uma vez que o Direito nunca foi sobre objetividade. Entretanto, mesmo que já sejam utilizados critérios qualitativos por parte da doutrina e jurisprudência, registre-se a necessidade de novos parâmetros para que possível que as normas acompanhem também as mudanças da própria sociedade, que não é engessada, razão pela qual, o Direito também não deve ser.

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O ABANDONO AFETIVO NA JURISPRUDÊNCIA

BRASILEIRA E NOS 20 ANOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 1

Palavras-chave

Direito Civil. Responsabilidade civil. Direito de Família. Abandono afetivo.

Resumo

O presente artigo traz análise sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo, e sua aplicação pela jurisprudência brasileira, nos vinte anos de vigência do Código Civil de 2002. Tendo como ponto de partida notório julgado do então Tribunal de Alçada de Minas Gerais, o texto aborda posições doutrinárias, entendimentos de outras Cortes Estaduais e também do Superior Tribunal de Justiça, em temas como o reconhecimento da reparação civil nesses casos, o prazo prescricional incidente e o início ou termo a quo desse prazo.

1Artigo escrito a convite dos Desembargadores Renato Dresch e Leonardo Beraldo, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, para obra organizada pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, em comemoração aos 20 anos do Código Civil brasileiro.

Flávio Tartuce

Pós-Doutor e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Conselheiro seccional da OABSP e Diretor da ESAOABSP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. Email. fftartuce@uol.com.br.

1. A Responsabilidade Civil e o Direito de Família

As interfaces, as interligações mutualistas, entre os diversos ramos do Direito Civil são constantes na contemporaneidade. Entre as mais marcantes estão as interações entre o Direito de Família e o Direito das Obrigações. Assim, a responsabilidade civil tem incidido nas relações familiares, seja nas relações de parentalidade ou nas de conjugalidade

Entre pais e filhos, tidas como relações verticais, um dos temas mais debatidos pela civilística nacional refere-se à tese do abandono afetivo, abandono paterno-filial ou teoria do desamor, tema central deste artigo. Entra em discussão jurídica, amplamente, se o pai que não convive com o filho, dando-lhe afeto ou amor, pode ser condenado a indenizá-lo por danos morais.

Nas relações conjugais, tidas como horizontais, o tema da responsabilidade civil, na conjugalidade e nas relações de convivência, tem permeado as manifestações jurisprudenciais, com uma quantidade enorme de variações. E, para a análise dessas interações entre a responsabilidade civil e o Direito Civil, quatro premissas fundamentais devem ser relembradas.

A primeira premissa refere-se à normal incidência das regras relativas à responsabilidade civil no Direito de Família. Não se pode mais admitir a antiga separação entre os direitos patrimoniais puros – caso dos temas de Direito das Obrigações – e os direitos existenciais – como é propriamente o Direito de Família. Os institutos obrigacionais e contratuais também têm como cerne a pessoa humana, surgindo normas protetivas cogentes ou de ordem pública, como aquelas relacionadas com os princípios sociais contratuais. No entanto, dentro do Direito de

Família, há normas de cunho patrimonial, de ordem privada, que até podem ser contrariadas pela autonomia privada dos envolvidos por serem dispositivas. Por tal conclusão, não se pode admitir a ideia de que os princípios do Direito das Obrigações não possam influenciar o Direito de Família, ou vice-versa.

Diante dessas afirmações, discorda-se totalmente da manifestação do então Ministro Asfor Rocha, do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 757.411/MG, primeiro precedente relativo ao abandono afetivo. Foram as suas palavras:

Sr. Presidente, é certo que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais pontificou que o recorrido teria sofrido em virtude do abandono paterno; são fatos que não podem ser desconstituídos. E é justamente com base nesses fatos que aprecio o que está ora posto. Penso que o direito de família tem princípios próprios que não podem receber influências de outros princípios que são atinentes exclusivamente ou – no mínimo – mais fortemente – a outras ramificações do Direito. Esses princípios do direito de família não permitem que as relações familiares, sobretudo aquelas atinentes a pai e filho, mesmo aquelas referentes a patrimônio, a bens e responsabilidades materiais, a ressarcimento, a tudo quanto disser respeito a pecúnia, sejam disciplinadas pelos princípios próprios do Direito das Obrigações. Destarte, tudo quanto disser respeito às relações patrimoniais e aos efeitos patrimoniais das relações existentes entre parentes e entre os cônjuges só podem ser analisadas e apreciadas à luz do que está posto no próprio direito de família. Essa compreensão decorre da importância que tem a família, que é alçada à elevada proteção constitucional como nenhuma outra entidade vem a receber, dada a importância que tem a família na formação do próprio Estado. Os

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seus valores são e devem receber proteção muito além da que o Direito oferece a qualquer bem material. Por isso é que, por mais sofrida que tenha sido a dor suportada pelo filho, por mais reprovável que possa ser o abandono praticado pelo pai – o que, diga-se de passagem, o caso não configura – a repercussão que o pai possa vir a sofrer, na área do Direito Civil, no campo material, há de ser unicamente referente a alimentos; e, no campo extrapatrimonial, a destituição do pátrio poder, no máximo isso. Com a devida vênia, não posso, até repudio essa tentativa, querer quantificar o preço do amor. Ao ser permitido isso, com o devido respeito, iremos estabelecer gradações para cada gesto que pudesse importar em desamor: se abandono por uma semana, o valor da indenização seria ‘x’; se abandono por um mês, o valor da indenização seria ‘y’, e assim por diante.

Ao contrário das palavras colacionadas, os diálogos interdisciplinares são salutares, mesmo no âmbito do próprio Direito Civil, sendo necessário sempre reconhecer a influência conceitual e categórica entre livros distintos do Código Civil em vigor. Essa, aliás, é uma tendência que se confirmou nos últimos anos, não só na doutrina como na jurisprudência brasileira.

A segunda premissa relaciona-se à culpa, um conceito unificador do sistema de responsabilidade civil. A culpa, em sentido amplo, ou lato sensu, ainda consta como fundamento do ato ilícito, previsto no art. 186 do atual Código Civil, pelo qual este é cometido por aquele que, por ação ou omissão voluntária (dolo), negligência ou imprudência (culpa em sentido estrito, ou stricto sensu), violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. A responsabilidade civil também está, em geral, fundada na culpa, pela menção ao ato ilícito que consta do art. 927, caput, do Código de 2002.

Relativamente ao Direito de Família e ao casamento, a culpa continua prevista expressamente no Código Civil, como um dos motivos da separação judicial litigiosa, conceituada como separação-sanção. De acordo com o caput do art. 1.572 da atual codificação privada, “qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum”. Os deveres do casamento, no sistema vigente, constam do art. 1.566 do Código Civil, a saber: a) fidelidade recíproca; b) vida em comum, no domicílio conjugal; c) mútua assistência; d) sustento, guarda e educação dos filhos; e) respeito e consideração mútuos.

A novidade parcial do atual Código Civil, perante o seu antecessor, está no tão criticado art. 1.573, que traz um rol exemplificativo, ou numerus apertus, de fatos que podem caracterizar a insuportabilidade da vida em comum.1 O dispositivo é realmente curioso. De início, parece indicar um rol taxativo, fechado (numerus clausus). No entanto, o seu parágrafo único prevê que o juiz pode considerar outros fatos que caracterizam a impossibilidade da comunhão plena de vida (rol exemplificativo ou numerus apertus). Causam certo espanto algumas das previsões do comando legal, como a do adultério, extinto como tipo penal pela Lei n. 11.106/2005; e a do abandono do lar conjugal, somente por um ano contínuo, como se esse tempo fosse o mínimo a ensejar a referida impossibilidade.

Consigne-se que, não obstante o atual Código Privado ter expressado a culpa, a doutrina contempo-

1 CC/2002: “Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: I – adultério; II – tentativa de morte; III – sevícia ou injúria grave; IV – abandono voluntário do lar conjugal durante um ano contínuo; V – condenação por crime infamante; VI – conduta desonrosa. Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum”.

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rânea sempre criticou a sua previsão, uma vez que a sua investigação tornaria dificultosa a separação do casal, muitas vezes transformando a ação de separação em um processo de vingança. 2 Nessa linha de pensamento, a jurisprudência vinha mitigando a análise da culpa, principalmente nos casos de difícil investigação ou de culpa recíproca.

Com a Emenda do Divórcio (EC n. 66/2010), que alterou o art. 226, § 6º, da Constituição Federal, não mais mencionando a separação judicial, é forte e até majoritária a corrente doutrinária que afasta a possibilidade de debate da culpa para dissolver o casamento, mesmo que seja na ação de divórcio. Essa é a posição que prevalece entre os juristas que compõem o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Os mesmos juristas entendem que a separação de direito, a englobar tanto a separação judicial como a extrajudicial – feita por escritura pública no Tabelionato de Notas –, não mais subsiste no sistema jurídico nacional.3 Em outras palavras, a discussão da culpa impede a extinção célere do vínculo conjugal e sujeita, desnecessariamente, os cônjuges a uma dilação probatória das mais lentas e sofridas.

Apesar desse entendimento, como segunda premissa, é imperiosa a conclusão no sentido de que a culpa do ato ilícito e da responsabilidade civil é a mesma culpa motivadora do fim do casamento e a da eventual responsabilidade civil na conjugalidade.

Ambas trazem a concepção do desrespeito a um dever preexistente, o que está inspirado no clássico conceito de Chironi (1925, p. 5). Pode-se também utilizar a construção de Von Tuhr, que visualiza a culpa, em sentido amplo, como um comportamento reprovado pela lei, caracterizando a violação de um contrato ou o cometimento de um ato ilícito. Deixa claro

2 Por todos: FACHIN, 2003; FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 330-332; MOREIRA ALVES, 2007; SARTORI, 2023.

3 Por todos: LÔBO, 2023; MADALENO, 1998.

o autor que o que a norma jurídica reprova é a vontade maligna ou negligente do indivíduo. (VON TUHR, 1934, t. I, p. 275).

Por tal conclusão, no sentido de que as duas culpas são as mesmas, surge um contraponto com relação àqueles que pretendem a extinção total da culpa nas ações de dissolução do casamento e da união estável. Se a culpa será analisada para os fins de responsabilização civil, também o pode ser para colocar fim à sociedade conjugal.

Seria ilógico pensar em metade da culpa somente para a imputação da responsabilidade civil, e não para findar a comunhão plena de vida. A corrente a que estou filiado é justamente a que reconhece que a culpa pode ser mitigada em alguns casos, como naqueles em que é recíproca, mas nem sempre. O caso é de sua relativização, mas não de sua morte, fim ou desaparecimento, como se quer afirmar. Nas hipóteses aqui em análise, a culpa pode imputar o dever de indenizar e, ao mesmo tempo, pôr fim à sociedade entre os cônjuges.

Como terceira premissa para a interação entre responsabilidade civil e Direito de Família, tenho a convicção de que a responsabilidade civil que surge nas relações de conjugalidade ou de convivência é, essencialmente, uma responsabilidade extracontratual. A afirmação, por óbvio, vale para os casos de responsabilidade civil na parentalidade.

Encerrando esta introdução, como última e quarta premissa fundamental para a responsabilidade civil que surge no âmbito do Direito de Família, é necessária a aplicação das regras básicas da responsabilidade civil para as relações de conjugalidade e de parentalidade, para que o diálogo que aqui se propõe seja viável metodológica e juridicamente. Assim, não se pode esquecer dos elementos clássicos da responsabilidade civil extracontratual, que são, em

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geral: a) a conduta humana; b) a culpa lato sensu, ou em sentido amplo; c) o nexo de causalidade; d) o dano ou prejuízo.

Como decorrência lógica dessa quarta premissa, não se podem olvidar as tendências contemporâneas da responsabilidade civil, os paradigmas atuais, como o reconhecimento de novos danos reparáveis.

2. O Reconhecimento da Responsabilidade Civil Pelo Abandono Afetivo Pela Jurisprudência Brasileira

Como aqui afirmado, a responsabilidade civil, no Direito de Família, projeta-se para além das relações de casamento ou de união estável, sendo possível a sua incidência na parentalidade ou filiação, ou seja, nas relações entre pais e filhos. Uma das situações em que isso ocorre diz respeito à responsabilidade civil por abandono afetivo, também denominado abandono paterno-filial ou teoria do desamor.

Trata-se de aplicação do princípio da solidariedade social ou familiar, previsto no art. 3º, inc. I, da Constituição Federal, de forma imediata a uma relação privada, ou seja, em eficácia horizontal. Como explica Rodrigo da Cunha Pereira, precursor da tese que admite tal indenização,

o exercício da paternidade e da maternidade – e, por conseguinte, do estado de filiação – é um bem indisponível para o Direito de Família, cuja ausência propositada tem repercussões e consequências psíquicas sérias, diante das quais a ordem legal/constitucional deve amparo, inclusive, com imposição de sanções, sob pena de termos um Direito acéfalo e inexigível. (PEREIRA, 2015).

O jurista também fundamenta a eventual reparabilidade pelos danos decorrentes do abandono na dignidade da pessoa humana, eis que

o Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e de responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. [...] Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele. (PEREIRA, 2015).

Para Rodrigo da Cunha Pereira, além da presença de danos morais, pode-se cogitar uma indenização suplementar, pela presença da perda da chance de convivência com o pai.

O doutrinador e Presidente Nacional do IBDFAM atuou na primeira ação judicial em que se reconheceu a indenização extrapatrimonial por abandono filial. Na ocasião, o então Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou um pai a pagar indenização de duzentos salários mínimos, a título de danos morais ao filho, por não ter com ele convivido (Apelação Cível n. 408.550-5 da Comarca de Belo Horizonte, 7ª Câmara Cível. Presidiu o julgamento o Juiz José Affonso da Costa Côrtes e dele participaram os Juízes Unias Silva, relator, D. Viçoso Rodrigues, revisor, e José Flávio Almeida, vogal).

Filiando-se ao julgado mineiro e à possibilidade de indenização em casos semelhantes, também está a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, uma das maiores juristas deste País na atualidade, expoente não só do Direito de Família, mas também da Responsabilidade Civil, tendo desenvolvido a sua tese de livre-docência na Faculdade de Direito da USP sobre a responsabilidade pressuposta. Vejamos as suas palavras:

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A responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da ideia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar [...]. Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial. (HIRONAKA, 2023).

Entretanto, como se sabe, o Superior Tribunal de Justiça reformou a primeva decisão do Tribunal de Minas Gerais, afastando o dever de indenizar, no caso em questão, diante da ausência de ato ilícito, pois o pai não seria obrigado a amar o filho. Em suma, o abandono afetivo seria situação incapaz de gerar reparação pecuniária (STJ, Recurso Especial n. 757.411/MG, relator o Ministro Fernando Gonçalves; votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que não conhecia do recurso. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. Data do julgamento: 29 de novembro de 2005).

De qualquer modo, tal decisão do Tribunal da Cidadania não encerrou o debate quanto à indenização por abandono afetivo, que permanece intenso na doutrina e na própria jurisprudência. A minha posição é no sentido de existir o dever de indenizar em casos tais, especialmente se houver um dano psíqui-

co ensejador de dano moral, a ser demonstrado por prova psicanalítica. O desrespeito ao dever de convivência é muito claro, eis que o art. 1.634 do Código Civil impõe como atributos do poder familiar a direção da criação dos filhos e o dever de tê-los em sua companhia. Além disso, o art. 229 da Constituição Federal é cristalino, ao estabelecer que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Violado esse dever e sendo causado o dano ao filho, estará configurado o ato ilícito, nos exatos termos do que estabelece o art. 186 do Código Civil em vigor e de acordo com as premissas expostas no tópico introdutório deste texto.

Quanto ao argumento de eventual monetarização do afeto, muito utilizado na prática, penso que a Constituição Federal de 1988 encerrou definitivamente tal debate, ao reconhecer expressamente a reparação dos danos morais em seu art. 5º, incs. V e X. Aliás, se tal argumento for levado ao extremo, a reparação por danos extrapatrimoniais não seria cabível, em casos como de morte de pessoa da família, por exemplo.

A propósito, demonstrando evolução quanto ao tema, surgiu, no ano de 2012, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça, em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo. A ementa foi assim publicada por esse Tribunal Superior:

Civil e Processual Civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se obser-

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va do art. 227 da CF/1988. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado –, importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (BRASIL, 2012a).

Em sua relatoria, a Ministra Nancy Andrighi ressaltou, de início, ser admissível aplicar o conceito de dano moral nas relações familiares, sendo despiciendo qualquer tipo de discussão a esse respeito, pelos naturais diálogos entre livros diferentes do Código Civil de 2002. Seguiu, assim, o mesmo caminho exposto no início deste artigo. Desse modo, superou-se totalmente a posição firmada no primeiro julgado superior sobre o tema, especialmente o que foi desenvolvido pelo então Ministro Asfor Rocha, da impossibilidade de interação entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil.

Para a Ministra Nancy Andrighi, ainda, o dano extrapatrimonial estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, com fundamento no princípio da afetividade, a julgadora deduziu pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: “Amar é faculdade, cuidar é dever”.

Concluindo pelo nexo causal entre a conduta do pai que não reconheceu voluntariamente a paternidade de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).

Esse último acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça representa correta concretização jurídica do princípio da solidariedade, sem perder de vista a função pedagógica, ou de desestímulo que deve ter a responsabilidade civil. Sempre pontuei, assim, que este posicionamento deve prevalecer na nossa jurisprudência, visando também a evitar que outros pais abandonem os seus filhos.

De todo modo, fazendo uma pesquisa mais atual, posterior ao último aresto superior, notei que há ainda grande vacilação jurisprudencial, na admissão da reparação civil por abandono afetivo, com ampla prevalência de julgados que concluem pela inexistência de ato ilícito, em casos tais, notadamente pela ausência de prova do dano.

Trilhando esse caminho, de acordo com a primeira orientação do Tribunal da Cidadania, na Corte Estadual que despertou o debate, deduziu-se que, “por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do CC, que pressupõe prática

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de ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de reparação” (MINAS GERAIS, 2017).

Na mesma linha, sem prejuízo de muitas outras ementas de negação do ilícito: “a pretensão de indenização pelos danos sofridos em razão da ausência do pai não procede, haja vista que para a configuração do dano moral faz-se necessário prática de ato ilícito. Beligerância entre os genitores.” (RIO GRANDE DO SUL, 2017a). De todo modo, pode ser notada certa confusão técnica no último decisum, pois não é o ilícito que é elemento do dano moral, mas vice-versa.

Por outra via, concluindo pela ausência de prova do dano, entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo que

a jurisprudência pátria vem admitindo a possibilidade de dano afetivo suscetível de ser indenizado, desde que bem caracterizada a violação aos deveres extrapatrimoniais integrantes do poder familiar, configurando traumas expressivos ou sofrimento intenso ao ofendido. Inocorrência na espécie. Depoimentos pessoais e testemunhais altamente controvertidos. Necessidade de prova da efetiva conduta omissiva do pai em relação à filha, do abalo psicológico e do nexo de causalidade. Alegação genérica não amparada em elementos de prova. Non liquet, nos termos do artigo 373, I, do Código de Processo Civil, a impor a improcedência do pedido. (SÃO PAULO, 2016b).

Em complemento, e mais recentemente, o Tribunal Gaúcho aduziu que

o dano moral exige extrema cautela no âmbito do direito de família, pois deve decorrer da prática de um ato ilícito, que é considerado como aquela conduta que viola o direito de alguém e causa a este um dano, que pode ser material ou exclusivamente moral.

Para haver obrigação de indenizar, exige-se a violação de um direito da parte, com a comprovação dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre a conduta desenvolvida e o dano sofrido, e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui, por si só, situação capaz de gerar dano moral. (RIO GRANDE DO SUL, 2017b).

Muitos julgamentos seguem a última frase da ementa, segundo a qual o mero distanciamento físico entre pai e filho não configura, por si só, o ilícito indenizante.

Diante desse panorama recente, é sempre recomendável que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Muitos acórdãos estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização.

Acrescente-se que, no próprio Superior Tribunal de Justiça, existem decisões próximas que não admitem a reparação de danos por abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Desse modo, julgando “alegada ocorrência de abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Não caracterização de ilícito. Precedentes.” (BRASIL, 2017). Ou, ainda, “a Terceira Turma já proclamou que antes do reconhecimento da paternidade, não há se falar em responsabilidade por abandono afetivo.” (BRASIL, 2016).

Na Edição n. 125 da ferramenta Jurisprudência em Teses da Corte Superior, publicada em 2019, foram publicadas duas premissas que confirmam essas afirmações. Consoante a Tese n. 7, “o abandono afetivo de filho, em regra, não gera dano moral indenizável, podendo, em hipóteses excepcionais, se comprovada a ocorrência de ilícito civil que ultrapas -

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se o mero dissabor, ser reconhecida a existência do dever de indenizar.” (precedentes citados: Ag. Int. no AREsp 492243/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 5/6/2018, DJe 12/6/2018; REsp 1579021/RS, Quarta Turma, Rel.ª Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 19/10/2017, DJe 29/11/2017).

Em continuidade, prevê a Tese n. 8 que “não há responsabilidade por dano moral decorrente de abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade.” (acórdãos: Ag. Int. no AREsp 492243/ SP, Quarta Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 5/6/2018, DJe 12/06/2018; REsp 514.350/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 28/4/2009, DJe 25/5/2009).

Em suma, parece-me que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo, em especial após o julgamento do REsp 1.159.242/SP, em 2012. Porém, no âmbito da jurisprudência, há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização, inclusive no âmbito do próprio STJ. Muitos deles o fazem também com base na existência de prescrição da pretensão, tema a ser tratado a seguir.

3. A Prescrição no Caso da Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo

Por se tratar de demanda reparatória de danos, envolvendo a responsabilidade civil extracontratual, o prazo eventualmente aplicado para o abandono afetivo é de prescrição, e não de decadência.

Como é cediço, o Código Civil de 2002 acabou por adotar os critérios desenvolvidos por Agnelo Amorim Filho, em clássico estudo sobre os prazos, publicado na Revista dos Tribunais n. 300. Isso foi feito em prol da operabilidade, em um sentido de facilitação dos institutos privados, um dos baluartes

principiológicos da codificação em vigor. Seguindo tal orientação, os prazos de prescrição são associados às ações condenatórias, caso das demandas relativas à responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual. Já os prazos de decadência associam-se às ações constitutivas positivas ou negativas, como ocorre no reconhecimento de nulidade relativa de um ato ou negócio jurídico, nos termos dos arts. 178 e 179 do Código Civil, sem prejuízo de outras normas que tratam da anulabilidade.

Pois bem, a corrente amplamente majoritária entende que o prazo prescricional, em casos tais, é de três anos, afirmando-se a subsunção do prazo especial para a reparação civil, previsto no art. 206, § 3º, inc. V, do Código Civil. No âmbito estadual, numerosos julgados seguem essa vertente do prazo exíguo, diante de uma suposta subsunção perfeita ao caso concreto. Vejamos cinco deles, das cinco regiões do País. De início, do Tribunal de Justiça do Paraná e do Tribunal Paulista:

Ação reparatória de danos morais e materiais em razão do homicídio da mãe dos autores e do abandono afetivo em tese praticado pelo requerido. Prescrição. Aplicação do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, V, CC. Autores absolutamente incapazes à época dos fatos. Início do prazo prescricional com o alcance da maioridade. (PARANÁ, 2017).

Incidência do prazo de três anos previsto no art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil de 2002, em consonância com o art. 2.028 do mesmo diploma legal. (SÃO PAULO, 2016b).

Da Região Centro-Oeste, posicionou-se o Tribunal do Distrito Federal no sentido de que a pretensão indenizatória da autora/recorrente prescreve em três anos, na esteira do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Além disso, fundamenta-se no descumprimento,

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pelo réu/recorrido, das obrigações inerentes ao poder familiar, incluindo o amparo moral e econômico. Os deveres relativos ao poder familiar cessam com a maioridade plena, ainda que o genitor não os exerça. De fato, a simples alegação de que o requerido/ apelado não cumpriria as obrigações relativas ao poder familiar não tem o condão de afastar a incidência da causa suspensiva prevista no art. 197, inciso II, do Código Civil. Sendo assim, resta claro que qualquer pretensão relacionada ao inadimplemento dos deveres inerentes ao poder familiar somente pode ser demandada, quando encerrada a causa suspensiva acima mencionada, ou seja, com a maioridade plena do filho ou com a emancipação deste. (BRASÍLIA, 2017).

Seguindo, do Estado da Paraíba, no mesmo sentido: “a pretensão de reparação civil por abandono afetivo nasce, quando cessa a menoridade civil do autor, caso a suposta paternidade seja de seu conhecimento desde a infância, estando sujeita ao prazo prescricional de três anos.” (PARAÍBA, 2016). Por derradeiro, chegando-se ao Amazonas, tem-se que a pretensão de indenização por abandono afetivo prescreve em três anos, conforme o prazo estabelecido no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, e começa a contar a partir da maioridade do alimentando. No caso concreto deve ser reconhecida a prescrição, porquanto a presente ação foi ajuizada quase sete anos após o autor atingir a maioridade. (AMAZONAS, 2017).

O entendimento é confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, como está na Tese n. 9, publicada na Edição n. 125 da sua Jurisprudência em Teses: “o prazo prescricional da pretensão reparatória de abandono afetivo começa a fluir a partir da maioridade do autor”.

Como se pode perceber, todos os julgados transcritos acabam por concluir que o prazo prescricional de três anos tem início com a maioridade do filho, pois, nos termos do art. 197, inc. II, do Código Civil, não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, o que é cessado, quando o filho completa dezoito anos, em regra. Esse dispositivo, segundo tal interpretação, deve prevalecer sobre outra, enunciada pelo art. 198, inc. I, da mesma codificação privada, segundo a qual não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os menores de dezesseis anos. Sendo assim, o prazo prescricional para o abandono afetivo acaba por vencer, quando o filho completa vinte e um anos de idade (18 anos + 3 da prescrição).

Porém, é preciso aqui fazer uma ressalva, pois, se os fatos tiverem ocorrido na vigência do Código Civil de 1916, há que se aplicar o prazo geral de vinte anos para as ações pessoais, previsto no art. 177 da codificação revogada. Nessa linha, importante precedente da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, a merecer destaque:

Os direitos subjetivos estão sujeitos a violações e, quando verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. A ação de investigação de paternidade é imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retro-operante alcançar os efeitos passados das situações de direito. O autor nasceu no ano de 1957 e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era seu pai, à luz do disposto nos arts. 9º, 168, 177 e 392, III, do Código Civil de 1916, o prazo

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prescricional vintenário, previsto no Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o “pátrio poder”. Todavia, tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da pretensão quanto à compensação por danos morais. (BRASIL, 2012b).

Com o devido respeito às posições expostas, entendo que, em casos de abandono afetivo, não há que se reconhecer qualquer prazo para a pretensão, sendo a correspondente demanda imprescritível.

Primeiro, pelo fato de a demanda envolver Direito de Família e estado de pessoas, qual seja a situação de filho. Segundo, por ter como conteúdo o direito da personalidade e fundamental à filiação. Terceiro, porque, no abandono afetivo, os danos são continuados, não sendo possível identificar concretamente qualquer termo a quo para o início do prazo.

Em verdade, penso que os casos de abandono afetivo são similares aos de responsabilidade civil por tortura, reconhecendo o Superior Tribunal de Justiça, em vários arestos, a imprescritibilidade da pretensão em tais situações. Assim, por exemplo, com citação de outros acórdãos:

as ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ: AgRg no Ag 1.339.344/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 28/2/2012; AgRg no REsp 1.251.529/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 1º/7/2011. (BRASIL, 2015).

Em reforço, parece-me equivocado afirmar que o prazo prescricional, pela feição subjetiva da actio nata, terá início a partir da maioridade do filho postulante. Pela citada teoria, desenvolvida entre nós por

Câmara Leal e José Fernando Simão, o prazo prescricional tem início não da lesão ao direito subjetivo, mas do conhecimento da lesão. Diante dessa feição subjetiva da actio nata, não se pode dizer qual o termo a quo para o início do prazo.

Entendo que os danos são continuados, não cessam, não saem da memória do ofendido, mesmo em se tratando de pessoa com idade avançada. Em outras palavras, o prejuízo é de trato sucessivo, atinge a honra do filho a cada dia, a cada hora, a cada minuto e a cada segundo. Ninguém esquece o desprezo de um pai.

A respeito do início do prazo, também é preciso fazer uma objeção, adotando-se a posição majoritária pelo prazo prescricional específico. Ora, nem sempre o lapso temporal de três anos será contado da maioridade do filho. Em casos de reconhecimento posterior da paternidade, mais uma vez por aplicação da teoria da actio nata subjetiva, o prazo deve ser contado do trânsito em julgado da decisão que a reconhece, momento em que não há mais dúvida quanto ao vínculo dos envolvidos. Nesse sentido, conforme se retira de julgamento do Tribunal Paulista:

No caso dos autos, contudo, a autora apenas soube o nome do pai em 2013, ano em que completou 30 (trinta) anos, quando o réu dela se aproximou pela rede social Facebook. Propositura de ação de reconhecimento da paternidade pela autora embasada em exame de DNA positivo realizado em laboratório particular pelas partes. Início da contagem do prazo prescricional a partir da data do trânsito em julgado da ação de paternidade. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo. (SÃO PAULO, 2016c).

Como se nota, o acórdão admite a possibilidade de indenização por abandono afetivo, após a maioridade, o que conta com o meu apoio.

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Por derradeiro, sendo adotada a corrente pelo prazo de três anos, não se pode ignorar, ainda, a aplicação da regra de Direito Intertemporal do art. 2.028 do CC, in verbis: “serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”. Desse modo, tendo sido o prazo reduzido de vinte para três anos, transcorrido menos da metade do prazo, deve-se aplicar o novo lapso de três anos, a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código Civil de 2002.

Sendo assim, várias pretensões reparatórias prescreveram no mesmo dia, 11 de janeiro de 2006, com exceção dos casos dos filhos que ainda não tinham atingido a maioridade, nesse período, ou cuja maioridade ainda não tinha sido reconhecida. Nesse sentido, transcreve-se:

Se a ação de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo foi proposta após o decurso do prazo de três anos de vigência do Código Civil de 2002, é imperioso reconhecer a prescrição da ação. Inteligência do art. 206, § 3º, inc. V, do CCB/2002. O novo Código Civil estabeleceu a redução do prazo prescricional para as ações de reparação civil, tendo incidência a regra de transição posta no art. 2.028 do CCB/2002. (RIO GRANDE DO SUL, 2013).

Como se pode perceber, muitas peculiaridades técnicas devem ser percebidas, mesmo no caso de adoção do prazo de três anos. O tema do abandono afetivo, assim, apresenta dificuldades jurídicas não só no seu conteúdo, mas também na verificação da existência, ou não, da suposta pretensão.

Em suma, limitações existentes a respeito da prova do dano e do prazo prescricional têm feito com que os pedidos de reparação imaterial sejam afastados

na grande maioria dos casos levados ao Poder Judiciário.

Referências

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp nº 1.4981.67/RJ. Relator: Min. Humberto Martins. DJe, Brasília, DF, 25 ago. 2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 1.071.160/SP. Relator: Min. Moura Ribeiro. DJe, Brasília, DF, 19 jun. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.159.242/SP. Relatora: Min. Nancy Andrighi. DJe, Brasília, DF, 10 maio 2012a.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.298.576/RJ. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. DJe, Brasília, DF, 06 set. 2012b.

BRASÍLIA. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 2015.01.1.064396-6. Relator: Des. Rômulo de Araújo Mendes. DJe, Brasília, DF, 30 maio 2017.

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VON TUHR, A. Tratado de las obligaciones. Tradução para o espanhol de W. Roces.

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RESPONSABILIDADE CIVIL POR ESTELIONATO SENTIMENTAL

Palavras-chave

Estelionato Sentimental. Responsabilidade Civil. Relacionamento Afetivo.

Luciana Fernandes Berlini

Pós-doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Doutora e Mestre em Direito Privado pela PUC/Minas. Presidente da Comissão de Responsabilidade Civil da OAB/MG. Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisadora líder do Terra Civilis. Autora de livros e artigos jurídicos. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8274959157658475

O crescente número de casos de estelionato no Brasil e no mundo chama a atenção. Mais de 5 milhões de brasileiros foram vítimas de algum de tipo de golpe só no ano de 2022 e, especificamente sobre o estelionato afetivo, houve um aumento de quase 70% de casos, segundo dados da Polícia Civil1

Os dados são ainda incipientes, haja vista que grande parte das vítimas deste tipo de golpe se sentem constrangidas de denunciar, seja pela exposição de sua intimidade, seja pelo abalo psicológico ocasionado pela humilhação de ter sido vítima de alguém em quem confiaram seus sentimentos mais íntimos. Tal aspecto demonstra que há muitas vítimas que preferem suportar o prejuízo financeiro e emocional a reviver o trauma.

A referida situação não é uma exclusividade brasileira2, a fraude ocorre em todo mundo e ficou evidenciada pelo famoso documentário “O Golpista do Tinder”, lançado em fevereiro de 2022 e que já conquistou a marca de documentário mais assistido na Netflix em todos os tempos.

Diante desse cenário, no qual o afeto vem sendo utilizado em larga escala para vitimizar pessoas, surge questionar se a responsabilidade civil pode ser aplicada aos casos de Estelionato Sentimental e, em caso afirmativo, quais seriam seus pressupostos.

Antes, no entanto, é preciso esclarecer que a terminologia estelionato advém do tipo previsto no artigo 171 do Código Penal, no qual, “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento” é crime.

Não há nenhuma referência no tipo penal ao aspecto afetivo para configuração do crime, mas a jurisprudência entende que o meio fraudulento empregado pode ser o afeto. Nesse sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça que o estelionato é um crime de forma livre, que pode ser cometido por qualquer meio eleito pelo agente e, na hipótese de estelionato sentimental, o ardil utilizado é o próprio relacionamento afetivo construído com a vítima, concluindo que “merece maior reprovação a conduta do paciente de se valer do relacionamento íntimo que possuía com a vítima para a prática do delito.”3

Apesar do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, tramita no Congresso Nacional o projeto de Lei n. 2254, de 2022, que pretende alterar o artigo 171, acrescentando o estelionato sentimental como estelionato no inciso inciso VII – “induz a vítima, com a promessa de constituição de relação afetiva, a entregar bens ou valores para si ou para outrem.” No caso de estelionato sentimental o projeto propõe que a pena seja de reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

De todo modo, o projeto ou sua conversão em lei não altera os pressupostos de responsabilidade civil que serão apresentados neste trabalho.

1 MARQUES, David; LAGRECA, Amanda. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Os crimes patrimoniais no Brasil: entre novas e velhas dinâmicas. Disponível em: https://forumseguranca. org.br/wp-content/uploads/2022/07/07-anuario-2022-os-crimes-patrimoniais-no-brasil-entre-novas-e-velhas-dinamicas.pdf

2 Dados apresentados pela Federal Trade Commission revelam perda de 547 milhões de dólares em estelionato afetivo no ano de 2021. Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/news/ press-releases/2022/02/ftc-data-show-romance-scams-hit-record-high-547-million-reported-lost-2021

Cumpre esclarecer, também, que o cometimento do crime de estelionato (sentimental ou não) em meio eletrônico, encontra-se tipificado desde 27 de maio

3 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no HC n. 577.861/ SC, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 17/6/2020.

40 1. Introdução

de 2021, pela Lei n° 14.155/2021, haja vista o crescente aumento desta modalidade no contexto da pandemia.

A terminologia estelionato sentimental, em clara referência ao tipo penal, apareceu pela primeira vez no judiciário em 2014, curiosamente em um processo de responsabilização civil, por meio do processo nº 0012574-32.2013.8.07.0001, impetrado na 7ª Vara Cível de Brasília, em que uma mulher conseguiu a seu favor a quantia de R$ 101.537,71 do ex namorado.

A definição do estelionato prevista no Código Penal vem sendo utilizada para fundamentar pedidos de responsabilidade civil por estelionato afetivo, pois facilita a compreensão da configuração do comportamento ardiloso praticado pelo agente e que deve ser suficiente e proporcional para a consecução dos fins almejados de obter vantagem financeira, através de um estímulo irresistível provocado na vítima, que acaba por transmitir o próprio patrimônio para o agente.

Nessa ordem de ideias, é possível delimitar a conduta que será analisada em seu aspecto civil, tendo em vista que o ilícito penal traz uma punição para o agente, mas não tem como função a reparação/ compensação da vítima que interessa ao presente trabalho.

Cumpre distinguir, nesse momento, que o ato de disposição patrimonial em um contexto afetivo não pode, por si só, ser considerado como estelionato sentimental, razão pela qual é preciso delimitar seu conceito e alcance.

2. Estelionato Sentimental: Distinções Necessárias

O estelionato sentimental é diferente de empréstimos ou doações que podem ocorrer em uma rela-

ção afetiva como forma de apoio ou incentivo, visto que no estelionato afetivo a transmissão patrimonial não se dá por mera liberalidade, mas ocorre mediante um vício de consentimento.

Essa diferenciação aparece frequentemente nas decisões relacionadas ao tema, como fator determinante para indenizar ou deixar de indenizar a vítima, uma vez que não é possível se desincumbir da prova de que a ajuda financeira não foi mera liberalidade.

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ESTELIONATO AFETIVO. EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO AO NAMORADO DURANTE RELACIONAMENTO AMOROSO. AUSÊNCIA DE PROVA DE MANIPULAÇÃO DE SENTIMENTOS PARA OBTER VANTAGEM ECONÔMICA.

1. O termo “estelionato afetivo/emocional” advém de uma construção do direito penal para caracterizar relações amorosas com objetivo de vantagem financeira, a partir do conceito previsto no artigo 171 do Código Penal. 2. Ainda que a ajuda financeira no curso de relacionamento amoroso não seja considerada como vantagem ilícita, o abuso desse direito mediante promessas sentimentais, valendo-se da boa-fé objetiva que permeia as relações sociais, pode representar um ilícito passível de indenização. 3. Ao concreto, a autora não logrou comprovar que foi ludibriada e induzida de forma artificiosa a emprestar dinheiro ao demandado durante o namoro. Contexto fático probatório que não permite concluir ter havido utilização de ardil ou meio fraudulento pelo réu para obter vantagem financeira advinda do relacionamento amoroso. Ato ilícito não comprovado. Dever de indenizar inexistente. 4. Sentença de improcedência mantida.

APELAÇÃO DESPROVIDA.(TJRS - Apelação Cível, Nº 50014421020218210101, Décima Câmara Cível. Relator: Thais Coutinho

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Dessa forma, o entendimento aqui defendido perpassa pela necessidade de enquadrar a conduta da vítima como erro, induzido pela manipulação e consequente imprecisão da realidade, decorrente dos meios ardilosos aplicados pelo agente, que seduz a vítima a agir sob falso pressuposto, transferindo seus bens de forma errônea, baseada em uma confiança construída mediante fraude. O erro da vítima, nesse aspecto, não se confunde com culpa, pois a exteriorização de sua vontade não se deu de forma livre.

Assim, a vítima, ao celebrar negócios jurídicos com o agente, doando seu patrimônio ou emprestando dinheiro, o faz mediante vício que macula a validade dos contratos firmados. Ou seja, a pessoa manifesta sua vontade em negócios jurídicos que lhe são desfavoráveis, em razão de uma falsa percepção da realidade. Falsa percepção esta desencadeada pela pessoa com quem está se relacionando intimamente. A manifestação de vontade decorre, portanto, de dolo.

Se a constatação de que os negócios jurídicos praticados neste contexto decorreram de um vício de consentimento, tendo o dolo como sua causa, estes negócios são anuláveis, nos termos do artigo 145 do Código Civil.

É possível ainda, em casos extremos, a anulação de casamento em virtude de estelionato sentimental, como se observa na decisão do TJMG:

EMENTA: AÇÃO ANULATÓRIA DE CASAMENTO. GOLPE DO AMOR. ESTELIONATÁRIO CONTUMAZ. VERDADEIRO ENGODO. MOTIVO PARA ANULAÇÃO PREVISTO NA LEGISLAÇÃO. - Nos termos do art. 1.557, inciso I, do Código Civil, considera-se erro essencial sobre a pessoa do cônjuge o que diz respeito à sua identidade,

sua honra e boa fama, de modo que o conhecimento ulterior deste torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.

- No erro quanto à identidade civil não mais se trata de um engano quanto à pessoa corpórea do cônjuge, mas à sua real identidade, cujo efeito precisa ser de monta tal que torne insuportável a vida em comum. - O apelado, por exemplo, não passa de um estelionatário, um farsante que se apresentou como tendo outra vida econômica e financeira, com vistas a ludibriar sua parceira, se passando por uma pessoa de distinta estratificação social, cultural ou profissional e cuja farsa, se sabida, inviabilizaria o casamento.

- Recurso provido.  (TJMG -  Apelação Cível  1.0000.23.078621-2/001, Relator(a): Des.(a) Delvan Barcelos Júnior , 8ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 15/06/2023, publicação da súmula em 22/06/2023)

No entanto, assim como a responsabilidade penal, a anulação do negócio jurídico, por si só, também não é suficiente para compensar a vítima pelo estrago advindo do estelionato sentimental. Dessa forma, entende-se que a Responsabilidade Civil se apresenta como a melhor opção para a vítima, o que não significa dizer que ela não possa se utilizar dos outros institutos ou cumulá-los.

Assim como o apoio financeiro por mera liberalidade e doações de um modo geral em contextos afetivos não caracterizam estelionato sentimental, a insatisfação pelo término de um relacionamento amoroso também não é estelionato sentimental.

A ruptura do relacionamento, qualquer que seja o nome que se dê, não lesa nenhum direito de personalidade, não configura “estelionato afetivo”, “amoroso” ou “sentimental”, não tem reflexo jurídico e não gera obriga-

42 de Oliveira, Julgado em: 23-02-2023)

ção nem direito a indenização moral.

(TJSP;  Apelação Cível 101206720.2018.8.26.0011; Relator (a): Celso Pimentel; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI - Pinheiros - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/06/2020; Data de Registro: 25/06/2020)

Ademais, a pretensão de reaver as doações feitas em razão de término de relacionamento afetivo não deverá prosperar, pois prevalece a irrevogabilidade das doações, com ressalva das exceções previstas no artigo 557 do Código Civil.4

Resta, portanto, investigar o problema central do tema que é a incidência da Responsabilidade Civil e seus pressupostos.

3. Da Responsabilização Civil por Estelionato Sentimental

A doutrina5 que se debruça sobre a temática geralmente enquadra o estelionato sentimental como ilícito subjetivo.

Embora esteja correto o fundamento jurídico para responsabilização civil na modalidade do artigo 186 do Código Civil, parece mais adequado pensar na imputação objetiva de responsabilidade por um abuso de confiança, estabelecido a partir do relaciona4 Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

5 DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira; RABELO, Sofia Miranda. Responsabilidade Civil nas Relações de Afeto: Análise Crítica sobre o Estelionato Afetivo. IN: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MULTEDO, Renata Vilela (coord). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Induiutaba, SP: Editora Foco, 2021.

mento afetivo e, nesse ponto, seria possível desvincular a vítima da necessidade de demonstrar culpa (ainda que ela exista).

Assim, pela teoria do abuso do direito, com fulcro no artigo 187 do Código Civil, tem-se como fundamento para a imputação de responsabilidade a violação da boa-fé objetiva, em virtude da ardilosa quebra da confiança e da transparência praticada pelo agente.

Os relacionamentos afetivos têm como atributos a confiança estabelecida entre o casal, as expectativas comuns e os compromissos assumidos, atributos estes que são criados de forma ilegítima na vítima, com o intuito de obter vantagem econômica, em flagrante violação à boa-fé.

Segue-se, do exposto, que o estelionato sentimental reveste-se de ilicitude subjetiva e objetiva, motivo pelo qual, para a vítima, a utilização da imputação objetiva por abuso de direito pode ser utilizada, ainda que se vislumbre a intenção do agente de causar o dano.

A própria noção de dolo, enquanto vício de consentimento, está diretamente relacionada à violação da boa-fé, em virtude da manipulação ardilosa6, o que reforça o abuso de direito defendido.

O enquadramento como abuso de direito, portanto, parece muito mais fácil e natural, desincumbindo a vítima da difícil tarefa de perquirir culpa.

A discussão de culpa é sempre tormentosa, a doutrina há muito alerta sobre os percalços de se atribuir culpa nos relacionamentos familiares, por revolver situações que acabam por aumentar a extensão dos danos. Exatamente por isso, desde 2010, com o advento da Emenda Constitucional nº 66, foi extirpada

6 FERNÁNDEZ, Guillermo Ospina; ACOSTA, Eduardo Ospina. Teoría general del contrato y del negocio jurídico. 7ª ed., Bogotá, Editorial Temis, 2014.

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a discussão de culpa nos processos de dissolução conjugal.

Fato é que o estelionato sentimental quase sempre aparece em relações afetivas que ainda não se transformaram em união estável ou casamento, embora a possibilidade exista, como restou evidenciado7.

Ainda assim, nas relações de namoro ou envolvimento afetivo, revolver a culpa traz os mesmos malefícios apontados para os casos de união estável e casamento, motivo pelo qual opta-se por defender a responsabilização pela violação da boa-fé objetiva.

Também tratando sobre a questão da culpa, chama a atenção a quantidade de comentários sobre a história real retratada no documentário O Golpista do Tinder, em que os espectadores passaram a questionar a conduta das vítimas, atribuindo a elas a responsabilidade por terem sido ludibriadas, em razão de ingenuidade ou interesse na condição financeira do golpista.

A expressiva quantidade de comentários repudiando as mulheres que foram enganadas pelo golpista demonstra a perversa cultura ainda existente de culpar a vítima, especialmente mulheres sexualmente ou afetivamente vitimizadas, que acabam revitimizadas. O que se deve ter em mente é que a culpa não está no afeto que se sente, mas no engodo de quem finge amar para auferir vantagem econômica.

Nesse contexto, resta ainda mais evidente a necessidade de afastar a culpa como critério de imputação de responsabilidade nesses casos, posto que não há fundamento para se questionar culpa ou fato ex-

7 Caso o estelionato afetivo ocorra no contexto de relações familiares, como o casamento ou união estável, além da aplicação das normas apresentadas nestes trabalho, incidirá a tutela estatal específica, como por exemplo, direito aos alimentos e regime de bens.

clusivo da vítima, pois, como foi delimitado, o estelionato sentimental decorre da manipulação praticada pelo agente em claro abuso da confiança da vítima.

O Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão sobre o tema, entendeu pelo enquadramento do estelionato sentimental como violação à boa-fé objetiva, confirmando o entendimento ora defendido.

A boa-fé objetiva, convém frisar, irradia-se a todas as relações jurídicas, inclusive as pessoais e familiares, como critério de controle do exercício da autonomia privada, caracterizando regra de conduta. Assim, ainda que o estelionato sentimental, por si só, conduza ao dever de reparação dos danos morais - pois é presumido o abalo psicológico, especialmente aquele vinculado à autopercepção, autoconceito ou autoimagem e ao convívio socioafetivo -, a dimensão dos prejuízos causados é elemento relevante não apenas à gradação do quantum indenizatório, mas também à própria configuração de dano moral”. Danos morais em 55.000,00. (AREsp nº 2.031.122/DF. Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, publicada em 28/03/2022.)

Portanto, é necessário compreender que qualquer um está sujeito a ser vítima de estelionato, seja ele sentimental ou não, pois, por mais esperto e prudente que possa se julgar, o fato de gostar de alguém romanticamente é inerente à condição humana. E, segundo a psicologia, amar é se tornar vulnerável.

O problema surge quando a construção da confiança e credibilidade ocorre através de perfis falsos, histórias bem contadas que nunca existiram e promessas de amor que nunca serão cumpridas. Tais fatores são determinantes para que o golpe ocorra. Por mais cauteloso que se possa ser, amar alguém é entregar-se à vulnerabilidade. O que não pode ocorrer é a confusão entre vulnerabilidade e culpa. Seja de forma on-line ou em um tradicional relacio-

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namento presencial, cuidados devem ser tomados, mas sob pena de se esvaziar o caráter afetivo de um relacionamento, a confiança deve estar presente8, em maior ou menor medida.

Considerando tudo isso, reforça-se a noção de que criar expectativas, ajudar financeiramente ou receber presentes não são ações que, por si só, configuram um ato ilícito. Mas não é isso que ocorre no estelionato sentimental, já que este é um tipo de relacionamento abusivo e, como tal, configura-se o nexo de causalidade não pelo prejuízo financeiro decorrente do suporte mútuo e natural que surge de um relacionamento afetivo. O critério de imputação será um descumprimento ético, uma violação à boa-fé e às expectativas criadas em razão de uma falsa realidade.

A produção de provas no processo de responsabilidade civil por estelionato afetivo deve ser construída, portanto, de forma a demonstrar os danos materiais, relacionando os prejuízos financeiros a uma manifestação de vontade viciada, que decorre da violação da boa-fé pela manipulação e quebra da confiança, sendo o induzimento ao erro a causa do prejuízo econômico.

Quanto aos danos morais, entende-se que a constatação do estelionato sentimental, por sua natureza, invoca a noção de dano in re ipsa, seja porque há uma clara ofensa à dignidade humana, seja porque a violência patrimonial ou psicológica praticada se enquadra na Lei Maria da Penha, quando a vítima é mulher e, segundo o Superior Tribunal de Justiça, configura-se dano moral presumido nestas hipóteses9. Embora a referida lei não se aplique ao homem, entende-se que os fundamentos utilizados pelo STJ

8 HONNETH, Axel. Direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

9 REsp n. 1.675.874/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 28/2/2018, DJe de 8/3/2018.

para a presunção do dano moral, também podem ser aproveitados para o homem vítima de estelionato sentimental.

4. Considerações Finais

Assim, enfrentadas as problematizações sobre a incidência de responsabilidade civil, seus critérios de imputação e produção de provas, resta enfrentar a última problematização importante quanto ao estelionato sentimental, referente à possibilidade de responsabilização dos aplicativos de relacionamento em que a vítima e o agente iniciaram o relacionamento.

É certo que não cabe às plataformas de relacionamento o dever de conferir a veracidade de todas as informações alimentadas pelos usuários, tampouco fiscalizar ou se responsabilizar pela conduta destes usuários fora da plataforma. Contudo, como é de consumo a relação que se estabelece entre os usuários e os aplicativos de relacionamento, a incidência do Código de Defesa do Consumidor atrai a teoria objetiva e, portanto, poderia se questionar o cabimento da reponsabilidade independentemente de culpa. Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro não adota a teoria objetiva pura, ou seja, admite-se excludentes de responsabilidade. Sendo assim, a reponsabilidade das plataformas de relacionamento pode ser excluída por fato exclusivo de terceiro, no caso, quem praticou o estelionato sentimental.

Por outro lado, quando há notificação pelo usuário ou por terceiro sobre violação aos termos de uso, ou direitos de imagem, intimidade, ou ainda fraude, é dever da plataforma averiguar tais informações e proceder à remoção do perfil ou conteúdo falso, sob pena de responsabilidade.

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Caminhando para o fim, reforça-se a importância de pensar a reparação/compensação civil para as vítimas de estelionato sentimental de forma a evitar a revitimização, utilizando a teoria do abuso de direito.

Se, para a vítima, o amor foi uma ficção transformada em pesadelo e para o estelionatário um negócio lucrativo, que a responsabilidade civil seja o despertar para uma nova realidade possível, mais ética, responsável e equilibrada.

Referências

DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira; RABELO, Sofia Miranda. Responsabilidade Civil nas Relações de Afeto: Análise Crítica sobre o Estelionato Afetivo.

IN: ROSENVALD, Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MULTEDO, Renata Vilela (coord). Responsabilidade Civil e Direito de Família. Induiutaba, SP: Editora Foco, 2021.

FERNÁNDEZ, Guillermo Ospina; ACOSTA, Eduardo

Ospina. Teoría general del contrato y del negocio jurídico. 7ª ed., Bogotá, Editorial Temis, 2014.

HONNETH, Axel. Direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

MARQUES, David; LAGRECA, Amanda. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Os crimes patrimoniais no Brasil: entre novas e velhas dinâmicas Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/07-anuario-2022-os-crimes-patrimoniais-no-brasil-entre-novas-e-velhas-dinamicas.pdf.

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O VELHO DANO MORAL E OS NOVOS DANOS – UM DEBATE NECESSÁRIO

Palavras-chave

Danos morais. Danos Extrapatrimoniais. Novos Danos.

Resumo

O presente texto serviu de base para as participações do autor nos eventos promovidos pela Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pela Escola Superior da Advocacia – ESA, em São Paulo, no dia 09/03/2023, e em Recife, em 14/09/2023.

Uma versão aumentada desse texto (Os novos danos e a responsabilidade civil no direito comparado e brasileiro: necessidade, conveniência ou inadequação da importação de novas etiquetas) será publicada na coletânea “A promoção da pessoa humana na legalidade constitucional: estudos em homenagem a Maria Celina Bodin de Moraes”, e outra ainda mais expandida (Necessidade, conveniência ou inadequação da importação de novas etiquetas de danos: em busca de maior cientificidade e objetividade no universo dos danos morais) será publicada na Revista Jurídica Luso-Brasileira.

Eugênio Facchini Neto

Eugênio Facchini Neto. Doutor em Direito Comparado (Florença/Itália), Mestre em Direito Civil (USP). Professor Titular dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/RS. Ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS. Desembargador do TJ/RS.

Introdução

A responsabilidade civil, especialmente a partir da segunda metade do século XX, vem se mostrando cada vez menos preocupada com a identificação de uma conduta culposa do agente causador do dano e mais interessada na proteção à vítima de dano injusto1. Trata-se de um reflexo da valorização do princípio da solidariedade, erigido a objetivo fundamental da República (art. 3º, I, da Constituição Federal) e destinado a afetar todos os institutos jurídicos. Em relação aos danos indenizáveis, ao lado dos danos materiais ou patrimoniais, passou-se igualmente a ganhar relevância a compensação de danos de natureza imaterial. A esse respeito, salvo raras exceções, nossa legislação privilegia o uso da expressão “dano moral” (art. 5º, inc. V e X, da CF; art. 186 do Código Civil; art. 6º, inc. VI e VII, e 54-D, parágrafo único, do CDC, exemplificativamente). Essa também é a terminologia mais difundida na doutrina clássica e na jurisprudência pátria. A doutrina mais crítica, porém, prefere a denominação “dano extrapatrimonial” para identificar aqueles danos que não se resumem à esfera patrimonial. Essa também foi a terminologia adotada pelo legislador em mais recente intervenção, como ocorreu com reforma trabalhista de 2017, ocasião em que os artigos 223-A, 223-B, 223-E, 223-F, além do Título II-A, passaram a adotar expressamente a expressão “dano extrapatrimonial”.

À luz desse pano de fundo, enfrenta-se um dos aspectos mais controvertidos na responsabilidade civil contemporânea brasileira: se é necessária ou con-

1 Por todos, BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 29; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Perspectivas a partir do direito civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.) Direito Civil Contemporâneo. Novos problemas à Luz da Legalidade Constitucional. São Paulo: Ed. Atlas, 2008, p. 33, e BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana. Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 112.

veniente a identificação de múltiplos danos não patrimoniais, diversos entre si, ou se, ao contrário, trata-se de uma indevida e desnecessária importação de ‘estrangeirismos’, já que a ampla figura dos danos morais, consagrada majoritariamente entre nós, é suficiente para resolver todos os problemas que, em outros ordenamentos jurídicos, exigem a multiplicação de espécies de danos.

Se examinados os processos que tramitam sob o rótulo de danos morais, percebe-se uma extensa variedade de temas que se abrigam sob esta denominação, desde danos relevantes, como a dor sofrida pela morte de ente querido, lesões sérias à integridade psicofísica, torturas sofridas durante o período da ditadura militar, até questões bem mais amenas – questionáveis, algumas – envolvendo recusa de concessão de cartão de crédito, lançamentos não autorizados de débito automático em conta corrente, atraso no serviço de reparo de veículo ou na entrega de bem adquirido, defeitos detectados em objetos comprados, especialmente veículos, cobrança indevida de multa de trânsito, infiltrações ocorridas em apartamentos, atraso de voo aéreo, mau funcionamento de porta giratória em banco, espera excessiva por atendimento em fila de guichê bancário, corte ou interrupção no fornecimento de água ou de energia elétrica, ou de serviço de telefonia, etc.

A ausência de critérios objetivos para identificar o que sejam danos morais, ou danos extrapatrimoniais, leva alguns operadores práticos a identificarem como tais quaisquer danos que não sejam materiais ou patrimoniais. A superficialidade de uma tal postura, que permite a propositura de demandas frívolas, levou alguns a sustentar a presença de uma “indústria do dano moral”2, a ser combatida. Outros defen-

2 No direito estrangeiro, esse sentimento de preocupação por uma extensão ilimitada de pretensões reparatórias é traduzido criticamente também por expressões como “loteria dos danos” (P.S. Atyah. The Damages Lottery. Oxford: Hart Publishing, 2000

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dem que se há uma “indústria” é porque existe matéria-prima, ou seja, vivemos em uma sociedade que desrespeita direitos alheios e que, portanto, uma das respostas jurídicas possíveis realmente passa pela possibilidade de uma ação indenizatória. E há quem procure critérios para identificar os verdadeiros danos extrapatrimoniais (ou morais), merecedores de tutela aquiliana, distinguindo-os daqueles outros que seriam “meros dissabores da vida cotidiana”, que não justificariam uma resposta da responsabilidade civil.

Para contornar tais dificuldades revela-se útil conhecer algumas figuras que foram sendo criadas, pela doutrina ou pela jurisprudência – algumas com acolhimento legislativo -, identificando a presença de danos extrapatrimoniais em determinadas situações, nem sempre ligadas à presença de aspectos anímicos. Algumas dessas figuras provêm do vetusto direito romano, como a actio iniuriarum, da qual derivou a proteção do direito à honra. Outras figuras são mais recentes, como o dano ao projeto de vida, dano ao direito à identidade, dano existencial, etc.

A dúvida que se impõe é se essas figuras são necessárias, úteis ou convenientes em nosso direito, que se baseia em um conceito amplo de dano moral, cuja compreensão é larga e elástica o suficiente para abranger aquelas figuras. Defender-se-á, nesse artigo, que tais figuras não são legalmente necessárias, mas são muito convenientes, especialmente sob um enfoque prático, contribuindo para afastar o subjetivismo por vezes imperante nessa área.

O artigo estrutura-se em quatro partes. Na primeira, analisar-se-á o modelo brasileiro de proteção dos danos extrapatrimoniais, em confronto com os mo(a primeira edição é de 1997), e “precificação das lágrimas” (Muriel Fabre-Magnan, Le dommage existentiel. Recueil Dalloz, 2010, p. 2376. Disponível em https://www.dalloz-actualite.fr/ revue-de-presse/dommage-existentiel-20101026. Acesso em 26/06/2023).

delos estrangeiros. Na segunda, subdividida em três partes, será exposta a concepção brasileira de danos morais, sua origem e evolução. A terceira exporá uma breve visão da proteção da pessoa, pela via da responsabilidade civil, em alguns países. Na etapa derradeira, defender-se-á a conveniência da importação de uma mais ampla categoria de danos não patrimoniais.

1. O Modelo Brasileiro De Proteção Dos Danos Extrapatrimoniais

Em Perspectiva Comparada.

O pano de fundo do questionamento suscitado introdutoriamente reside no fato de que nosso ordenamento jurídico se manteve, com o código civil de 2002, no interior da tradição latina da atipicidade da responsabilidade civil extracontratual, afastando-se do modelo germânico da semi-tipicidade, mas sem se alinhar perfeitamente ao modelo francês puro da atipicidade. De fato, o primeiro consagra três pequenas cláusulas gerais que especificam os interesses que, se lesados forem, abririam caminho para a indenização, com destaque para o §823 do BGB, que explicita tais interesses: vida, saúde, corpo (integridade física), liberdade, propriedade ou algum outro direito (“ein sonstiges Recht”) assemelhado3 Já o modelo francês, na cláusula geral do art. 1382 do código napoleônico (fórmula remanejada para o atual art. 1240 do CC, com a reforma de 2016), não especifica os interesses protegidos, nem indica outros requisitos para desencadear o dever de reparar danos que não o nexo de causalidade e a culpa: “tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui um dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer”.

3 Para uma clássica e aprofundada exposição do sistema da responsabilidade civil no direito alemão, v. MARKESINIS, Basil S. The German Law of Obligations. Vol. II. The Law of Torts: A Comparative Introduction. 3rd. Ed. Oxford: Oxford University Press, 1997.

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A linha seguida pelo CC de 2002, à luz do seu art. 186, parece seguir a via adotada pelo Código civil português, na primeira parte do seu art. 483, 1. Ambas as fórmulas se distanciam do modelo germânico, mas ao mesmo tempo se afastam do modelo normativo puro francês, ao exigirem a ilicitude da conduta. Todavia, o modelo brasileiro é mais flexível, pois as cláusulas gerais do diploma civilista permitem ao judiciário “promover alargada construção do direito dos danos”4 5

Especificamente quanto aos danos morais, nosso Código civil se afasta dos modelos dos códigos alemão e italiano, que só admitem a compensação dos danos morais nos casos previstos em lei, substancialmente aqueles decorrentes da prática de um ilícito penal (art. 2059 do Código Civil italiano e § 253 do BGB). Tampouco acolheu a orientação constante do art. 496 do CC português: “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito”.

Assim, diante dos amplos termos da cláusula geral do art. 186 do Código Civil, não haveria necessidade de se reconhecer espécies autônomas de danos extrapatrimoniais, já que a irrestrita noção de danos existente em nosso ordenamento seria suficientemente vaga a ponto de acolhê-las.6 Mas, por não ter

4 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson L. Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002, p. 129.

5 Sinde Monteiro refere que o Código brasileiro consagrou a compensabilidade dos danos morais sem fornecer nenhum tipo de critério para sua identificação – SINDE MONTEIRO, Jorge. Responsabilidade civil: o novo Código Civil do Brasil face ao direito português, às reformas recentes e às actuais discussões de reforma na Europa. In: CALDERALE, Alfredo (a cura di). Il nuovo codice civile brasiliano. Milano: Dott. A. Giuffrè Ed., 2003, p. 314.

6 É o que expressamente referem Farias, Braga Netto e Rosenvald, ao lembrarem que tanto a Constituição brasileira quanto o Código Civil empregam a expressão danos morais “para se referir a todas as espécies de danos não patrimoniais”, razão pela qual a alusão à categoria de danos não patrimoniais ou extrapatrimoniais “é desnecessária, pois vivemos em um sistema

adotado as cautelas previstas no direito português, fica mais difícil demarcar os danos morais dos meros incômodos. Destarte, embora admitindo não haver necessidade de se acolher, em nosso direito, novas etiquetas de danos extrapatrimoniais, procurar-se-á demonstrar que é conveniente fazê-lo, como forma de se evitar subjetivismos na caracterização dos danos morais. Isso se deve ao fato de nossa cláusula geral de compensação de danos morais apresentar conteúdo vago, impreciso e indeterminado, não fornecendo parâmetros objetivos, racionais e isonômicos para identificá-los.

O reconhecimento de novas figuras de danos indenizáveis não resultará em um potencial aumento do número de demandas. O efeito, acredita-se, será o contrário. Diante de uma específica espécie de dano, é possível identificar objetivamente quais são as suas características e quais requisitos devem estar presentes para que ela seja reconhecida.

Passa-se, agora, à exposição da evolução sobre a noção de “danos morais” no Brasil, para se compreender o ‘estado da arte’ e, a partir daí, identificar alternativas.

2. Danos Morais No Brasil: Uma

História Ainda Em Desenvolvimento.

No Brasil, fomos de uma tardia aceitação dos danos morais a um entusiasmado e quase irrestrito acolhimento da ideia. Neste percurso, acabamos nos desviando da modelagem oferecida pela experiência comparada: atrelamos os “danos morais” predominantemente a sentimentos (dor, sofrimento, angústia).

aberto”. Para eles “dano moral pode ser conceituado como uma lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela” – FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 307 e 312. .

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Podemos identificar concepções distintas sobre o que são os danos morais: uma concepção mais ampla e tradicional (sentimentalista); uma concepção mais restrita (consequencialista) e uma concepção mais moderna (ligada ao direito civil-constitucional). Passa-se à breve análise de cada uma delas.

2.1 Concepção Tradicional (Sentimentalista).

Essa concepção adota um conceito negativo: dano moral seria todo o dano não patrimonial, uma espécie de ‘conceito guarda-chuva’, sob o qual se reúnem as mais variadas espécies de danos e prejuízos imateriais, vinculados a sentimentos.

No direito comparado costuma-se apontar para o caso inglês Scott v. Shepherd (1773) como o precursor do acolhimento dessa noção de danos morais (pain and suffering), no qual se reconheceu que a vítima sofrera tormentos e dores lancinantes em razão de um acidente com um rojão.7

Uma vez que somente em época mais recente a Common Law passou a ser objeto de estudo e interesse pelos juristas da tradição romano-germânico, a origem da noção de ‘danos morais’ que nos influenciou é oriunda da França: em 1939 René Savatier afirmou que “dano moral é todo sofrimento humano não causado por uma perda pecuniária”8.

Esta concepção foi aceita por clássicos doutrinadores brasileiros, como Wilson Melo da Silva 9, Orlando

Gomes10, Silvio Rodrigues11 dentre outros, além de ter grande presença ainda hoje na jurisprudência.

2.2. Concepção Consequencialista

Uma concepção posterior, que chamamos de consequencialista, foi encabeçada por Aguiar Dias12, mais tarde acompanhada por Maria Helena Diniz13 e outros juristas.

Sob essa orientação, a caracterização do dano moral não estaria vinculada à natureza do interesse lesado, mas sim à repercussão (consequências) da lesão sobre a vítima.

Assim, seria possível ocorrer dano patrimonial em consequência de lesão a um bem não patrimonial, bem como a ofensa a um bem material poderia acarretar um dano moral a alguém. Exemplo da primeira situação poderia ser o de uma modelo que viesse a sofrer lesões corporais (bem não patrimonial) das quais resultassem cicatrizes deformantes (com potenciais reflexos patrimoniais). Exemplo da segunda hipótese seria o extravio de uma aliança de casamento que fosse deixada a um ourives, para fim de estreitamento ou alargamento, ou o extravio de um álbum de fotografias encaminhado para reparos. Os bens extraviados teriam conteúdo patrimonial, mas seu significado para o proprietário ultrapassa em muito o valor daqueles, disso derivando danos morais compensáveis.

7 Sobre esse caso, v. ROGERS, W. V. H. Winfield and Jolowicz on Tort. 16th ed. London: Sweet & Maxwell, 2002, p. 68, e LUNNEY, Mark; NOLAN, Donal; OLIPHANT, Ken. Tort Law. Text and Materials. 6th ed. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 8/9.

8 SAVATIER, René. Traité de la responsabilité civile em droit français civil, administratif, professionnel, procédural. T. II – Conséquences et aspects divers. Paris: L.G.D.J., 1939, n. 525.

9 SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 14.

10 GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1961, n. 191 e 195, p. 364 e seg; GOMES, Orlando. Responsabilidade Civil. Texto revisado, atualizado e ampliado por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2011, p. 76.

11 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol. 4 – Responsabilidade Civil. 9ª. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1985, p. 206.

12 DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Vol. II. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 414 e seg..

13 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 7 – Responsabilidade Civil. 21ª. ed. rev. E atual. São Paulo: Ed. Saraiva, 2007, p. 88/89.

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Todavia, ainda que essa segunda concepção seja bem melhor do que a primeira, a ela ainda se poderia endereçar as mesmas críticas que atingem a primeira, ou seja, de que nenhuma das concepções fornece um conceito ‘positivo’ de danos morais. Não indicam seus pressupostos e requisitos, aludindo apenas aos efeitos anímicos, que são apenas sintomas, consequências14,15 não a essência do dano, deixando ainda demasiada margem para algum arbítrio na sua identificação.

2.3. Concepção Sob a Ótica do Direito Civil-Constitucional

Maria Celina Bodin de Moraes, Paulo Netto Lôbo, 16 Anderson Schreiber17 e outros juristas vinculados à escola do chamado direito civil-constitucional, identificam os danos morais como violação da cláusula geral de tutela da pessoa humana, aludindo à violação à dignidade humana18, lesão a direitos de personalidade, danos à pessoa.

Maria Celina19 distingue os danos morais objetivos, que seriam aqueles que ferem quaisquer dos aspec-

14 Como refere Zannoni, “el dolor, la angustia, la aflicción física o espiritual, la humillación y, en general, los padecimientos que se han infligido a la víctima del evento dañoso (..) no son sino estados del espíritu, consecuencia del daño” – ZANNONI, Eduardo A. El daño em la responsabilidad civil. 3ª. ed. actual. y ampl. Buenos Aires: Ed. Astrea, 2005, p. 152 e 153.

15 Cavalieri vincula o dano moral à agressão a atributo da personalidade ou à dignidade humana, sendo que a dor, vexame, sofrimento ou humilhação só devem ser reputadas como dano moral se, “fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo”– CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11ª. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2014, p. 111.

16 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 6, 2001, p. 79-97.

17 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 16.

18 Vinculando o dano moral à dignidade da pessoa e referindo que “el sufrimiento no es un requisito indispensable para que exista daño moral”, v., no direito argentino, GHERSI, Carlos Alberto. Cuantificación Económica. Daño moral y psicológico. Buenos Aires: Ed. Astrea, 2006, p. 130 e 131.

19 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro:

tos componentes da dignidade da pessoa (fundada em quatro substratos: igualdade, integridade psicofísica, liberdade e solidariedade), dos danos morais subjetivos, caracterizados por exacerbada dor, sofrimento, angústia, tristeza ou humilhação à vítima. Nessa senda parece estar caminhando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se vê de alguns de seus julgamentos - AgRg no Agravo no REsp 395.426, REsp 1647452, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.838.972, REsp n. 202.564, REsp n. 944.308, REsp n. 1.406.245, dentre outros.20

Vinculando-se os danos morais à violação dos direitos da personalidade, obtém-se um grande ganho de objetividade, ainda que se leve em conta o fator complicador consistente no fato de que os direitos de personalidade não configuram numerus clausus21. Diante da centralidade da pessoa humana no ordenamento jurídico e do contínuo avanço da civilização jurídica, cada vez mais nos sensibilizamos frente a novos aspectos do ser humano que achamos merecer proteção. Assim surgiu, há mais tempo, a proteção do direito à imagem da pessoa e, há menos tempo, a tutela do seu direito à identidade, para citar dois exemplos. Nessa caminhada, devemos dirigir nosso olhar para experiências jurídicas mais antigas e consolidadas, o que nos ajuda a identificar possíveis vias a serem trilhadas.

Doutrinariamente, podem-se identificar danos aos direitos da personalidade da pessoa humana nas Renovar, 2003, p. 156 e seg.

20 Observe-se que nas V Jornadas de Direito Civil/STJ, aprovou-se o enunciado 445, desvinculando o dano moral de sentimentos: “Art. 927: O dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento”.

21 Acolhe-se, aqui, a concepção da existência de um direito geral de personalidade, tal como defendido por CAPELO DE SOUSA, Rabindranath V. A. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Ed., 1995; SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2ª. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, esp. p. 55s, 93s e 114s, além de outros autores.

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suas diversas esferas, como ser humano biológico (vida e saúde – danos à integridade psicofísica, abrangendo também os danos estéticos), ser humano moral (danos à integridade moral, privacidade/intimidade22, vida privada23,24 identidade, nome, imagem, honra, etc.), e ser humano social (envolvendo danos à reputação, ao respeito, condutas discriminatórias, etc).25 Pela própria tipologia dos direitos de personalidade acima destacados, de forma não exaustiva26, percebe-se que sua proteção se justifica especialmente por representarem, segundo Schreiber, típicos direitos fundamentais27

22 No direito norte-americano, a noção de direitos de personalidade foi em grande parte absorvida pela extensa concepção do right to privacy por lá desenvolvida, como se percebe da leitura de PAGE, Joseph A. American tort law and the right to privacy. In: BRÜGGEMEIER, Gert; CIACCHI, Aurelia Colombi; O’CALLAGHAN, Patrick (Ed.). Personality Rights in European Tort Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 38/72. Sobre a proteção dos direitos da personalidade pela via da responsabilidade civil na Europa, remete-se a BRÜGGEMEIER, Gert. Protection of personality rights in the law of delict/torts in Europe: mapping out paradigms. In: BRÜGGEMEIER, Gert; CIACCHI, Aurelia Colombi; O’CALLAGHAN, Patrick (Ed.). Personality Rights in European Tort Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 5-37.

23 No direito francês, o desenvolvimento dos direitos de personalidade foi feito substancialmente a partir da proteção da “vie privée”, especialmente após sua inclusão no art. 9 do Código Civil francês, pela Lei 70-643, de 17.07.1970, sob a fórmula “chacun a droit au respect de la vie privée” – nesse sentido, SUDRE, Frédéric. La vie privée, socle européen des droits de la personnalité. In: RENCHON, Jean-Louis (dir.). Les droits de la personnalité. Bruxelles: Bruylant Ed., 2009, p. 4.

24 O Código Civil argentino de 2015 dedica um artigo específico à proteção da vida privada, em termos amplos, como se vê do seu art. 1770: “Protección de la vida privada El que arbitrariamente se entromete en la vida ajena y publica retratos, difunde correspondencia, mortifica a otros en sus costumbres o sentimientos, o perturba de cualquier modo su intimidad, debe ser obligado a cesar en tales actividades, si antes no cesaron, y a pagar una indemnización que debe fijar el juez, de acuerdo con las circunstancias. (…).”

25 Uma boa análise dos mais conhecidos direitos de personalidade encontra-se em VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direitos de personalidade. Coimbra: Ed. Almedina, 2014, p. 68 e seg.

26 Para critérios classificatórios diversos, v. LIMONGI FRANÇA, Rubens. Direitos privados da personalidade Subsídio para sua especificação e sistematização. Revista dos Tribunais, vol. 370 (1968), p. 7 e s, e CIFUENTES, Santos. Derechos personalísimos. Buenos Aires: Ed. Astrea, 2008, p. 213.

27 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo:

Moderno autor francês28 refere que a responsabilidade civil da contemporaneidade é caracterizado por três aspectos: “o dano está em extensão, a culpa em regressão, a causalidade em desconstrução”. Isto se deve porque uma sociedade civilizada deve fazer todo o possível para reduzir ao mínimo a ocorrência de danos evitáveis e, quando estes acontecem, tomar todas as medidas necessárias para que eles sejam reparados ou compensados.29

Os sistemas jurídicos fornecem uma proteção legal mais ou menos forte, de acordo com a hierarquia dos bens ou interesses visados. Lawson e Markesinis30, analisando os fatores que os sistemas jurídicos costumam levar em conta para elaborar uma ‘política’ (policy) na área da responsabilidade civil, indicam o “superior value factor” como o primeiro deles. Segundo esses autores, uma preocupação primacial de qualquer sistema jurídico consiste na proteção de certos bens ou interesses aos quais as pessoas daquela comunidade atribuem valor. Uma hierarquia é então estabelecida a partir de considerações morais, econômicas, filosóficas, políticas, variáveis a cada época histórica, disso resultando que o direito contemporâneo fornece melhor proteção aos interesses socialmente mais valorizados: liberdade, exemplificativamente, é mais relevante do que propriedade; integridade física de uma pessoa é mais importante do que sua integridade patrimonial, etc.

Ed. Atlas, 2011, p. 13.

28 MOLFESSIS, Nicolas. La psychologisation du dommage. In: LEQUETTE, Yves; MOLFESSIS, Nicolas (Dir.). Quel avenir pour la responsabilité civile? Paris: Dalloz, 2015, p. 40. Essa visão lembra muito aquela divulgada entre nós por SCHREIBER, A. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil. Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. São Paulo: Atlas, 2007.

29 Nesses termos, TUNC, André. Préface. In: VINEY, Geneviève. Le déclin de la responsabilité individuelle. (Coleção Anthologie du Droit). Paris: L.G.D.J., 2014 (reedição da edição original, de 1965), p. III.

30 LAWSON, F. H. e MARKESINIS, B. S. Tortius Liability for Unintentional Harm in the Common Law and the Civil Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 49.

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O problema da seleção dos interesses dignos de tutela jurídica é uma das modernas preocupações no âmbito da responsabilidade civil. Em nosso direito, A. Schreiber31 preocupa-se pelo fato de inexistirem, muitas vezes, dados normativos a indicar uma hierarquia entre os interesses tuteláveis, disto redundando que acaba tocando ao magistrado a tarefa de selecionar empírica e concretamente os interesses dignos de tutela.

É nesse cenário de identificação dos bens e interesses que merecem uma proteção privilegiada dos sistemas jurídicos que surgiu a noção de dano à pessoa humana32, o que representou uma mudança revolucionária, nas palavras de Iturraspe33.

Também o peruano Sessarego34 refere que em meados do século XX houve uma revolucionária inversão na concepção do homem, a partir da qual a pessoa humana passou a ocupar lugar cimeiro no ranking dos valores e prioridades. Isso acarretou não só o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, mas de todo o Direito. Seus reflexos no campo da responsabilidade civil foram notáveis, pois obrigou a uma revisão de seus pressupostos e a ver-se transformada no novo ‘Derecho de Daños’. Isso explica facilmente o surgimento, por volta da década

31 SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2012, p. 167.

32 Do ponto de vista legislativo, apenas o Código Civil peruano, de 1984, faz expressa menção a esse tipo de dano, prevendo, no seu art. 1.985 que: “O ressarcimento compreende as consequências que decorrem da ação ou omissão geradora do dano, inclusive o lucro cessante, o dano à pessoa e o dano moral, devendo existir uma relação de causalidade adequada entre o fato e o dano produzido. Sobre o montante do ressarcimento fluem os juros legais desde a data na qual se produziu o dano.”

33 ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por Daños –Tomo I – Parte General. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2004, p. 313 e 314, e ITURRASPE, Jorge Mosset. El valor de la vida humana. 4. ed. ampl y actual. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Ed., 2002, p. 34/36.

34 SESSAREGO, Carlos Fernández. Prólogo. Osservatorio de Derecho Civil. Vol. 13. La Responsabilidad Civil. Lima: Motivensa Editora Jurídica, 2012, p. 23, 31 e 32.

de sessenta35, do conceito de dano à pessoa, que acaba por deslocar a proteção ao patrimônio a um escalão inferior.

Essa evolução – ou revolução - foi possível quando a técnica da interpretação conforme a Constituição se disseminou. Foi o que ocorreu na Itália, por exemplo, cujo Código Civil, de 1942, em seu art. 2.05936, permite a tutela dos danos extrapatrimoniais somente nos casos previstos na lei – o mesmo ocorrendo na Alemanha -, fazendo remissão a dispositivos penais. A clássica interpretação deste artigo era no sentido de que somente nas hipóteses em que o dano não patrimonial resultasse de um delito é que seria ele passível de indenização na esfera cível. Quando os juízes passaram a levar a sério as previsões constitucionais, esse quadro foi superado, pois “o sistema de valores pessoais introduzido pela Constituição consentiu mais facilmente aos juízes alargar o elenco dos interesses juridicamente tuteláveis”.37

Trata-se de uma tendência amplamente difusa, como se percebe da leitura do clássico André Tunc38, na qual analisa a evolução e os fundamentos da responsabilidade civil no direito comparado em 35 A expressão “danos à pessoa” é atribuída a Guido Gentile, no verbete com esse título que elaborou para a Enciclopedia del diritto, em 1962, embora já no séc. XIX Melchiorre Gioia já defendia a proteção aquiliana plena da pessoa e suas emanações. Para uma resenha do seu pensamento, bem como de outros precursores de tal visão, veja-se GONZÁLES, Carlos Agurto e MAMANI, Sonia Lidia Quequejana. Las Orígenes del ‘daño a persona’ en Italia. In: Osservatorio de Derecho Civil. Vol. 13. La Responsabilidad Civil. Lima: Motivensa Editora Jurídica, 2012, p. 77 e seguintes.

36 “Art. 2.059. Danni non patrimoniali. Il danno non patrimoniale deve essere risarcito solo nei casi determinati dalla legge (Cod. Proc. Civ. 89; Cod. Pen. 185, 598)”.

37 VISINTINI, Giovanna. I Fatti Illeciti. Vol. I. Ingiustizia del danno. Padova: Cedam, 1997, p. 89. No mesmo sentido, v. CASTRONOVO, Carlo Danno biologico – Un itinerario di diritto giurisprudenziale. Milano: Giuffrè, 1998, p. 1, e MONATERI, Pier Giuseppe. Trattato di Diritto Civile (Org. por Rodolfo Sacco), Le Fonti delle Obbligazioni, vol. 3 - La Responsabilità Civile. Torino: Utet, 1998, p. 5.

38 TUNC, André. La Responsabilité Civile. 2. ed. Paris : Economica, 1989, p. 149.

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geral e refere que “a ideia de garantir os direitos dos cidadãos tem desempenhado um papel incontestável no direito da responsabilidade civil, um papel que não cessa de crescer e que constitui certamente uma de suas funções”.

Passa-se a examinar, na sequência, como a questão da proteção de direitos e interesses não patrimoniais é feita no direito comparado, para se verificar se soluções lá sugeridas ou praticadas são úteis ou compatíveis com o nosso direito.

2.4. A Tutela da Pessoa Humana, Pela Responsabilidade Civil, no Direito Comparado. 39

No direito comparado há inúmeras figuras de danos indenizáveis, quase todas criadas ou desenvolvidas especialmente pela jurisprudência, por vezes pela doutrina, raramente pelo legislador. Muitas dessas figuras são compatíveis com nosso ordenamento jurídico e também vêm sendo acolhidas pelos nossos tribunais.

O tipo de dano não patrimonial reconhecido e mais difundido em todas as tradições jurídicas é o chamado dano moral puro, ainda que com denominações nem sempre homólogas: danni soggettivi (Itália), pain and suffering (países de Common Law), dommage moral (França e Bélgica), Schmerzensgeld (Alemanha, Áustria).

Pode-se dizer ser esse o modelo embrionário, o protótipo do qual as outras figuras, ao longo do tempo, se destacaram, em razão de algumas peculiaridades. O dano moral puro envolve sensações - dor e

39 Para um maior desenvolvimento, remete-se a FACCHINI NETO, Eugênio; FERRARI, Graziela M. R. A Tutela Aquiliana de Direitos Fundamentais no Direito Comparado: o caso dos danos biológicos, danos existenciais e danos ao projeto de vida.". In: Matheus de Castro, Maria Cristina Cereser Pezzella e Janaína Reckziegel (Org.). SÉRIE DIREITOS FUNDAMENTAIS CIVIS - A Ampliação dos Direitos Subjetivos no Brasil e na AlemanhaTomo II. 1ed.Chapecó/SC: UNOESC, 2014, p. 79-118.

sofrimento intensos, vexame, humilhação, angústia, etc. Como regra, exige-se uma intensidade objetiva inquestionável. Na experiência italiana, costuma-se dizer que essa espécie de dano se caracteriza pela ‘transitória perturbação do estado de ânimo da vítima’, sem reflexos externos ou permanentes na vida do lesado.

Ao lado dos danos morais puros, porém, reconhecem-se outras espécies de danos, cada uma delas com seus requisitos ou pressupostos. Aqui, nem sempre a dor, sofrimento, humilhação, estão presentes. Assim, encontram-se as seguintes figuras, muitas delas conhecidas entre nós e presentes em nossa jurisprudência: danos estéticos, danos à imagem, danos à intimidade/privacidade, danos psíquicos, danos biológicos (ou danos à integridade psicofísica)40, danos existenciais41, danos ao projeto

40 Viney e Jourdan (VINEY, Geneviève e JOURDAIN, Patrice. Traité de Droit Civil (dir. de Jacques Ghestin). Les effets de la responsabilité. 2. ed. Paris: L.G.D.J., 2001, p. 206) informam que presentemente os tribunais franceses costumam isolar, para avaliá-los separadamente, os diferentes tipos de danos que podem acarretar uma lesão à integridade física.

41 Acolhe-se, aqui, a noção de danos existenciais apresentada pela Corte de Cassação, na decisão n. 6572, proferida em 24.03.2006, pelo seu órgão máximo na jurisdição civil (Sezione Unite), onde se afirmou que “por dano existencial entende-se qualquer prejuízo que o ilícito (...) provoca sobre atividades não econômicas do sujeito, alterando seus hábitos de vida e sua maneira de viver socialmente, perturbando seriamente sua rotina diária e privando-o da possibilidade de exprimir e realizar sua personalidade no mundo externo. Por outro lado, o dano existencial funda-se sobre a natureza não meramente emotiva e interiorizada (própria do dano moral), mas objetivamente constatável do dano, através da prova de escolhas de vida diversas daquela que seriam feitas, caso não tivesse ocorrido o evento danoso” (tradução livre da reprodução parcial do acórdão, colacionada por Gregor Christandl, na sua obra La Risarcibilità del Danno Esistenziale, Milano: Giuffrè, 2007, p. 326). Em razão de uma indevida interpretação extensiva e pouco rigorosa do que fossem danos existenciais, a Corte de Cassação, pelas suas Sezione Unite (sent. n. 26972, de 11.11.2008), especificou que os danos existenciais só podem ser reconhecidos se forem uma decorrência de violação de direitos fundamentais da pessoa, acrescentando que tais danos devem ser graves e sérios, excluindo-se, assim, os chamados “danos bagatelares” e de outros interesses não constitucionalmente relevantes. Afirmou, ainda, que tais danos devem ser provados, não se admitindo que

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de vida42, dano à identidade pessoal43, dano da morte (também chamado de dano tanatológico44, dano catastrófico e, na França, de angoisse de la mort imminente), entre outros. Alguns são melhor conhecidos pelas suas expressões no idioma onde foram primeiro reconhecidas, como mobbing, bullying, stalking45, loss of amenities of life/préjudice d’agréfossem aceitos como danos in re ipsa – sobre isso, v. a análise de ALPA, Guido. La responsabilità civile. Principi. Seconda edizione. Milano: UTET/Wolters Kluwer It., 2018, p 428.

42 Trata-se de uma figura de dano criada pelo jurista peruano Carlos Fernández Sessarego, que em diversos escritos seus manifestou-se sobre essa importante espécie de dano. Dentre eles, destaco: SESSAREGO, Carlos Fernández. Trascendencia y reparación del “Daño ao proyecto de vida” en el umbral del siglo XXI. In: HERNÁNDEZ, Carlos Arturo et al. (Ed.) La responsabilidade civil (Vol. 19 da coleção Tendencias Contemporáneas del Derecho). Bogotá: Universidad Libre, 2014, p. 351-432, bem como o capítulo VII de SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho y persona. 5ª. ed. actual. y ampl. Buenos Aires – Bogotá: Astrea Ed., 2015, p. 225-261. Tal figura de dano foi expressamente contemplada como dano compensável, pelo art. 1738 do novo Código Civil argentino (2015).”

43 Sobre esse dano, originado da Itália, v. PINO, Giorgio. Il diritto all’identità personale. Interpretazione costituzionale e creatività giurisprudenziale. Bologna: Il Mulino, 2003; em outros países, v. SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidade personal. Buenos Aires: Ed. Astrea, 1992; CHOERI, Raul Cleber da Silva. Direito à Identidade na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010; PIZARRO, Ramón Daniel; VALLESPINOS, Carlos Augusto. Tratado de Responsabilidad Civil. Tomo III, cap. F). Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Ed., 2018. 44 Com exceção de Portugal e, em casos excepcionais (quando a pessoa gravemente ferida tem consciência da extensão das lesões sofridas e da iminência da morte) na Itália e na França, os ordenamentos jurídicos contemporâneos não admitem a morte como dano em si, a gerar o direito a uma compensação a ser transmitido hereditariamente ao seu espólio – nesses termos ROGERS, W. V. Horton. Comparative Report of a Project Carried Out By the European Centre for Tort and Insurance Law. In: ROGERS, W. V. Horton (ed.). Damages for Non-Pecuniary Loss in a Comparative Perspective. Wien: Springer-Verlag, 2001, p. 247. Na Itália, após breve hesitação da Corte Cassação, em razão da decisão isolada de n. 1361, em 23.1.2014, as Sezione Unite da Cassação unificaram a jurisprudência daquela Corte (sent. n. 15350, de 22/07/2015), afirmando não ser reparável no direito italiano o lá chamado “danno da perdita della vita". Essa orientação vem sendo desde então observada. Para uma visão do tema no direito português e brasileiro, defendendo a reparabilidade de tal tano, v. ROSENVALD, Nelson. O dano-morte: a experiência brasileira, portuguesa e os vindicatory damages. Revista de Direito da Responsabilidade. Ano 3, 2021, p. 157-183.

45 Sobre esse tema, no direito italiano, v. ZANASI, Francesca Maria. Il risarcimento del danno da stalking. In: CENDON, Paolo

ment (perda das amenidades da vida)46, wrongful conception, wrongful birth, wrongful life47, nervous schock (ou psychiatric injury), prenatal injuries, préjudice sexuel, préjudice d’établissement, préjudice de contamination, préjudice d’anxiété, préjudice d’accompagnement, dentre outros.48

O importante é reter que cada uma dessas espécies de danos tem certas características e exige, para seu reconhecimento, a comprovação de determinados requisitos. A importância disso será realçada no próximo item, a fim de justificar a conveniência da adoção desse modelo.

3. Necessidade ou Conveniência da Importação de uma Ampla Categoria de Danos Não Patrimoniais.

Defende-se, aqui, a posição da desnecessidade da importação de figuras específicas de danos não patrimoniais para o nosso direito. Isso porque, como dito, nosso ordenamento jurídico filia-se ao mode(Dir.). Responsabilità Civile. Vol. Secondo. Milanofiori Assago; UTET Giuridica/Wolters Kluwer, 2017, p. 2.511 e seg.

46 A figura do préjudice d’agrément (conhecido na esfera da common law como loss of amenities of life), foi precocemente reconhecida pela jurisprudência francesa, em 1937. A partir dos anos sessenta sua invocação passou a ser mais intensa, passando a jurisprudência por tendências sucessivas – ora mais expansivas, ora mais restritivas, como a que atualmente predomina. Sobre esses diversos momentos, , com indicação de jurisprudência, v. FACCHINI NETO, Eugênio. Desenvolvimento, tendências e reforma da responsabilidade civil na França: ruptura ou continuidade na busca de sempre ampliar a tutela da pessoa?. civilistica.com, ano 10, n. 2 (2021), p. 15/16.

47 Sobre essa tríade, v. PETEFFI DA SILVA, Rafael. Wrongful Conception, Wrongful Birth e Wrongful Life: possibilidade de recepção de novas modalidades de danos pelo ordenamento brasileiro. Revista Ajuris, n. 117, março de 2010, p. 311-341. 48 Não há espaço, aqui, para o desenvolvimento de cada uma dessas figuras. Sobre elas já tive oportunidade de me manifestar em outros trabalhos, dentre os quais o por último citado, além de FACCHINI NETO, Eugênio. A Tutela Aquiliana da Pessoa Humana: os interesses protegidos. Análise de Direito Comparado. Revista Jurídica Luso Brasileira, v. 4, p. 413-464, 2015; e FACCHINI NETO, Eugênio; WESENDONCK, Tula. Danos existenciais: precificando lágrimas?. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais (Eletrônica), v. 12, p. 229-268, 2012.

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lo francês da atipicidade, sendo que a expressão “dano moral”, usada por nosso legislador constitucional e ordinário, tem uma abrangência e uma elasticidade capaz de albergar todas as espécies de danos extrapatrimoniais.49

Todavia, se não há necessidade, há enorme conveniência prática de deixarmos de usar expressão “danos morais” como se fosse um gênero omnicompreensivo, passando a usar, no seu lugar, a expressão “danos não patrimoniais” (ou extrapatrimoniais) como gênero, do qual são espécies os danos morais puros (estes sim relacionados à dor, sofrimento, etc.) e as demais figuras de danos antes mencionadas (danos biológicos, existenciais, à identidade, etc.).

Procura-se, assim, evitar que a vagueza da noção de dano moral leve àquilo que Díez-Picazo denomina de “escándalo del daño moral”, que “puede responder a vagos o si se quiere, intuitivos, ideales de justicia, pero que, carecendo de ayer y de mañana, sólo se le puede calificar como arbitrariedad”.50

De acordo com o que pensamos, a identificação doutrinária e jurisprudencial dos vários tipos de danos extrapatrimoniais, cada um deles com suas características e seus requisitos, é uma maneira mais justa e eficiente de enfrentar o problema dos danos, reduzindo o subjetivismo na aferição de um genérico “dano moral” e permitindo melhor gerir o desenvolvimento do processo judicial instaurado para a identificação e compensação de um dano não patrimonial. Essa, aliás, segundo Brüggemeier51, é

49 O mesmo ocorre no direito argentino, segundo Zannoni, que entende que na noção de dano moral vigorante no direito daquela nação vizinha é ampla o suficiente para abranger as figuras que ele cita em sua obra, como o dano à saúde, o dano biológico, o dano ao projeto de vida, o dano psíquico, o dano estético, entre outros – ZANNONI, Eduardo A. El daño em la responsabilidad civil. 3ª. ed. actual. y ampl. Buenos Aires: Ed. Astrea, 2005, p. 165.

50 DÍEZ-PICAZO, Luis. El escándalo del daño moral. Cizur Menor/Navarra: Thomson / Civitas, 2008, p. 14 e 15.

51 BRÜGGEMEIER, Gert. Common Principles of Tort Law. A

uma substancial contribuição da doutrina para o desenvolvimento da responsabilidade civil, por meio da sistematização da casuística jurisprudencial (agrupamento de casos).

Exemplificativamente, os danos existenciais exigem a prova de que, em razão do evento danoso, a vítima (mesmo aquela atingida por ricochete) tenha alterado, para sensivelmente pior, a sua maneira de viver, e que essa mudança tenha sido definitiva, ou ao menos duradoura e não meramente temporária (o que representaria um dano moral puro). No caso do dano ao projeto de vida, seria necessária a prova de que a atividade desempenhada pela vítima até o evento danoso era realmente o seu projeto de vida, algo para o que tinha se preparado profissionalmente, e que lhe permitia a sensação de uma vida realizada e gratificante (para muito além do simples retorno financeiro) – com a demonstração de que não mais poderia desempenhar tal atividade, com uma evidente frustração no seu projeto de vida. O verdadeiro projeto de vida é que pode caracterizar alguém como um ser humano livre e autônomo, capaz de escolher o que quer fazer com sua vida, projetar-se no futuro e dar um sentido à sua existência. Não bastaria, para tanto, a caracterização de um simples projeto de vida alternativo, na conhecida concepção de Sessarego. E assim se procederia em relação a cada uma das espécies de danos extrapatrimoniais, cada uma delas com suas características e pressupostos.

Principalmente no momento da fixação do valor de cada uma das rubricas indenizatórias é que se observará um ganho de objetividade. Isto porque, na atual praxis de aglomerar todas as consequências danosas sob a mesma rubrica dos “danos morais”, há uma grande subjetividade do julgador, que em Pre-Statement of Law. London: British Institute of International and Comparative Law, 2004, p. 24.

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poucas linhas e muitas vezes limitando-se a se reportar aos chavões jurisprudenciais – “considerando a intensidade da culpa, as condições sociais do ofendido e econômicas do ofensor, as consequências do dano”, etc., - fixa um valor sem especificar o peso de cada uma das circunstâncias que levou em consideração. Já com a adoção do critério aqui proposto, ao longo do tempo seria possível contar com uma casuística que fornecesse parâmetros monetários para cada tipo de dano, de maneira a garantir uma maior homogeneidade na fixação dos valores, reduzindo-se o subjetivismo judicial. Isso também permitirá a elaboração de uma certa hierarquização dos interesses tuteláveis – por exemplo, danos ao projeto de vida como representando valor mais elevado do que os danos existenciais, estes valendo mais do que o loss of amenities of life e assim por diante.

Útil, para tal fim, levar a sério as sugestões dadas por Paolo Cendon52, no sentido que um ordenamento jurídico justo, sistemático e coerente deve procurar:

(i) compensar integralmente todos os danos (tidos como injustos e merecedores de atenção) sofridos pela vítima, desde que adequadamente provados no curso do processo (ressalvados os casos de adequada presunção de sua ocorrência, nos casos de cabimento da ideia de danos in re ipsa). Ou seja, não basta a afirmação da existência de um genérico dano moral, a ser identificado arbitrariamente pelo magistrado. É necessária a demonstração da presença dos requisitos de cada um dos danos especificamente alegados.

(ii) evitar hipóteses de duplicações de reparação. Essa preocupação, aliás, foi o que levou ao não reconhecimento, durante muito tempo entre nós, da existência de danos estéticos de forma separada 52 CENDON, Paolo. Trattato breve dei nuovi danni. Padova: Cedam/Wolters Kluwer, 2014, p. XXX.

dos danos morais, pois se entendia que aqueles estavam abrangidos por estes, questão só superada pela Súmula 387 do STJ. Ao se adotar a presente proposta, o magistrado terá de fixar um valor para cada uma das situações danosas pleiteadas e identificadas nos autos. Com a adoção também do método bifásico e a identificação de valores homogêneos para grupos de casos efetivamente similares, reduzir-se-á o impacto do subjetivismo.

(iii) denominar cada dano pelo nome apropriado, possibilitando que a parte demandada possa fazer impugnações específicas, tentando demonstrar a ausência dos requisitos dos pretendidos danos.

(iv) avaliar sempre as peculiaridades do caso concreto, afastando os automatismos na fixação do dano.

Para encerrar, é interessante lembrar o que ficou assentado por ocasião do célebre julgamento das Seções Unidas da Corte de Cassação italiana, em 11 de novembro de 2008 (sent. n. 26972, 26973, 26974 e 26975)53, enfrentando o problema do abusivo alargamento da noção de danos existenciais, afirmando que eles não configuram um dano autônomo, mas sim uma espécie de dano extrapatrimonial, indenizável sempre que violar um direito fundamental da pessoa54:

“A referência a determinados tipos de da-

53 Cass. civ., sez. un., 11 novembre 2008, sentenza n. 26972 (integrada e complementada pelas sent. 26973, 26974 e 26975, da mesma data) disponível em https://www.unibocconi.it/wps/ wcm/connect/ce3d24a2-21bf-40e7-8653-3e9ed4af9672/ Danno+alla+persona.pdf?MOD=AJPERES&CVID=l1GHWMx. Acesso em 27.06/2023.

54 Sobre essa reação da C.Cassação, v. ZIVIS, Patrizia. Il danno non patrimoniale. Evoluzione del sistema risarcitorio. Milano: Giuffrè Ed., 2011, p. 183 e seg. (item “2.8. Le risposte delle Sezione Unite dell’11 novembre 2008”); ALPA, Guido. La responsabilità civile. Principi. Seconda edizione. Milano: UTET/Wolters Kluwer It., 2018, p. 423 e seguintes, e também CASTRONOVO, Carlo. Responsabilità Civile. Milano: Giuffrè Ed., 2018, p. 178 e seg.

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nos, diversamente nominados (dano moral, dano biológico, dado de perda da relação parental) responde a exigências descritivas, mas não implicam o reconhecimento de distintas categorias de danos. É tarefa do julgador identificar a efetiva consistência do alegado dano, independentemente do nome que lhe foi atribuído, individuando quais repercussões negativas tenham incidido sobre o ‘valor-homem’, provendo-lhe a sua integral reparação”. (....) “O dano não patrimonial, mesmo quando decorra da lesão de direitos invioláveis da pessoa, constitui dano-consequência, que deve ser alegado e provado. Afasta-se, portanto, a tese que identifica o dano com o evento danoso, falando de dano-evento. (...) Afasta-se, também, a variante constituída pela afirmação que no caso de lesões de valores da pessoa, o dano seria in re ipsa.”

A mesma paradigmática decisão procedeu ao balanceamento entre os direitos invioláveis da pessoa e o dever de solidariedade – ambos referidos expressamente pelo art. 2º da Constituição italiana -, afirmando não ser reparável o dano por lesão de direitos que não supere o “nível de tolerabilidade” (livello di tollerabilità) que cada pessoa inserida no complexo contexto social deve aceitar, em razão do dever de tolerância que a convivência impõe. É hora de concluir.

Considerações Finais

Como o Brasil adota o modelo da atipicidade dos danos, nosso conceito clássico de “danos morais” – expressão acolhida pela nossa legislação - seria suficiente amplo para abarcar todas as figuras de danos desenvolvidas no exterior.

Sob esse enfoque, o dano não patrimonial constituiria uma categoria unitária, não suscetível de subdivisão em subcategorias. A referência a determinados

tipos de danos (morais, biológicos, existenciais, etc.) responderia a exigências descritivas e não implicaria o reconhecimento de categorias distintas de danos.

Todavia, embora não haja necessidade de importarmos algumas figuras de dano, há uma substancial conveniência de fazê-lo, para “ordenar” e objetivar o debate jurídico e reduzir o subjetivismo imperante. As vantagens de se seguir tal orientação são percebidas em todos os momentos: na fase postulatória, durante a instrução processual, por ocasião da sentença, do recurso e da fixação dos valores compensatórios. O risco de duplicações de indenizações é mais retórico do que real, pois os valores indenizatórios podem ser facilmente inflacionados quando não se têm parâmetros objetivos para a fixação de danos morais complexos. Por outro lado, a exigência de se fazer a prova da ocorrência dos requisitos de cada tipo de dano pleiteado certamente reduzirá o risco de uma ‘loteria dos danos’ (Atyha), pois não caberá mais ao juiz o critério exclusivo de decidir se está ou não diante de um ‘dano moral’.

Espera-se, assim, que se possa melhor proteger a pessoa humana, com maior objetividade, quando ela tiver interesses relevantes violados.

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DANOS EXTRAPATRIMONIAIS: EXISTE UMA MANEIRA PRÁTICA E EFICAZ DE DISTINGUI-LOS?

Palavras-chave

Danos Extrapatrimoniais. Danos Morais. Danos Existenciais.

Marcelo Marques Cabral

Doutorando em Direito pela UFPE. Especialista e Mestre em direito privado pela UFPE. Juiz de Direito/TJPE. Professor da ESMAPE – Escola Judicial de Pernambuco.

1. Breves considerações introdutórias

O presente artigo tem por objetivo principal traçar as características básicas de cada dano extrapatrimonial a fim de explicitar os elementos pelos quais possam ser distinguidos, visando a proteção integral da pessoa humana em sua tríplice dimensão: 1 – a física; 2 – a psíquica e 3, – a noética.

Muito se tem divulgado em doutrina – hoje ainda mais especificamente – que o ordenamento jurídico brasileiro, a partir da leitura do artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, utilizou apenas o termo “dano moral” para abranger toda espécie de prejuízo ao patrimônio existencial do ser humano, não determinando relevância a outras classes que estariam supostamente abarcadas por tal termo.

O dano moral seria expressão bastante abrangente, então, para conferir-se proteção à esfera não patrimonial do ser humano que se visse atingido em seus bens personalíssimos, ou, de resto, em sua dignidade humana em geral. Todavia, com o avanço da tecnologia – utilizada para o bem ou para o maloperou-se a mudança no modo de viver das pessoas em sociedade, disso resultando lesões enormes e maneiras mais banais de se lesionar bem jurídico existencial, como, por exemplo, a difusão em massa, em razão da tecnologia, de notícias ou palavras ofensivas à honra do cidadão etc. Da mesma sorte, os danos assumiram gravidade em proporções nunca vistas anteriormente, atingindo de forma difusa as pessoas e com maior intensidade o seu ser.

Diante desse contexto, e no afã de se proteger e tutelar, antes de mais, a pessoa em seu núcleo existencial, é que a doutrina e jurisprudência, aqui e em todo o mundo ocidental, desenvolveram o conceito de outros danos não patrimoniais como os danos estético e existenciais.

Em resumo, visa-se responder à seguinte indagação: Existem elementos conceituais claros e precisos para que se possa distinguir o dano moral de outros danos existenciais? Quais as esferas dimensionais do homem a que se visa conferir proteção com tais diferenças?

2. O que se pode dizer sobre a categoria Dano no direito de responsabilidade civil contemporâneo?

Classicamente, muito se definiu o dano como uma perda de caráter patrimonial do sujeito - no sentido daquilo mensurável financeiramente - como um dano material (danos emergentes e lucros cessantes), e, como uma perda de caráter não patrimonial, um dano extrapatrimonial, geralmente um dano moral. Entrementes, a definição do dano pelas consequências repercutidas para a pessoa, ainda que ao patrimônio do ofendido, não é a melhor técnica de definição.

Observe-se, por exemplo, que um objeto de família sem qualquer valor comercial mesurável hoje em dia poderá constituir-se em um objeto de valor afetivo, cuja lesão poderá redundar naquilo que a doutrina considera como um dano moral indireto. Da mesma forma, uma lesão insignificante a um bem extrapatrimonial poderá não gerar qualquer tipo de reparação civil, ponderados os interesses do ofendido e do ofensor no caso concreto. Também, algo trivial e cotidiano na vida do homem médio poderá gerar um sofrimento razoável para alguém mais emocionalmente sensível, sem que se tenha como caracterizado qualquer dano extrapatrimonial, visto no plano da concretude dos casos.

Conclui-se, de início, que o critério em se definir o dano por suas consequências não estaria tecnicamente, sob o ponto de vista do direito, correto. Quid

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iuris? Qual seria o modo mais adequado para tanto? As consequências do evento danoso devem ser desconsideradas pelo julgador?

O dano pode ser concebido em dois aspectos: no comum ou geral e no jurídico. No plano comum, realmente, dano seria qualquer consequência prejudicial ao indivíduo, ainda que decorrente de catástrofes naturais. Todavia, na acepção jurídica, o dano deve ser entendido por toda lesão a interesse jurídico tutelado pelo ordenamento normativo. Tal acepção se liga invariavelmente à noção de “bem jurídico”.

Para Maita María Naveira1, bem jurídico seria tudo aquilo que possa satisfazer uma necessidade do sujeito, podendo compreender coisas ou bens da personalidade. Por seu turno, o interesse adviria da relação entre o sujeito que tem uma determinada necessidade e o bem apto a supri-la. Destarte, deve se concluir que o conceito de dano não deve estar relacionado diretamente ao bem material ou imaterial, mas sim ao interesse que qualifica esse bem como útil ao ser humano.

Tal entendimento está em consonância com a tutela dispensada constitucionalmente às vítimas de danos e com a necessidade de se reparar lesões existenciais no atual quadrante, fazendo com que a teoria da diferença – mais adaptável ao sistema de reparação patrimonialista de danos2 - perca relevância com relação à teoria do interesse.

Partindo-se da premissa de que inexiste responsabilidade civil sem danos – notadamente no que atine à reparação dos efeitos danosos sobre alguém – o

1 ZARRA, Maita María Naveira. Concepto y requisitos del daño ressacible. Disponível em http://vlex.com/vid/concepto-requisitos-ressarcible - 294145. Acesso em 23/05/2023, p. 1-4.

2 VINEY, Geneviève. JOURDAIN, Patrice. Traté de droit civil. Les conditions de la responsabilité. 3ª ed. Paris: LGDJ, 2006, p. 15 e VINEY, Geneviève. Droit civil. Les obligations. La responsabilité: conditions. Paris: LDGJ, 1982, p. 307.

elemento dano é pressuposto do dever de reparar; logo, não seria juridicamente correto falar em “dano presumido”, “dano in re ipsa” ou outra expressão equivalente.

O Dano é elemento central da responsabilidade civil e não pode ser presumido ou detectado prima facie evidence ou na forma res ipsa loquitur. Também inexiste dano sem consequências, estando elas sempre ao menos predispostas no suporte fático da norma indenizativa; donde se concluir não ser da mesma maneira correto afirmar termos como “dano-evento” e “dano-prejuízo”, distinção tão cara a certa doutrina estrangeira3

Silvio Neves Baptista4 configura o Dano como um fato jurídico desencadeador do dever de reparação civil, distinguindo a partir da base dos fatos jurídicos as consequências danosas de forma diversificada.

Segundo o professor pernambucano, o dano é fato jurídico consequente, decorrente de fato jurídico antecedente, previsto pela norma jurídica (suposto jurídico) e, tal qual este último, pode se caracterizar como um dano ilícito ou um dano lícito. Dessa forma, o dano será ilícito - para o autor - se o fato jurídico antecedente é definido pela norma como ilicitude e será lícito se o fato antecedente é definido, nas mesmas circunstâncias, como conduta lícita, o que enseja a conclusão de que o dano jamais poderia ser considerado presumido ou um dano evento sem consequências para o ofendido, ao menos sob o ponto de vista normativo.

Nesse diapasão, é de se observar que as consequências lícitas ou ilícitas sempre estarão em relação direta com o fato jurídico antecedente consistente

3 BIANCA, Massimo. Diritto civile. La responsabilità. Milano: Giuffrè, 1994, v. V, p. 583, à guisa de exemplificação.

4 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 65 e 76.

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na lesão ao interesse juridicamente tutelado pelo ordenamento e representado pela conduta humana.

Não obstante, as consequências do evento danoso estão imbricadas no conceito de dano, contudo elas podem se configurar de forma concreta ou predisposta. Daí a classificação de dano que aqui se sugere, quanto às consequências, apresentar-se como Dano de consequência predisposta no suporte fático jurídico normativo e como Dano de consequência concreta ou provada, operando a incumbência da prova de tais efeitos sobre o ofendido, ao autor do processo civil de reparação.

Em resumo, o conceito de dano jurídico não poderá levar em conta a consequência de um evento lesivo, porém, toda e qualquer consequência concreta deverá ser considerada a fim de elevação do valor da verba reparatório-compensatória e para efeito de natureza e distinção entre os diversos danos de índole não patrimonial.

3. Espécies de danos extrapatrimoniais e seu enquadramento conceitual na atualidade.

O dano de natureza extrapatrimonial geralmente é tido por “dano moral”, devendo-se isso à sua raiz conceitual em que se ligava tal espécime à dor (preço da dor) ou outro tipo de sentimento negativo que algumas lesões poderiam provocar no homem5.

Hoje em dia, sobretudo aqui no Brasil, tem-se uma tendência de desligar o conceito do dano moral das consequências gravosas aos ofendidos em geral e estabelecer uma ligação entre tal espécie de dano e a lesão a direitos da personalidade, como bem o fez o Professor Paulo Lôbo6

5 Sobre o assunto, conferir: PICAZO, Luis Díez. El escândalo del daño moral. Madrid: Civitas, 2008, p. 84.

6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista jus navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8,

a) Dano Moral

Pois bem, realmente deve-se entender por “Dano Moral” toda lesão a atributos personalíssimos do indivíduo, independentemente de este homem padecer ou não de sofrimento, desgosto ou constrangimento visível. Nessa acepção, pode se asseverar que o dano moral, quanto às suas consequências, cuida-se de um dano de consequência predisposta no suporte fático normativo de atribuição de responsabilidade civil.

Ainda hoje há quem defina o dano moral, embora o distinguindo de outras espécies como o dano psicossomático e o dano ao projeto de vida, como um “dano subjetivo, ou “emocional”, como o faz o professor peruano Sessarego7, o qual caracteriza o dano moral como um prejuízo à pessoa de caráter efêmero, ao contrário dos danos existenciais.

O dano moral, pura e simplesmente, todavia, deve ser entendido como uma lesão a direito da personalidade do cidadão, independentemente de sobressaltar os fatores anímicos do ofendido, bastando lembrar que uma negativação indevida de dados do consumidor em órgãos de maus pagadores do comércio poderá existir sem que se cause qualquer desconforto na vítima do ato ilícito, invocando-se para tanto a dimensão objetiva dos direitos fundamentais da personalidade que ensejará sempre a tutela do Estado.

Para além do dano moral, a classificação aqui sugerida poderá consagrar outras formas danosas da mesma natureza, como o dano estético e os danos existenciais, sendo estes basicamente os danos ao n.119, 31 de outubro de 2003. Disponível em: https://jus.com.br/ artigos/4445. Acesso em 18 de novembro de 2021, p. 1 e 16. 7 O exemplo do pianista foi tirado do próprio autor peruano. Vide: SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes sobre el daño a la persona. Disponível em HTTPS://www.academiaedu/18811863/ apuntes_sobre_el_dano_a_la_persona. Pesquisado em 24 de novembro de 2024, p.31.

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projeto de vida e o dano à vida de relação, além do dano da morte para o próprio ofendido do direito fundamental vida.

b) O Dano Estético

O dano estético, por sua vez, pode ser conceituado como um dano de natureza extrapatrimonial que atinge a harmonia das linhas físicas de beleza do corpo humano. Pode, por isso, ser chamado de “dano do enfeamento”, porque se caracteriza em virtude de uma piora no aspecto da beleza que pode ser avaliado tendo-se em vista a beleza da pessoa antes e depois do evento danoso. Em breves palavras, trata-se de um dano que se avalia pela lesão à estética corporal do ser humano.

O STJ por meio do enunciado da Súmula 3878 passou a entender que o dano estético é diverso do dano moral ao permitir a cumulação de pedidos de reparação do dano estético e do dano moral.

De fato, o que distingue o dano moral do dano estético são justamente as consequências de tais danos, pois para o dano moral (que se trata de dano de consequência predisposta, como visto logo acima) basta a comprovação da lesão a direito personalíssimo (integridade física, psíquica e saúde), enquanto para o dano estético a vítima tem a incumbência de comprovar as consequências mais ou menos permanentes na piora do seu estado de beleza, considerando-se tal estado antes da ação danosa e depois dela.

Parece ter sido essa a conclusão a que chegaram os integrantes do Superior Tribunal de Justiça, ainda que de maneira não consciente, nos julgamentos que redundaram na Súmula referida, desgarrando-se da concepção clássica na França que tanto in-

fluenciou o direito brasileiro e que abrangia o dano da estética no conceito do dano moral9

Não seria o dano estético um dano moral em razão da lesão a um direito personalíssimo da pessoa humana como a integridade física? Se se considerar o dano estético como lesão à integridade física tão somente, a resposta seria afirmativa; contudo, levando-se em conta as consequências trazidas à vítima do evento danoso, o dano estético difere enormemente do dano moral. Assim sendo, o dano estético caracteriza-se como um dano de consequência concreta ou provada, incumbindo à vítima tal ônus no processo de reparação civil.

c) Os Danos Existenciais

Os danos existenciais são aqueles que repercutem de maneira mais gravosa no dia a dia da pessoa, impedindo-a de fazer aquilo que fazia de forma rotineira ou de continuar ou dar início à realização de um ´projeto de vida, podendo ou não, em decorrência disso, atingi-la na vontade de sentido10

Os danos existenciais, nesse contexto, foram estudados pela primeira vez na Itália por Patizia Ziviz, existindo vasta literatura e jurisprudência em vários países como na França que já adotava – para além do dano moral, embora não os distinguindo completamente – as espécies de danos existenciais sem tal enquadramento, a exemplo do dano juvenil, do dano aos prazeres da vida, do dano sexual (na França) e do dano à saúde, dano biológico e dano à vida de relação (na Itália)11

9 SAVATIER, René. Trate de la responsabilité civil en droit français. 10 ed. Paris: Ledj, v. II, p. 97 e 98.

10 Termo usado por Viktor Frankl para designar o vazio ou vácuo existencial. Sugere-se a leitura, entre outras, da seguinte obra: FRANKL, Viktor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Tradução de Bruno Alexander. Campina S/P: Auster, 2021.

8 “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”.

11 Conferir: VINEY, Geneviève. Droit civil. Les obligations. La responsabilité: conditions. Paris: LDGJ, 1982, p. 324 – 328; LÓPEZ MESA, Marcelo j. La responsabilidad civil. Sus presupuestos en

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Carlos Fernández Sessarego, no Peru, a partir da filosofia existencialista de Sartre, constrói e delimita a figura do “dano ao projeto de vida”, distinguindo-o do dano moral, por ser este último um dano emocional transitório. O dano ao projetar-se seria um dano à liberdade fenomênica e não meramente à liberdade ontológica, como o são os danos psicossomáticos (dano biológico e dano psíquico) e, por isso, seria um dano de caráter duradouro e que impediria o homem de exercer plenamente a sua liberdade de construir-se durante sua existência12.

Neste escrito, poder-se-ia entender por danos existenciais todo o dano que afeta de maneira mais gravosa a pessoa humana no seu dia a dia, interferindo sobremaneira nos seus relacionamentos sexual, familiar, religioso, profissional e social (dano à vida de relação), no construir e executar dos seus projetos de vida (dano ao projeto de vida) e de forma mais impactante na sua esfera espiritual, donde ensejar-se o vazio existencial.

Por fim, o dano à vida da pessoa, aquilo que na doutrina portuguesa, resolveu-se chamar de dano morte, trata-se do dano à existência do humano de maior gravidade por impedir e extinguir de forma absoluta a sua vida. Tal dano, é bom ressaltar, é inconfundível com os danos extrapatrimoniais reflexos para os parentes mais chegados das vítimas, que sofrem ao não ter mais em sua companhia o ente amado13 código civil e comercial. 2015, p. 298; PETRELLI, Patrizia. Il danno non patrimoniale. Padova: Cedam, 1997, p. 21-37, entre outros.

12 SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes sobre el daño a la persona. Disponível em HTTPS://www.academiaedu/18811863/ apuntes_sobre_el_dano_a_la_persona. Pesquisado em 24 de novembro de 2024, p.31-36.

13 Sobre o assunto conferir o trabalho do próprio autor: CABRAL, Marcelo Marques. A reparação civil do dano da morte em Portugal e Espanha: contribuições para o direito da responsabilidade civil no Brasil. In. Responsabilidade civil e seus rumos contemporâneos: Estudos em homenagem ao Professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho; organizado por Anderson Motta, Carla Moutinho e Marcelo Marques Cabral. Indaiatuba, SP: Foco, 2024, p. 279-303. Nesse texto, este autor discorre sobre o instituto

4. Critérios de distinção entre os danos extrapatrimoniais.

Como já bastante enfatizado até aqui, entre os danos de natureza extrapatrimonial, o dano moral é um dano de consequência predisposta, o que quer significar que tal dano pode ou não trazer consequências emocionais ou psíquicas negativas à vítima a fim de se verificar no plano concreto.

Não há dúvidas de que alguém ao ser ver diante de uma situação de não poder realizar um financiamento bancário ou obter um empréstimo por conta de um procedimento de restrição ao crédito de forma indevida, poderá desenvolver problemas mais ou menos graves que ultrapassam os dissabores do cotidiano, contudo, tais efeitos apenas têm o condão de elevar o valor da reparação civil compensatória e não necessariamente de caracterizar o dano.

Ao contrário, ainda que a vítima pareça feliz ante a possibilidade de ser compensada financeiramente, o dano moral, sob o ponto de vista jurídico e de proteção objetiva do ordenamento aos direitos fundamentais, resultar-se-ia evidenciado.

Por outro lado, os danos estéticos e existenciais sempre necessitarão da comprovação concreta de seus efeitos sobre a vida do ser humano para que se caracterizem. Há evidente necessidade de se comprovar ao juiz, em ambos os casos, que a situação do ofendido, após o dano sofrido, piorou consideravelmente comparando-se com o estado anterior ao dano.

Nesse diapasão – e na esteira do pensamento consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca da cumulatividade dos pedidos de reparação dos danos estéticos e morais – é de se observar que tanto o dano estético, quanto os danos defendendo a natureza existencial do dano da morte.

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existenciais, diferem, por suas consequências, dos danos morais, incumbindo ao ofendido a prova das consequências, sob pena de se configurar apenas o dano de natureza moral.

Tal conclusão não poderá ser extraída da jurisprudência dos Tribunais do trabalho, por exemplo, a qual, além de voltar à vetusta distinção entre dano-evento e dano-prejuízo, divide-se entre tal natureza com relação aos danos existenciais.

À guisa de exemplificação pode-se citar dois arestos, como os seguintes:

RECURSO DE REVISTA SOB A ÉGIDE DA

LEI 13.015/2014 E DA IN 40 DO TST. DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXCESSIVA. REQUISITOS DO ARTIGO 896, § 1º-A, DA CLT ATENDIDOS. Essa Corte tem reconhecido que a submissão do empregado, por meio de conduta ilícita do empregador, ao excesso de jornada extraordinária, para muito além do tempo suplementar autorizado na Constituição Federal e na CLT, quando cumprido de forma habitual e por determinado período, pode tipificar o dano existencial (modalidade de dano imaterial e extrapatrimonial). Tal conduta representa prejuízo ao tempo que todo indivíduo livre detém para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais, além de recompor suas forças físicas e mentais, sendo presumível o dano causado (in re ipsa). In casu, o Regional consignou que o reclamante laborou por oito anos, dirigindo veículos com cargas tóxicas, em jornadas de 12 horas, 20 dias por mês, estando evidenciado o dano existencial. Recurso de revista conhecido e desprovido.

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.015/2014 E DA IN 40 DO TST. horas extras no trabalho externo. adicional de periculosidade. Domingos e feriados trabalhados. reconhecimento do vínculo de emprego . Não se analisa

tema do recurso de revista interposto na vigência da IN 40 do TST não admitido pelo TRT de origem quando a parte deixa de interpor agravo de instrumento. (TST - RR: 3586020145040802, Relator: Augusto Cesar Leite De Carvalho, Data de Julgamento: 06/10/2020, 6ª Turma, Data de Publicação: 09/10/2020). Grifado.

Observa-se aqui um caso que discutia um dano existencial decorrente do sobrelabor, em que o julgado do Tribunal Superior do Trabalho entendeu existir simplesmente um dano aos relacionamentos de vida do trabalhador como uma espécie de “dano-evento”, donde inexistir obrigação para o ofendido de provar os prejuízos concretos na seara de sua existência.

Em outro julgado, o TST muda de entendimento, assumindo o caminho inverso. Neste sentido:

AGRAVO. RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº LEI Nº 13.467/2017. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. JORNADA EXCESSIVA. NECESSIDADE DA PROVA DO DANO. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA RECONHECIDA. O dano existencial vem sendo entendido como o prejuízo sofrido em razão do sobrelabor excessivo imposto pelo empregador, que impossibilita o trabalhador de desempenhar suas atividades cotidianas e prejudica a manutenção de suas relações sociais externas ao ambiente de trabalho, tais como convívio com amigos e familiares, bem como as atividades recreativas. Contudo, ainda que a prestação habitual de horas extras cause transtornos ao empregado, tal fato não é suficiente para ensejar o deferimento da indenização por dano existencial, sendo imprescindível, na hipótese, a demonstração inequívoca do prejuízo que, no caso, não ocorre in re ipsa. Precedentes. Correta, portanto, a r. decisão agravada, ao reconhecer a transcendência

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política da matéria veiculada nas razões de revista e, por consectário, conhecer e prover o recurso da reclamada para excluir da condenação o pagamento de indenização por danos morais. Agravo não provido. HORAS EXTRAS. MOTORISTA. COMISSIONISTA PURO. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA RECONHECIDA. DECISÃO EM DESCON-

FORMIDADE COM A SÚMULA Nº 340 DO

TST. O e. TRT, ao concluir que, conquanto seja incontroverso que o autor era remunerado exclusivamente por comissão calculada pelo valor da carga transportada durante todo o contrato de trabalho, não deve ser aplicado a Súmula 340 desta Corte para o cálculo das horas extras devidas, decidiu de forma contrária ao entendimento pacificado nesta Corte por meio da Súmula 340, segundo a qual: “O empregado, sujeito a controle de horário, remunerado à base de comissões, tem direito ao adicional de, no mínimo, 50% (cinqüenta por cento) pelo trabalho em horas extras, calculado sobre o valor-hora das comissões recebidas no mês, considerando-se como divisor o número de horas efetivamente trabalhadas” . Todavia, no que se refere à incidência da Súmula nº 340 do TST às horas intervalares deferidas, a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de ser inaplicável o referido verbete às horas extras decorrentes da concessão parcial ou da supressão do intervalo intrajornada do empregado comissionista, seja ele puro ou misto. Precedentes. Agravo parcialmente provido. (TST - Ag: 15230220155170009, Relator: Breno Medeiros, Data de Julgamento: 03/02/2021, 5ª Turma, Data de Publicação: 05/02/2021) Grifado.

Nessa última situação, o mesmo Tribunal Superior entendeu que os prejuízos decorrentes do sobrelabor para a existência do trabalhador devem ser por ele comprovados, aceitando-se, já agora, a nomenclatura do “dano-prejuízo”.

Com o presente trabalho visa-se extirpar todas as vicissitudes que possam implicar confusão conceitual e terminológica relacionada ao dano jurídico, concluindo-se que todo o dano pressupõe a existência de prejuízos (de forma predisposta ou concreta) ao vitimado, contudo, os danos existenciais necessitam que as suas consequências – mais graves e duradoras em face da existência humana –sejam objeto de prova por parte do ofendido, donde resultar a conclusão de ser tecnicamente inviável a distinção dos danos em razão de duas categorias relacionadas à uma lesão a direito ou interesse subjetivo do cidadão ou, ao mesmo tempo, relacionadas à uma lesão aos interesses e direitos subjetivos e aos efeitos negativos experimentados pela vítima.

5. Considerações finais.

Não existe qualquer resquício de dúvida quanto ao fato de que a transformação da vida social pela tecnologia humana impulsionou a multiplicação das espécies e das consequências, cada vez mais gravosas, dos danos. A necessidade em se prevenir prejuízos, sobretudo na ordem imaterial dos homens, e, com maior razão ainda, em se reparar as consequências mais nefastas resultantes de atos atentatórios à dignidade humana, exige do Direito respostas que se amoldem à essa realidade, daí não ser possível açambarcar todas as categorias de danos extrapatrimoniais sob o rótulo de “dano moral”, o que poderia levar o julgador a entender que o dano todo deva ser reparado, porém, não todos os danos, o que causaria um prejuízo imenso para a vítima de ofensas mais graves às suas condições existenciais.

Exige-se, destarte, para fins de proteção integral da pessoa, que o direito de responsabilidade civil – na verdade responsabilidade por danos – esteja atento às variantes hodiernas e, mais ainda, atribua armas para que o Estado possa conferir a proteção inte-

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gral, tendo em vista o princípio da reparação integral da vítima.

Saber separar as categorias danosas de forma autônoma, cuja etiologia até possam se identificar, porém não se identificam no plano ôntico-fenomenológico, é imprescindível para a proteção integral da pessoa, daí exsurgindo a necessidade de se estudar os danos imateriais não somente no campo de afetação meramente psíquica, mas também nos campos somático e noéticos, já que o homem se destaca como uma unidade biológica, psíquica e espiritual.

Evidentemente que algumas lesões a direitos ou interesses subjetivos e fundamentais da pessoa poderão trazer apenas consequências mais efêmeras para a sua vida, contudo, quando tais lesões afetam a autoestima da pessoa de maneira acentuada (dano estético), a sua vida em seus relacionamentos mais elementares necessários ao gozo de seus prazeres e da sua saúde psíquica (dano à vida de relação), ao desenvolvimento e concretização dos seus projetos vitais (dano ao projeto de vida), e afetam à vontade de sentido ou completude espiritual, já não se está diante de um “mero” dano emocional de caráter subjetivo – para se utilizar de expressão de Sessarego - como o dano moral, todavia, de um dano existencial na acepção mais estrita do termo.

No sentido exposto no presente escrito, portanto, os danos extrapatrimoniais ao ser humano podem ser de consequências predispostas, como o dano moral - bastando para tanto a comprovação da violação à ordem objetiva dos direitos de natureza personalíssima e fundamental para sua reparação -, e de consequências concretas ou provadas, estando entre tais danos os danos existenciais nas categorias antes desenvolvidas.

A diversidade de danos imateriais, em suma, é de observação necessária ao respeito do princípio da reparação integral e, consequentemente, da proteção integral do ser humano e da dignidade humana, esta consagrada como centro axiológico normativo do sistema de Direito no Brasil.

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BIANCA, Massimo. Diritto civile. La responsabilità. Milano: Giuffrè, 1994.

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POR UMA NOVA RESPONSABILIDADE CIVIL NO AMBIENTE DIGITAL

Palavras-chave

Empresa. Responsabilidade Civil. Riscos.Danos.Seguros

Carolina Nobre

Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Direito e especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-AM (gestão 2022-2024). Membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB (gestão 2022-2024). Professora de cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Advogada e parecerista. E-mail: carolinanobreadv@gmail.com

Caroline Amadori Cavet

Mestre em Direito das Relações Sociais - Novos Paradigmas do Direito, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Diretora da Caixa de Assistência dos Advogados da Ordem dos Advogados – Seção Paraná.Presidente da Comissão de Responsabilidade Civil da OABPR (gestão 2022-2024). Membro da Comissão de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB (gestão 2022-2024). Vice-presidente do Instituto Miguel Kfouri Neto - Direito da Saúde e Empresas Médicas” (UNICURITIBA). Professora em direito empresarial. Advogada. Sócia Fundadora do escritório de advocacia Caroline Cavet Advocacia. E-mail: caroline@carolinecavet.adv.br

Introdução

O surgimento da internet proporcionou novas formas de relações sociais para além do ambiente físico. Se, por um lado, a superação da barreira geográfica pode indicar facilidade no acesso de informações, por outro, impõe uma densa camada de complexidade. A disseminação de desinformação, a possibilidade de criação de perfis falsos, a coleta e manipulação de dados são atos que na maior parte das vezes possui tipificação jurídica, mas nem sempre encontram a proteção jurídica necessária para que a função social do direito seja de fato exercida.

Nesse contexto, a doutrina da responsabilidade civil merece ser avaliada a partir desses novos fatos, já que as consequências jurídicas apresentadas pelo direito parecem ser insuficientes para regular as condutas sociais no ambiente digital.

Assim, o objetivo deste artigo é apresentar os desafios da responsabilidade civil derivada de atos praticados no ambiente digital. Para tanto, uma análise da doutrina clássica da responsabilidade civil será feita para que seja possível demonstrar que nem o legislador, tampouco a doutrina, imaginava a repercussão digital desses atos. Nesse sentido, algumas situações concretas serão trazidas para que seja possível demonstrar que as consequências jurídicas desses atos são peculiares e precisam de solução jurídica diferenciada, para além daquela já apresentada pelo Marco Civil da Internet.

A pesquisa é substancialmente bibliográfica, fundamentada em artigos científicos, referências doutrinárias e documentos jurídicos, no intuito de evidenciar as consequências atualmente apresentadas pelo Direito e a necessidade de construção de novas soluções para as relações desenvolvidas no ambiente digital. O que se pretende demonstrar é a necessidade de observância de que os atos sociais

praticados em ambientes digitais possuem características distintas por terem consequências jurídicas também diferenciadas, caso fossem praticadas em um ambiente físico.

1.

A Ideia

Clássica da Responsabilidade Civil

Em toda ordem jurídica há uma preocupação com o estabelecimento prévio de normas de conduta social capazes de organizar a convivência em sociedade. O Estado contemporâneo desempenha o importante papel de regular o convívio dos indivíduos e, ao mesmo tempo, proteger seus Direitos Fundamentais em sua vida privada.

Assim, a Constituição de 1988, concretizando Direitos Fundamentais de primeira geração, garante direitos que se destinam à esfera individual: liberdade, propriedade, privacidade, propriedade etc. A par desses, o Estado também tutela direitos que decorrem do convívio em sociedade e que são concretizados por meio da prestação de serviços públicos, como a segurança, a previdência social, a proteção do trabalhador, à saúde, entre outros. Os direitos que correspondem à coletividade também são direitos constitucionalmente garantidos e demandam igual tutela estatal, como o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Nesse contexto, a ordem jurídica estabelece deveres individuais, coletivos e estatais, exatamente para que a dinâmica da proteção dos direitos seja possível. Significa dizer que a concretização de direitos não é algo que acontece de modo estático porque a mesma pessoa que detém a garantia de proteção aos direitos também deve respeitar o direito de outro indivíduo igualmente tutelado naquela sociedade.

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Assim, há um dever jurídico de uma conduta externa imposta pelo Direito Positivo em razão de uma convivência social. A violação desse dever jurídico configura o ilícito que, quase sempre, acarreta dano para outrem, o que faz com quer um novo dever jurídico surja: o dever de reparar o dano1.

A doutrina civilista explica que há um dever jurídico originário (ou primário) e um dever jurídico sucessivo (ou secundário). O dever jurídico originário é um dever que, ao ser descumprido, acarretará o dever de indenizar o prejuízo causado, ou seja, no dever reparar o dano.

Nesse contexto, a ideia de responsabilidade civil corresponde ao dever imposto a alguém que tem a obrigação ou encargo de reparar o prejuízo porque violou um dever jurídico originário. A responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor esse dano, pois responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico2

Desse modo, para haver responsabilidade civil é essencial que ocorra a violação de um dever jurídico e o dano. Ou seja, o sujeito deveria ter agido de modo diferente3, deveria ter se preocupado com seu dever jurídico, mas acabou agindo de modo distinto e deixou de agir conforme o seu dever. Com isso, gerou prejuízo para outra pessoa e, portanto, na proteção

1 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil 8ª edição ampliada. São Paulo: Atlas, 2008, p.2.

2 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil 8ª edição ampliada. São Paulo: Atlas, 2008, p.2.

3 Sergio Cavalieri Filho explica que a obrigação sempre corresponde ao dever jurídico originário enquanto a responsabilidade é o dever jurídico sucessivo porque é consequência da violação do primeiro: “Em síntese, em toda obrigação há um dever jurídico originário, enquanto na responsabilidade há um dever jurídico sucessivo, daí a feliz imagem de Larenza ao dizer que ‘a responsabilidade é a sombra da obrigação’.” CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª edição ampliada. São Paulo: Atlas, 2008, p.2.

dos direitos dessa outra pessoa, o Estado impõe o dever de indenizar.

1.1. A Configuração do Ilícito

Se a responsabilidade civil ocorre quando há a violação do dever jurídico e essa violação configura um ilícito, é importante saber o que caracteriza um ato como ilícito.

Do ponto de vista do Direito, o ato jurídico pode ser considerado ilícito porque é contrário ao que é considerado lícito, ou seja, é antijurídico, vai contra ao ordenamento jurídico, é contrário às normas de convivência social. Por vezes, esses atos têm a sua ilicitude definida pelo próprio Estado, por meio de normas jurídicas que tipificam ilícitos civis e penais ao indicar as condutas que, se praticadas, serão assim consideradas. Por outras vezes, o Estado não configura tais condutas, mas determina como os atos jurídicos devem ser praticados ou, ainda, determina direitos e garantias considerados fundamentais que, se desrespeitados, poderão ser reparados civilmente.

Assim, em sentido amplo o ato ilícito indica apenas a ilicitude do ato e da conduta humana antijurídica, porque contrária ao direito. Porém, no sentido estrito, a configuração da ilicitude do ato considerará elementos subjetivos e psicológicos para a avaliação da conduta. Nesse aspecto, o ato ilícito que acarretará responsabilização avaliará outros requisitos para além da violação do dever e do dano. Será necessário avaliar também a culpa e o nexo causal, elementos que vão caracterizar a responsabilidade subjetiva ou objetiva4.

No entanto, a identificação desses elementos indispensáveis para a caracterização da responsabilidade se demonstra cada vez mais complexa no 4 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª edição ampliada. São Paulo: Atlas, 2008, p.10.

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ambiente digital. Por meio da internet novas relações são construídas e seus efeitos não podem ser relativizados apenas por se tratar de um ambiente artificial. O impacto dessas relações na proteção de dados pessoais, na responsabilidade civil, nos danos à imagem e à propriedade intelectual, assim como a velocidade da repercussão dos danos derivados de ilícitos. Essas questões não poderiam ser imaginadas pelos legisladores do passado, de modo que as soluções jurídicas apresentadas pelo sistema atual precisam ser ajustadas para que seja possível efetivar a proteção jurídica pelo Estado nesse novo contexto.

2. As Relaçãoes no Ambiente Digital da Internet

O desenvolvimento tecnológico atual marca a ascensão da quarta revolução industrial, caracterizada pelo surgimento de inovações computacionais que possibilitam a virtualização da sociedade5. Como consequência, as novas possibilidades de conexão por rede disseminaram as inovações desta quarta revolução6 de modo tão intenso que é possível entender pela existência de uma fusão entre os mundos digitais e analógicos.

Do ponto de vista da formação estatal, a identificação de um espaço territorial físico, com delimitação geográfica, sempre pareceu essencial para o exercício da soberania. Dessa forma, o desenvolvimento do Estado de Direito, baseado em normas capazes de orientar a convivência social estaria intrinsecamente ligado à manutenção do poder em determinado território.

Segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo (2014, p. 71), o meio ambiente pode ser natural, artificial, cultural, digital, do trabalho e do patrimônio genético. Para Fiorillo, o meio ambiente digital é ramo do Direito Ambiental porque estuda os bens portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira no meio digital, incluindo a rede mundial de computadores –internet

Os reflexos jurídicos dessa nova realidade implicam no reconhecimento do surgimento de novas necessidades derivadas das novas formas de interação social exigem respostas diferenciadas do sistema normativo do ponto de vista material e processual7. Diante dos novos desafios de tutela jurisdicional, não apenas o acesso à justiça em si é afetado 8, mas também as próprias relações jurídicas materiais e processuais.

Por outro lado, a seleção e manipulação de informações encontrou na internet um ambiente propício para se disseminar, capaz de impactar nas decisões políticas e até mesmo enfraquecer a democracia e as instituições públicas. Para Fischer9 por ser tão predominante na vida das pessoas, a tecnologia das redes sociais exerce uma atração poderosa na psicologia e na identidade porque transforma a forma como as pessoas pensam, se comportam e agem.

7 VIANA, Antônio Aurélio de Souza Viana; PAOLINELLI, Camila. Problematizando o direito à prova produzida em ambiente virtual: atipicidade, preservação de dados e valoração das provas no contexto da tecnologização das relações jurídicas. In: IWAKURA. Cristiane; BORGES, Fernanda Gomes e Souza; BRANDIS, Juliano Oliveira. Processo e Tecnologia: justiça digital, inteligência artificial, resolução consensual de conflitos, gestão estratégica e governo digital e legal design. Londrina: Editora Thoth, 2022, p. 161.

5 SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016, p. 37.

6 SOUSA, Bernardo de Azevedo e; MUNHOZ, Alexandre; CARVALHO, Romullo. Manual prático de provas digitais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 37.

8 ARENHART, Sérgio Cruz. Technology and Fundamental Guarantees of Civil Procedure. Associação Internacional. Congresso sobre Inteligência Artificial e o impacto no sistema Judiciário civil. Porto Alegre, Brasil, Set. 2022.

9 FISCHER, Max. A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Tradução: Érico Assis. Editora: Todavia, São Paulo, 2023, p. 21.

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As pessoas são classificadas, categorizadas e pontuadas em centenas de modelos com base em nossas preferências e padrões exibidos. Isso estabelece uma base para campanhas publicitárias legítimas, mas também abastece anúncios que identificam com precisão pessoas em necessidades e que as vendem promessas falsas ou exageradas. Eles encontram desigualdade e o resultado é a perpetuação da extratificação social já existente com todas as suas injustiças10

Além disso, o ambiente online é resultado de uma evolução da esfera pública que cada vez mais se encontra “em pedaços” caracterizados por uma série de vocalizações e intenções sociais, políticas, econômicas e culturais. Essa fragmentação reposicionou a sociedade para um outro patamar de liberdade propiciando uma falsa impressão de que tudo pode ser falado, comentado e postado nas redes sociais.11

Não há dúvida do impacto disso nas relações sociais contemporâneas, onde o comportamento pode ser influenciado por postagens cuidadosamente direcionadas pela seleção algorítmica. Como nas redes sociais os algoritmos contextualizam as imagens e as relacionam com determinados padrões e grupos12, tudo fica devidamente categorizado para supostamente melhorar a experiência do usuário.

A internet viabiliza um modo de comunicação que integra diversas plataformas na formação de um ambiente digital. As redes sociais são aplicações tecnológicas utilizadas por pessoas previamente cadas -

10 O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: Como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Trad. Rafael Abraham. Santo André, SP. Editora Rua do Sabão, 2020, p. 112

11 MENEZES, Paulo Brasil. Fake News: Modernidade, metodologia e regulação. Editora Juspodivm, 2021, p. 247.

12 BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021, p. 49.

tradas que aceitam os termos de uso. São, portanto, um espaço privado de convivência pública.

Nesse contexto, não é difícil perceber os potenciais problemas trazidos pela internet para a proteção dos direitos. Seria possível exigir as a compreensão de usuários e plataformas, nesta nova relação civil, de seus deveres e responsabilidades na internet? Ademais, a ausência de barreiras físicas e a indefinição de limites geográficos dificultam o controle desses impactos e facilitam o esvaziamento do controle estatal na sociedade de informação, o que diminui o potencial jurisdicional dos Estados.

Assim, é possível compreender que a proteção constitucional do meio ambiente não se aplica apenas ao meio ambiente natural, mas estende-se ao digital, sobretudo agora, em que a informação é amplificada por meio da internet, pois os efeitos são sistêmicos. Deve haver, portanto, um diálogo entre os variados ramos do direito porque a sociedade desenvolvida na internet demanda novas soluções jurídicas, adequadas para esse ambiente.

2.1. Marco Civil da Internet: Liberdade Sem Responsabilidade?

Com o objetivo de estabelecer princípios, direitos, garantias e deveres para o uso da internet do Brasil, o Marco Civil da Internet foi estabelecido por meio da Lei n. 12.965, publicada no ano de 2014. Naquele momento, a responsabilidade civil foi tratada dentro do capítulo referente ao serviço de provisão de conexão e de aplicações de internet.

Desse modo, compreendeu o legislador que o provedor de conexão não seria responsabilizado civilmente por danos de conteúdo gerado por terceiros13. Ademais, com o objetivo de assegurar

13 Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.965/2014.

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a liberdade de expressão e impedir a censura, os provedores de aplicação somente poderiam ser responsabilizados por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros se não tomasse providências para retirar o conteúdo após ordem judicial específica14

Assim, a depender do serviço – se de conexão ou de aplicação – a responsabilidade civil na internet tem uma diferente resposta jurídica. Por se tratar de um ambiente que conecta diferentes usuários, aquele que provê essa conexão, ou seja, o provedor de conexão, não é responsável por danos de conteúdo gerado por terceiros porque apenas habilita envio e recebimento de pacote de dados pela internet15.

O tratamento é diferente quando se trata de provedor de aplicações. Por ser um serviço que oferece um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet16, o provedor de aplicações é responsável por conteúdos gerados por terceiros, mas apenas quando não obedecer a ordem judicial para a retirada do conteúdo. Ou seja, em regra, não há responsabilidade dos provedores de aplicação por conteúdo Publicada no Diário Oficial da União em 23 de abril de 2014).

14 Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.965/2014. Publicada no Diário Oficial da União em 23 de abril de 2014).

15 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: (...) V - conexão à internet: a habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP; (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.965/2014. Publicada no Diário Oficial da União em 23 de abril de 2014).

16 Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: VII - aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet; (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.965/2014. Publicada no Diário Oficial da União em 23 de abril de 2014).

gerado por terceiros, justamente porque o legislador compreendeu que essa seria a forma de se proteger a liberdade de expressão dos usuários e evitar moderação de conteúdo que pudessem configurar censura.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal discute a constitucionalidade desses dispositivos na sistemática da repercussão geral nos temas 987 e 533. O tema 987 discute se o artigo 19 do Marco Civil da Internet é constitucional ao exigir ordem judicial específica para que ocorra a exclusão do conteúdo17 Já o tema 533 discute se há dever da empresa que hospeda sítio na internet em retirar conteúdo ofensivo sem intervenção do Judiciário18. Ambos tratam da responsabilidade civil de provedores de aplicação de internet, bem como de empresas que hospedam os sítios que proporcionam a propagação do conteúdo ilícito. Atualmente, a responsabilidade dos provedores desse tipo de serviço só é concretizada diante de descumprimento de ordem judicial.

17 EMENTA Direito Constitucional. Proteção aos direitos da personalidade. Liberdade de expressão e de manifestação. Violação dos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal. Prática de ato ilícito por terceiro. Dever de fiscalização e de exclusão de conteúdo pelo prestador de serviços. Reserva de jurisdição. Responsabilidade civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais. Constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e possibilidade de se condicionar a retirada de perfil falso ou tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente somente após ordem judicial específica. Repercussão geral reconhecida. (BRASIL. STF. Tribunal Pleno. Recurso Extraordinário n 1037396 RG. Relator Ministro Dias Toffoli. Brasília/DF. Data do Julgamento: 01 mar. 2018. Data de Publicação 04 abr. 2018.)

18 GOOGLE – REDES SOCIAIS – SITES DE RELACIONAMENTO – PUBLICAÇÃO DE MENSAGENS NA INTERNET – CONTEÚDO OFENSIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR – DANOS MORAIS – INDENIZAÇÃO – COLISÃO ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO vs. DIREITO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE, À HONRA E À IMAGEM. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA PELO PLENÁRIO VIRTUAL DESTA CORTE. (BRASIL. STF. Tribunal Pleno. Agravo em Recurso Extraordinário n 660861 RG. Relator Ministro Luiz Fux. Brasília/DF. Data do Julgamento: 22 mar. 2012. Data de Publicação 07 nov. 2012.)

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Do ponto de vista da responsabilidade civil, a questão parece ser facilmente resolvida a partir dos dispositivos do Código Civil, conforme visto acima. A configuração do ilícito e dos elementos que identificam a responsabilidade parece ser de fácil identificação quando é possível apontar que um terceiro, mas não o provedor do serviço, foi responsável pelo conteúdo. O problema é que as previsões jurídicas do passado vêm se demonstrando insuficientes para organizar e orientar a sociedade contemporânea.

Vários são os casos em que se observa que, sob a proteção da liberdade de expressão, usuários disseminam desinformação e conteúdos ofensivos por meio das redes sociais e websites. Cass Sunstein19 exemplifica essa nova dinâmica contemporânea por meio do caso conhecido como “The Nuremberg Files”, um sítio eletrônico criado nos Estados Unidos com o objetivo de coletar informações de pessoas responsáveis pela prática de aborto para que um dia essas pessoas pudessem ser julgadas por crimes contra a humanidade. No website, uma longa lista de pessoas consideradas abortistas com dados pessoais, placas de carro e endereços era divulgada. Como consequência, três médicos incluídos na lista acabaram mortos e cada um que morria, uma linha cortava seu nome. O que Sunstein pretende sustentar são os perigos dos excessos da liberdade de expressão na internet, sobretudo quando há sítios eletrônicos que são hospedados por terceiros que, supostamente, nada tem relação com o conteúdo.

No Brasil não tem sido diferente. Em recente caso, um humorista brasileiro foi envolvido em polêmica quando um portal de notícias em redes social divulgou informações falsas que ocasionou o suicídio

de uma jovem20. Ainda que se possa apontar a responsabilidade do terceiro, ou seja, ainda que seja possível identificar o criador do conteúdo ilícito, não parece ser suficiente porque as informações falsas circulam rapidamente e promovem um efeito psicológico incontrolável nos usuários as redes. Nesses casos, a espera por uma ordem judicial é suficiente para causar danos ainda maiores do que a ofensa à liberdade de expressão.

Nesse sentido, tramita na Câmara dos Deputados o PL 263021, que estabelece normas relativas à transparência das redes sociais e de serviços de mensagens privadas. Porém, seu principal ponto é tratar da responsabilidade dos provedores dos serviços no combate à desinformação. De acordo com a proposta, em caso de dano imediato ou de difícil reparação os usuários não precisarão ser notificados sobre a remoção do conteúdo, mas poderão recorrer da decisão.

O fato é que as relações sociais avançaram do ambiente físico para o digital. As relações foram virtualizadas, as condutas foram facilitadas e, de algum modo, regulação que poderia ser oferecida pelo direito não é mais suficiente.

2.2. Desafios da Responsabilidade Civil na Internet

Em janeiro de 2023 prédios e bens públicos foram destruídos22. No uso da liberdade de expressão, ci-

20 PEREIRA, Felipe. Caso Choquei: Whindersson Nunes diz apoiar lei contra fake news. CNN Brasil, São Paulo, 25/12/2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/caso-choquei-whindersson-nunes-diz-apoiar-lei-contra-fake-news/. Acesso em: 05 de janeiro de 2024.

21 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2630, de 03 de julho de 2020. Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Brasília: Senado Federal, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2256735. Acesso em: 04 jan. 2024.

19 SUSTEIN, Cass R. #republic: divided democracy in the age of social media. New Jersey: Princeton University Press, 2017, p. 191-192.

22 BRASIL. STF. Tribunal realiza exposição em memória aos ataques de 8/1. Brasília, DF, 02/01/2024. Disponível em: https:// portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu-

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dadãos invadiram os três Poderes da República e atingiram instituições democráticas. As manifestações políticas são protegidas constitucionalmente, assim como vários outros direitos fundamentais, mas é possível perceber que os acontecimentos desse dia derivaram de um escalonamento silencioso da ideia do uso da liberdade de expressão, manifestação e de opinião sem qualquer identificação com suas consequências.

Os atos praticados nesse janeiro de 2023 são trazidos aqui para exemplificar a dinâmica social estabelecida pelo ambiente digital. Qualquer pessoa pode livremente manifestar opiniões nas redes sociais. Celulares, tablets e smartphones são as melhores ferramentas para expressar o descontentamento, a indignação e a opinião sobre a vida alheia. Mais do que curtidas, os discursos de ódio são incentivados pela rapidez da (des)informação e a ansiedade de expressar a opinião. E nada melhor do pautas ideológicas para transformar uma conversa em um conflito, uma opinião em ofensa.

Por outro lado, os avanços tecnológicos, sobretudo da Inteligência Artificial, entregam ainda mais ferramentas para a manipulação da verdade no ambiente digital. Se a manipulação de dados já poderia ser facilmente realizada, as deep fakes possibilitam a manipulação de fatos, de imagem, de voz, de pessoas. Perfis falsos, desinformação e manipulação algorítmica parecem ser o pacote completo capaz de controlar como a sociedade deve se desenvolver nesse ambiente digital, mas, também fora dele, já que até mesmo o sistema democrático e a formação dos espaços de Poder podem ser atingidos por esses avanços.

O fato é que a vida na polis não estava preparada para essas modificações, não da forma como o

do=523698&ori=1. Acesso em: 02 de janeiro de 2024.

Direito idealizava. É que nas sociedades democráticas estabelecidas na ideia de Estado de Direito, o ambiente social é supostamente controlado por regras de convívio social composta de tipificação de condutas que indicam como as coisas devem ou não ser. Algumas condutas são consideradas atos ilícitos com consequências civis e penais, conforme o caso. Nesse arranjo social, espera-se que os indivíduos tomem conhecimento do que a sociedade considera como condutas legais ou ilegais para que assim possa ser responsabilizado pelos seus atos, aliás, essa é a máxima do direito civil “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”23

Ocorre que nem sempre o direito é observado, daí a necessidade de imposição, pelo Estado, das consequências jurídicas previstas em lei, muitas vezes mediante o devido processo legal. Por essa dinâmica, seria fácil imaginar que as condutas sociais que acontecem no ambiente físico podem facilmente migrar para o ambiente digital, mas a responsabilização, por ser apenas a instrumentalização da consequência jurídica, não é afetada.

Assim, é possível considerar que a proteção do espaço público digital se confunde com a proteção do próprio sistema democrático24, de modo que reflexões como essa surgem quando as intenções fiscalizatórias desse espaço público começam a preencher a agenda democrática.

Um líder de um movimento que agregue as fake news à construção de sua própria visão de mundo se destaca da manada dos comuns e deixa de ser

23 Art. 3o Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. (BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei Nº 4.657/1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Publicada em 4 de setembro de 1942, com redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010).

24 MENEZES, Paulo Brasil. Fake News: Modernidade, metodologia e regulação. Editora Juspodivm, 2021, p. 238

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um burocrata pragmático e fatalista como os outros para ser identificado como um homem de ação, que constrói a própria realidade para responder o anseio de seus discípulos. “o que é verdadeiro é a mensagem no seu conjunto, que corresponde a seus sentimentos e suas sensações”25

Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração existe uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas consistem em um formidável vetor de coesão26

Nesse contexto, Menezes27 defende a necessidade de uma accountability ou feedback comunicativo, ou seja, cobranças pluralistas sobre as obrigações das instituições e da sociedade em geral para que não se torne perigoso conviver em espaços digitais com ampla circulação informativa.

Hoje, boa parte das relações jurídicas ocorrem na internet e demandam outras formas de concretização e proteção de Direitos Fundamentais: Liberdade de expressão, privacidade, proteção à imagem, direito à saúde (sobretudo a saúde mental), proteção do consumidor, da criança, do adolescente; Calúnia, injúria, difamação; Estelionato, racismo, falsidade ideológica; Liberdade das mídias, proteção contra o anonimato; Cyberbullying. Responsabilidade civil, penal e administrativa; Propriedade intelectual e proteção de dados.

Assim, destaca-se alguns dos desafios a serem enfrentados pela teoria da Responsabilidade Civil no ambiente da internet:

• Anonimato – a capacidade de permanecer anônimo online deve ser desestimulada até mesmo em função da vedação constitucional existente. Contudo, as plataformas e os aplicativos criam um ambiente que possibilita perfis anônimos. Identificar e responsabilizar esses perfis é um desafio atual;

• Disseminação de desinformação – diante da rapidez e do descontrole, informações falsas podem impactar direitos da personalidade de usuários, bem como gerar estragos até mesmo para o sistema democrático. Personalidades, empresas, políticos e o próprio processo eleitoral podem ser seriamente prejudicados em razão da ausência de mecanismos efetivos capazes de identificar e responsabilizar de modo célere os responsáveis pela disseminação dos conteúdos;

Assédio online, cyberbulling e hate speech – com a virtualização das relações sociais novos comportamentos, muitas vezes espelhados do ambiente físico, geram diferentes repercussões. É necessário repensar a responsabilidade das plataformas quando da ocorrência de ilícitos graves que podem prejudicar grupos para garantir a segurança do ambiente digital.

Considerações Finais

25 EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. Trad. Arnaldo Bloch. São Paulo, Vestígio, 2020. P. 24.

26 EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. Trad. Arnaldo Bloch. São Paulo, Vestígio, 2020. P. 23.

27 MENEZES, Paulo Brasil. Fake News: Modernidade, metodologia e regulação. Editora Juspodivm, 2021, p. 239

O mundo virtual trouxe consigo uma série de desafios legais, especialmente no que diz respeito à responsabilidade civil. À medida que a sociedade avança, encontrar soluções para esses desafios será fundamental para garantir um ambiente online saudável e seguro para todos e os usuários devem

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ser conscientizados sobre suas responsabilidades ao interagir nesse espaço digital.

Conforme visto, a responsabilidade civil na internet é um campo complexo que exige uma abordagem equilibrada entre a liberdade e a proteção dos direitos individuais. Se por um lado é necessário pensar em regulação do ambiente digital, com normas mais efetivas e especialmente pensadas para essa nova realidade, por outro lado, também é necessário repensar o perfil esperado do cidadão na internet. Pensar na responsabilidade civil na internet significa identificar quais obrigações legais os indivíduos, empresas ou entidades governamentais têm, bem como determinar quais consequências legais de suas ações online. Para tanto, é necessário identificar os desafios que esse ambiente digital proporciona, sobretudo quanto ao aspecto da rapidez desses impactos e o papel dos provedores de aplicação no controle dos conteúdos ilícitos disseminados por usuários.

O momento é de evolução, impulsionado pela rápida inovação tecnológica, mudanças na legislação e complexidade das interações online, o que inviabiliza qualquer solução definitiva. No entanto, o debate se faz necessário, justamente para enfatizar a necessidade de novas perspectivas para tentar solucionar os problemas emergentes dessa nova realidade.

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RESPONSABILIDADE CIVIL EMPRESARIAL:

CONTRATO DE SEGUROS COMO

INSTRUMENTO

DE SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS

Palavras-chave

Empresa. Responsabilidade Civil. Riscos.Danos.Seguros

Angélica Carlini

Advogada, parecerista e consultora nas áreas de Direito de Seguros, Saúde Suplementar e Responsabilidade Civil. Sócia diretora de Carlini Sociedade de Advogados. Pós Doutoranda em Inteligência Artificial e Seguros pela Pontificia Universidade Comillas – Madri. Doutora e Mestre em Direito. Pós Graduada em Direito Digital. Professora do Programa de Mestrado em Direito da Escola Paulista de Direito. Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração da Universidade Paulista – UNIP. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – Gestão 2023-2026. Membro da Diretora do Comitê Iberolatinoamericano de Direito de Seguro – CILA da Associação Internacional de Direito de Seguro – AIDA.

Introdução

A expressiva mudança do mundo contemporâneo em decorrência das novas tecnologias e dos avanços científicos introduzidos na vida das sociedades e dos cidadãos é motivo de reflexão em várias áreas do conhecimento. Na área do Direito e, em específico, na Responsabilidade Civil, as mudanças científicas e tecnológicas convidam a um olhar crítico, aprofundado e bastante realista, que possa contribuir para que o Direito continue sendo um instrumento de paz e equilíbrio sociais.

As evoluções tecnológicas e científicas trouxeram novos riscos e avolumaram as possibilidades de danos, o que deve ser enfrentado pela sociedade com cautela porque algumas soluções que parecem ser eficientes se tornam com o passar do tempo, mecanismos que incentivam práticas irresponsáveis ou pouco éticas e, consequentemente, provocam maiores riscos e oportunidades de danos.

Quando o Direito aplicado exacerba os valores indenitários para riscos materializados cuja causalidade está associada a práticas irresponsáveis de setores econômicos, sinaliza aos ofensores que sendo detentores de recursos financeiros poderão agir livremente visto que a consequência será a indenização dos danos em valores monetários. Da mesma forma pode ocorrer quando a contrapartida da ação irresponsável for a aplicação de multas pecuniárias, que igualmente induzem à convicção de que os agentes econômicos que puderem pagar as multas estarão autorizados a agir da forma como desejarem. Nas relações econômicas de consumo os valores de condenações de reparação de danos e os valores de multas são repassados para o preço final do consumidor, o que provoca a perversa inversão de que os consumidores pagam pelas consequências dos riscos que os agentes econômicos criaram.

Assim, a contratação de seguros de responsabilidade civil pode ser tornar um instrumento eficiente para que a atividade empresarial seja realizada com maior cuidado preventivo, na medida em que as regras legais, regulatórias e contratuais dos seguros tem como pilares a boa-fé, veracidade e impedimento a práticas de agravação de risco que são

consideradas como riscos não contratados e, consequentemente, não ensejam garantia pelo segurador e pelo ressegurador.

Essa é a perspectiva desta reflexão: a utilização de seguros facultativos de responsabilidade civil como engajamento da atividade empresarial no propósito de gerar menores riscos e, como suporte para solucionar extrajudicialmente os conflitos entre causadores e vítimas dos danos. A reflexão pretende analisar o papel do seguro facultativo de responsabilidade civil como instrumento para condutas mais responsáveis dos agentes econômicos para reduzir situações de risco e danos causados a terceiros, além de instrumento de solução extrajudicial de conflitos.

1. Atividade Empresarial, Risco e Responsabilidade Civil.

É possível afirmar que toda atividade empresarial gera algum tipo de risco, porém nem sempre é possível classificar uma atividade empresarial como atividade de risco sem que para isso avaliações objetivas sejam realizadas e com fundmentos técnico-científicos.

O estudo de riscos no campo do Direito ainda é incipiente, muito embor o estudo da responsabilidade civil tenha avançado muito e com a contribuição de estudiosos de grande valor acadêmico. Da mesma forma a volumetria dos julgados sobre responsabilidade civil é uma das mais expressivas no Brasil, assim como em outros países do mundo, mas, repita-se, curiosamente, enquanto avançam os estudos e julgados sobre responsabilidade civil a pesquisa acadêmica sobre riscos, as pesquisas sobre riscos na área de Direito ainda são pouco conhecidas.

É curioso que os riscos ainda sejam tão pouco estudados no campo do Direito porque eles têm sido companheiros fiéis da história da humanidade em todos os seus diferentes momentos. Em todos os momentos de sua trajetória histórica a humanidade esteve exposta a diferentes riscos, dos naturais àqueles que ela própria criou e segue criando em seu desenvolvimento científico e tecnológico. Os riscos estão sempre presente, o que varia a depen -

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der da cultura de cada sociedade é a percepção de risco1

As atividades empresariais independentemente de sua diversidade carregam sempre a possibilidade de risco do êxito ou fracasso da atividade. Todo empreendedor, todos os sócios ou acionistas sabem deveriam saber, que as atividades empresariais podem trazer resultados positivos ou não. Prova maior da presença da ideia de risco na atividade empresarial foi a construção da ficção jurídica conhecida como pessoa jurídica, instituto criado para impedir que os riscos financeiros atingissem o patrimônio dos sócios ou acionistas, o que certamente teria sido fator determinante para impedir a evolução técnica, tecnológica e econômica.

A criação da empresa como pessoa distinta da de seus sócios ou acionistas, com responsabilidades e patrimônio apartados, são a comprovação inequívoca das estratégias desenvolvidas pela humanidade para administrar riscos, escapar o quanto possível de suas consequências, especialmente as negativas.

Ocorre que além dos riscos do êxito ou do fracasso do negócio empresarial, devem ser considerados os riscos da própria atividade e a repercussão deles no meio social e econômico em que se inserem. Empresas criam e distribuem produtos e serviços que podem criar riscos para incontáveis pessoas em diferentes partes do planeta, além de riscos para outros seres vivos animais ou vegetais e para os recursos naturais.

Viola 2 destaca que não há unanimidade para a definição de risco até porque ela varia intensamente ao longo da trajetória histórica da humanidade. Reporta o autor que no século VII a palavra risco estava ligada diretamente a ideia de atividade empresarial, ou o que chamamos na atualidade de empreendedorismo, o que associa risco e atividade econômica, ou mais precisamente, risco com possibilidde de resultado econômico (lucro) para quem o pratica.

1 BECK, Ulrich. World at Risk. Cambridge: Polity Press, 2009, p. 12-14. DOUGLAS, Mary; WILDASKY, Aaron. Risco e Cultura: Um Ensaio Sobre a Seleção de Riscos Tecnológicos e Ambientais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.5.

2 VIOLA, Rafael. Risco e Causalidade. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 42.

Acrescenta Viola 3 que a partir do século XX, “(...) o risco passa a ter uma noção de perigo provável ou, na linguagem das seguradoras, a probabilidade ou expectativa matemática de que o perigo irá se manifestar. O risco passa a ser entendido (ou confundido) com sua medição (...).

Sustein 4 afirma que, em geral, as pessoas desenvolvem três crenças sobre riscos e uma delas é a mentalidade de risco zero, ou seja, acreditar na possibilidade que é possível viver inteiramente sem riscos e que essa crença se conecta com outra, a de que o risco é uma situação de tudo ou nada, que algo ou é seguro ou é perigoso, que não existe meio termo quando se trata de risco.

E Luhmann 5 destaca que a avaliação do que pode representar risco ou não é, antes de tudo, uma construção psicológica e social. São fatores sociais que atuam no processo de seleção de riscos realizada pela humanidade.

Também é preciso levar em conta no cálculo de riscos empresariais os chamados riscos de desenvolvimento. James Marins 6 define o risco de desenvolvimento como possibilidade de que um determinado produto venha a ser introduzido no mercado sem que possua defeito cognoscível, ainda que exaustivamente testado, atente o grau de conhecimento científico disponível à época de usa introdução (...).

Hermann Vasconcellos e Benjamin7 trata o risco de desenvolvimento como:

(...) o risco que não pode ser cientificamente conhecido no momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser conhecido somente após certo período de uso do produto ou do serviço. É defeito que, em face do estado da ciência e da técnica à época da colocação do produto

3 Obra citada, p. 43.

4 SUSTEIN, Cass R. Riesgo e Razón. Seguridad, Ley e Medioambiente. Buenos Aires: Katz Editores, 2006, p. 67.

5 LUHMANN, Niklas. Risk: A Sociological Theory. New Jersey: Transaction Publishers, 2008, p. 1.

6 MARINS, James. Responsabilidade da Empresa pelo Fato do Produto: Os Acidentes de Consumo no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. S.Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 128.

7 BENJAMIN, Antônio Hermann de Vasconcellos e. Comentários Ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2011, p. 167.

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ou serviço em circulação, era desconhecido e imprevisível.

Stoco 8 , Calixto 9 e Breviglieri10 destacam em seus trabalhos sobre o tema que o risco de desenvolvimento é parte do imprevisível no desenvolvimento de uma nova tecnologia, aquilo que ainda não é cientificamente conhecido no momento em que a ação prática se materializa. Os resultados da materialização do risco não podem ser conhecidos. Isso enseja a reflexão sobre quem deverá assumir a responsabilidade nessas circunstâncias. Quem será o responsável pela reparação dos danos decorrentes dos riscos de desenvolvimento?

O avanço tecnológico ocorrido no século XXI trouxe novas possibilidades de risco para as atividades empresariais, alguns dos quais eram praticamente impensáveis há pouco mais de 20 anos. De fato, que comerciante dos anos 1950 teve preocupação com os dados de seus clientes que eram arquivados em fichas de papel e ficavam disponíveis para manuseio de todos os empregados? Que fabricante de produtos químicos nos anos 1970 teve preocupação com a possível contaminação ambiental que sua empresa causava? E, que transportador de pessoas dos anos 1990 tinha preocupação com os danos existenciais dos feridos em acidentes de trânsito?

A sociedade contemporânea não apenas criou novas modalidades de riscos como também ampliou a percepção sobre eles, inclusive com áreas do conhecimento que passaram a se dedicar com exclusividade a estudos e pesquisas para riscos específicos, como segurança do trabalho, riscos ambientais e, mais recentemente, de desastres climáticos. As novas tecnologias digitais reservam aos estudiosos enorme campo para pesquisa e reflexões sobre riscos e suas consequências, em especial a inteligência artificial que já tem sido utilizada em grande escala, embora por vezes, nem

8 STOCO, Rui. Defesa do consumidor e responsabilidade pelo risco do desenvolvimento. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 96, n. 855, p. 47, jan., 2007.

9 CALIXTO, Marcelo Junqueira. A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento. S.Paulo: Renovar, 2004.

10 BREVIGLIERI, Etiene Maria Bosco. Desenvolvimento & Responsabilidade Civil. Os Riscos e Custos do Desenvolvimento Tecnológico. S.Paulo: Boreal Editora, 2014.

seja possível perceber sua atividade e influência em nossas vidas.

Este trabalho não tem por objetivo um estudo aprofundado sobre riscos, mas tão somente sobre riscos subscritos pelos seguros de responsabilidade civil no Brasil, país em que o setor de seguros é fortemente regulado pelo Estado e que, portanto, assumir riscos não é uma atividade empresarial que o segurador realiza com toda liberdade. Existem regras legais e infralegais que devem ser cumpridas para que o segurador possa aceitar riscos dos proponentes e oferecer coberturas em apólices de seguro. Importante ressaltar que a regulação estatal não ocorre somente no Brasil, é uma característica da atividade de seguros em vários outros países do mundo, porque afinal, se trata de atividade econômica organizada a partir de recursos de acionistas e de segurados, ou seja, administração de recursos de terceiros.

Assim, as reflexões sobre seguros de responsabilidade civil terão como fundamento a regulação aprovada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, órgãos que compõem o sistema nacional de seguros privados no Brasil.

2. Seguros de Responsabilidade

Civil: Objetivos e Coberturas.

2.1. Aspectos Técnicos e Jurídicos dos Contratos de Seguro.

O artigo 757 do Código Civil brasileiro define que contrato de seguro é aquele mediante o qual o segurado se obriga a garantir o interesse legítimo do segurado relativo à pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados. Assim, o risco para ser subscrito por um segurador precisa atender, no mínimo, os seguintes critérios: (i) ser predeterminado; (ii) ser referente a pessoa ou coisa, inclusive o patrimônio do segurado nos casos de seguro de responsabilidade civil; e, (iii) ser decorrente do interesse legítimo do segurado sobre pessoa ou coisa.

O risco segurável é diferente dos riscos em geral aos quais a sociedade está sujeita. Em outras palavras, não são todos os riscos existentes ou pos -

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síveis de existir que poderão ser subscritos por seguradores. Essa premissa se aplica aos seguros de danos, de responsabilidade civil e de pessoas, sem distinção. Em todos os ramos de seguro existirão riscos passíveis de serem subscritos e outros que não serão cobertos pelo segurador e ressegurador.

Na atividade empresarial isso também acontece sem exceção. Existem riscos decorrentes das diferentes atividades empresariais que podem ser subscritos por seguradores como, por exemplo, incêndio, roubo ou furto de bens, lucros cessantes, quebra de vidros, enchentes, vendavais, queda de aeronave, responsabilidade civil para produtos ou serviços disponibilizados pela empresa no mercado de consumo, responsabilidade civil decorrente de atos de administradores da empresa, entre outros tantos. Mas são passíveis de subscrição pelo segurador os riscos de êxito ou fracasso da empresa, os riscos decorrentes de atos dolosos praticados por administradores, os riscos que resultem de práticas que contrariem normas técnicas legais ou infralegais, entre outros que ficam fora da rubrica de riscos contratualmente cobertos pelo contrato de seguro ou, mais precisamente, são chamados de riscos excluídos.

E não há, em princípio, nenhum obstáculo a exclusão de riscos porque a legislação civil determina que estes sejam predeterminados, o que será feito pelo segurador e pelo segurado pessoa jurídica empresarial na apresentação e discussão da proposta de seguro, momento que antecede à contratação e durante o qual o segurado tem o dever de boa-fé de declarar os riscos aos quais sabe que está sujeito, principalmente quando a atividade empresarial é bastante técnica e específica como acontece, na atualidade, com aquelas atividades que utilizam tecnologias avançadas ou, que ainda disponibilizam pouca informação a seu respeito como acontece com a inteligência artificial, tecnologia blockchain, dispositivos de internet das coisas, e tantas outras inovações que foram incorporadas ao sistema econômico produtivo contemporâneo.

O conhecimento técnico do proponente sobre o risco não é tudo. Há um dever de estrita boa-fé que norteia as relações entre seguradores e segurados. nessa perspectiva que Luis Poças11 afirma

11 POÇAS, Luis. O Dever de Declaração Inicial do Risco no Con-

(...) para além de um fundamento estritamente técnico da declaração do risco, é possível identificar um verdadeiro fundamento ético. Assim, o dever de declaração correcta do risco assume os contornos de uma autêntica obrigação ética de sinceridade, contrapartida do ingresso no universo dos segurados e do inerente benefício da mutualidade, cuja gestão pela seguradora depende de uma aferição precisa do risco. (...)

A contrapartida do segurador é oferecer as coberturas mais aderentes tecnicamente ao risco do proponente e, principalmente, esclarecer com objetividade e clareza os riscos que não serão contratados e aqueles que, embora contratados, poderão não ser objeto de indenização se materializados em decorrência de prática comprovada de agravação de risco pelo segurado.

Nessa perspectiva da boa-fé como elemento essencial dos contratos de seguro, é que se pode afirmar que sejam contratos de cooperação entre as partes, especialmente para reduzir a assimetria de informações que existe entre elas.

Definidos os riscos predeterminados que serão subscritos pelo segurador o contrato pode ser firmado entre as partes e a apólice será o documento mais completo para provar a existência do contrato, suas cláusulas e os valores das coberturas contratadas para os diferentes riscos assumidos, além dos valores de franquia ou participação obrigatória do segurado fixados entre as partes com objetivo de reduzir o valor a ser pago pelo segurado como prêmio. A palavra prêmio cuja origem pode ser latina ou grega significa o valor a ser pago pelo segurado e, nos seguros massificados como automóvel, vida e acidentes pessoais, prestamista, garantia estendida para eletrônicos entre outros, provoca dificuldade de compreensão por parte dos consumidores dado ao sentido significativamente diferente que a palavra possui no linguajar comum.

Firmado o contrato entre as partes nasce a expectativa de que o risco não se materialize porque esse é o interesse legítimo do segurado, que as coisas ou pessoas protegidas pelas coberturas de seguro

trato de Seguro. Coimbra: Almedina, 2013, p. 182.

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não pereçam; e, para o segurador, a expectativa de que não seja preciso buscar no fundo mutual recursos para o pagamento de indenizações porque, dessa forma, não será preciso aumentar os valores de prêmios para que outros segurados possam ingressar na mutualidade.

Materializado o risco e informado o fato ao segurador este deve, de imediato, dar início à regulação do sinistro que é o procedimento técnico necessário para: (i) ter conhecimento do fato e de suas possíveis causas; (ii) avaliar se o fato e suas causas são riscos subscritos na apólice de seguro contratada; e, (iii) mensurar os valores necessários para indenização dos danos materiais e imateriais decorrentes do sinistro.

Sinistro é outra palavra que causa certa incompreensão na comunicação entre seguradores e segurados. Trata-se de palavra que representa o risco materializado e cuja origem etimológica é latina e está associada a situações negativas, ameaçadoras ou funestas. O processo de regulação de sinistro é uma das principais responsabilidades do segurador porque está diretamente associado a obrigação de garantir interesse legítimo do segurado, conforme determinação legal do artigo 757 do Código Civil brasileiro.

É no curso da regulação de sinistro que o segurador avalia causa, coberturas, extensão de danos e, valores que deverão ser suportados pelo fundo mutual que foi organizado e gerido pelo próprio segurador. A responsabilidade é decorrente diretamente da atividade fim do segurador porque garantir significa, exatamente, organizar e administrar os recursos do fundo mutual para o qual contribuíram todos os segurados e que, deverão ser suficientes para custear todas as indenizações decorrentes de riscos cobertos ao longo do período de vigência dos contratos.

Regular um sinistro é determinar se os recursos do fundo mutual deverão ser utilizados e em que proporção, o que torna a atividade de enorme responsabilidade não apenas em relação ao segurado que comunicou o sinistro, mas, também, em relação a todos os demais segurados que participaram da formação do fundo mutual.

No Brasil a regulação de sinistros não é tratada no Código Civil, embora os artigos 771 e 772 estabeleçam obrigações para segurados e seguradores. Os primeiros, avisar o sinistro tão logo o saibam e, os seguradores, efetuarem o pagamento sem incorrer em mora, sob pena de acréscimo de atualização monetária e juros moratórios.

2.2. Seguros de Responsabilidade Civil Facultativa e Regulação no Brasil.

Em 01 de setembro de 2021 entrou em vigor a Circular da Superintendência de Seguros Privados n.º 637, publicada em 27 de julho do mesmo ano12 . Em seu artigo 3º a Circular determina que pelo seguro de responsabilidade civil a sociedade seguradora

“(...) garante o interesse do segurado, quando este for responsabilizado por danos causados a terceiros e obrigado a indenizá-los, a título de reparação, por decisão judicial ou decisão em juízo arbitral, ou por acordo com os terceiros prejudicados, mediante a anuência da sociedade seguradora, desde que atendidas as disposições do contrato.”

A forma de garantia do interesse segurado precisa, necessariamente, estar expressa nas condições contratuais dos seguros de responsabilidade civil, seja por indenização direta ao segurado ou reembolso, quando o segurado efetiva o pagamento da indenização à vítima e, em seguida, é reembolsado dos valores despendidos pela sociedade seguradora.

A nova norma regulatória prevê que os seguradores poderão oferecer coberturas, para custos de defesa e pagamento de multas e penalidades impostas aos segurados.

Carvalho e Xavier 13 ponderam a respeito da cobertura para multas e penalidades:

12 BRASIL. Circular SUSEP 637, de 27 de julho de 2021. Dispõe sobre Seguros do Grupo Responsabilidade Civil. Disponível em: https://www2.susep.gov.br/safe/scripts/bnweb/bnmapi.exe?router=upload/25074. Acesso em 15 de dezembro de 2023.

13 CARVALHO, ngelo Prata de. XAVIER, Vitor Boaventura. Seguros contra Riscos Cibernéticos: Elementos Dogmáticos para a Construção de Mecanismos Securitários em Face dos Riscos Oriundos das Tecnologias de Informação. In TZIRULNIK, Ernesto.

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(...) a cobertura das multas e penalidades aplicadas às empresas seguradas pelas autoridades de proteção de dados, por conseguinte, é outro aspecto de atenção.

A OCDE analisou trinta e cinco apólices afirmativas de risco cibernético comercializadas em variados países e identificou alguma cobertura por multas e penalidades em pelo menos trinta delas. A organização observou, no entanto, que em todas as apólices da amostra esta hipótese estava sujeita à observância de condições predeterminadas.

A natureza da sanção aplicada (se administrativa, civil ou criminal) é também aspecto de discussão a ser resolvida caso a caso e requer interpretação e contextualização da penalidade aplicada no ordenamento jurídico de cada país. Onde se entender, por exemplo, que a penalidade tem natureza penal-administrativa, pode ser questionável a sua inclusão ao espectro de cobertura.

Contratos de seguro de responsabilidade civil não podem se constituir em autorização para o segurado agir de forma contrária a lei, aos princípios éticos e aos valores de uma sociedade. Segurados e seguradores são obrigados a estar atentos para que os riscos cobertos não abriguem ou estimulem condutas temerárias, seja para segurados pessoas naturais ou, jurídicas, cujas atividades econômicas poderão causar danos a maior volume de vítimas.

A nova regulação da SUSEP manteve a possibilidade de contratação de seguros de responsabilidade civil por apólices à base de ocorrências (occurrence basis) ou por apólices à base de reclamações (claims made). Na modalidade à base de ocorrências (occurrence basis) as características essenciais da apólice serão: (i) que os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice; e, (ii) que o segurado apresente o pedido de indenização à seguradora durante a vigência da apólice ou, nos prazos prescricionais previstos em lei. Na modalidade à base de reclamações (claims made) os requisitos são: (i) os da -

BLANCO, Ana Maria. CAVALCANTI, Carolina. XAVIER, Vítor Boaventura. Direito do Seguro Contemporâneo. Edição Comemorativa dos 20 Anos do Instituto Brasileiro de Direito de Seguro – IBDS S.Paulo: Editora Contracorrente, 2021, p. 409.

nos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice ou, durante o período de retroatividade contratado pelo segurado; e, (ii) o terceiro vítima de danos apresente a reclamação durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido no contrato de seguro.

Também poderá ser contratada a modalidade seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claims made) com notificação, quando então os requisitos serão: (i) os danos ou o fato gerador devem ter ocorrido durante o período de vigência da apólice, ou durante o período de retroatividade; ou, (ii ) o segurado tiver notificado fatos ou circunstâncias ocorridas durante a vigência da apólice ou, durante o período de retroatividade. Na primeira hipótese, o terceiro vítima de danos deverá ter apresentado a reclamação ao segurado durante o período de vigência da apólice ou durante o prazo adicional, conforme estiver determina na própria apólice. E, na segunda hipótese, o terceiro vítima do dano deverá ter apresentado a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice ou, nos prazos prescricionais legais.

A notificação na definição da própria circular da SUSEP é o ato por meio do qual o tomador ou o segurado comunicam à sociedade seguradora, nos seguros à base de reclamações com notificação, exclusivamente durante a vigência da apólice, fatos ou circunstâncias potencialmente danosos, ocorridos entre a data limite de retroatividade e o término de vigência da apólice, os quais poderão levar a uma reclamação no futuro.

A circular prevê, ainda, a possibilidade de contratação de seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claims made) com primeira manifestação ou descoberta que se caracteriza pela existência dos seguintes requisitos: (i) os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice ou, durante o período de retroatividade; (ii) o terceiro apresente reclamação ao segurado durante a vigência da apólice ou durante o prazo prescricional, conforme estabelecido na própria apólice; e, (iii) o segurado apresente o aviso à seguradora do sinistro descoberto por ele ou ma -

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nifestado pela primeira vez, durante a vigência da apólice ou, durante o prazo prescricional, conforme previsto na apólice.

A nova norma regulatória da SUSEP determinou que os seguros de responsabilidade civil poderão ser classificados conforme a natureza dos riscos a serem cobertos em: (i) seguros de responsabilidade civil de diretores e administradores de empresas, também conhecidos como seguros D&O; (ii) seguros de responsabilidade civil profissional, também conhecidos como seguros E&O; (iii) seguros de responsabilidade civil de riscos ambientais; (iv) seguros compreensivos de responsabilidade civil de riscos cibernéticos; e, (v) seguros de responsabilidade civil geral.

O seguro de responsabilidade civil de diretores e administradores ou, director and officer, cobre os riscos decorrentes da responsabilidade civil vinculada ao exercício por parte do segurado de atividades próprias de cargos de direção ou administração de empresas. Os seguros de responsabilidade civil profissional ou, E&O, erros and omissions, erros ou omissões, oferece cobertura para responsabilidade civil decorrente da prestação de serviços profissionais objeto da atividade do segurado.

Os riscos decorrentes da responsabilidade civil vinculada a danos ambientais serão cobertos pelo seguro de responsabilidade civil riscos ambientais; e, riscos decorrentes da responsabilização civil, que não possuam ramo específico são enquadrados no ramo de seguro de Responsabilidade Civil Geral ou, simplesmente, RC Geral. O seguro de RC Geral é comumente contratado por escolas, academias de atividades físicas, supermercados, lojas, centros de compra, indústrias, locais de entretenimento e lazer, entre outras inúmeras atividades que podem oferecer risco para frequentadores e usuários.

Os riscos decorrentes da responsabilidade civil vinculada a incidentes cibernéticos como danos aos equipamentos e sistemas de tecnologia da informação, às suas informações ou à sua segurança, são

enquadrados na nova circular do órgão regulador no ramo de seguro de Responsabilidade Civil Compreensivo Riscos Cibernéticos, ou simplesmente, RC Riscos Cibernéticos.

2.3. Seguros de Responsabilidade Civil: Facultativos ou Obrigatórios?

Como se pode perceber, existe ampla gama de seguros de responsabilidade civil que podem ser contratados por empresas com a finalidade de contribuir para o gerenciamento de riscos, inclusive com vistas ao compartilhamento de experiências e informações entre segurados, seguradores, resseguradores e corretores de seguro e resseguro, com objetivo de serem adotadas medidas para mitigar riscos e suas consequências.

Em diferentes países do mundo os seguros de responsabilidade civil são obrigatórios para muitas áreas, em especial, para condução de veículos automotores de vias terrestres e para atividades econômicas. Não raro a experiência desses países com seguros de responsabilidade civil obrigatórios é considerada positiva pelos pesquisadores brasileiros, que não hesitam em apontar essa solução como viável para ser adotada no Brasil.

Alguns aspectos diferenciais merecem reflexão, especialmente, a cultura de responsabilidade civil que países de economia central possuem e, o número reduzido de habitantes que caracteriza os países da Europa continental.

A experiência brasileira com seguros obrigatórios não é positiva e o seguro de veículos automotores de vias terrestres, o DPVAT, é um ótimo exemplo. O valor máximo de indenização pela morte de uma pessoa em decorrência de acidente de trânsito é de treze mil e quinhentos reais, valor notoriamente insuficiente para fazer frente às necessidades da família em caso de óbito de um de seus membros, em decorrência de um acidente de trânsito. Há que se ponderar, no entanto, que a arrecadação de prêmios de seguro para garantir valores mais expressivos de indenização poderia tornar o seguro obrigatório impossível de ser contratado por muitas pessoas que possuem veículos e que, portanto, ficariam impedidas de cumprir a lei em face de sua

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situação econômica. Pessoas que possuem capacidade econômica para possuir um veículo, mas não possuem para custear os valores de prêmios de seguro obrigatório. Assim, a solução dos seguros obrigatórios de veículos automotores foi adotar valor módico para indenizações e, consequentemente, para pagamento de prêmios.

Desde 1992 com a aprovação do Plano Diretor da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP ficou determinado que seguros obrigatórios só podem ser estabelecidos para beneficiar terceiros, já que não se pode impor ao consumidor uma contratação que ele não tenha interesse em concretizar. Mas a lei não estabeleceu que esses seguros devam ser obrigatoriamente oferecidos pelas seguradoras e nem poderia fazê-lo, porque estariam sendo descumpridos os princípios da ordem econômica constitucional e, da Lei de Liberdade Econômica. A Constituição Federal e a Lei de Liberdade Econômica garantem às seguradoras liberdade para decidir quais ramos de seguro desejam operar. Muitos seguradores não operam ramos como saúde, pessoas e acidentes pessoais; outros não disponibilizam seguros de automóvel, embora distribuam seguros de responsabilidade civil para veículos automotores. Cada um dos seguradores organiza seu plano de negócios em conformidade com suas possibilidades técnicas, econômicas e jurídicas.

Um exemplo de experiência não exitosa em seguros obrigatórios no Brasil é o seguro obrigatório de embarcações instituído pela Lei n.º 8.374, de 1991, que tem por objetivo dar cobertura aos danos pessoais causados por embarcações ou por sua carga às pessoas embarcadas, transportadas ou não transportadas, inclusive aos proprietários, tripulantes e condutores das embarcações independentemente da embarcação estar ou não em operação. Os seguradores constataram que a inadimplência dos contratantes era muito alta e, principalmente, que as embarcações brasileiras não recebem fiscalização adequada, razão pela qual são constantes os acidentes com vítimas fatais e de danos pessoais. Esse quadro provoca desequilíbrio das relações porque o pagamento de prêmios é insuficiente para o custeio das indenizações. A consequência foi que os seguradores deixaram de operar com essa modalidade de seguro.

Em 2016, a Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil aprovou a Circular 0414 , por meio da qual ficou decidido que aquela entidade não está obrigada a cobrar a contratação dessa modalidade de seguro quando realiza inscrição ou fiscalização de embarcações. Em outras palavras, a referida diretoria extinguiu a obrigatoriedade de contratação do seguro de embarcações porque os proprietários não conseguiam contratar. E tudo isso, apesar de existir legislação que o qualifica o seguro como obrigatório.

Ainda que existam experiências positivas como os seguros seguro obrigatório de condomínios regulados pela Resolução n.º 218, de 2010, do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP, não se pode afirmar que o país tenha boas referências quando se trata de seguros obrigatórios. Assim, adotar essa solução para o ambiente empresarial não é um caminho positivo. Além disso, para que os seguros obrigatórios sejam efetivamente contratados por todos, indistintamente, os valores de prêmio precisarão ser reduzidos, adequados à realidade das empresas brasileiras e, consequentemente, os valores de indenização também serão pequenos, o que não traria impactos positivos.

Seguros de responsabilidade civil no âmbito empresarial devem ser facultativos, contratados pelos segurados a partir de sua realidade específica de riscos, possibilidade de causar danos e, potencial para custeio do valor do prêmio a ser pago ao segurador. Por outro lado, os seguradores devem ser incentivados a oferecer ampla gama de coberturas com valores igualmente diversificados de limites de indenização, de forma a atender os diferentes perfis existentes no setor produtivo brasileiro.

Das grandes empresas aos pequenos empreendedores ou, ainda, startups que dependem de apoio de amigos ou familiares para terem início, todas as atividades econômicas devem ser incentivadas a contratar seguros como instrumento de gerenciamento de riscos e, ao mesmo tempo, devem poder encontrar no mercado modalidades de seguro que se adequem ao seu perfil e às suas possibilidades.

14 Disponível em: https://www.marinha.mil.br/dpc/sites/www. marinha.mil.br.dpc/files/legislacao/circulares/circular04_16.pdf. Acesso em 20 de julho de 2022.

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A utilização de seguros de responsabilidade civil por empresas deve ser fruto de maturidade da governança administrativa, da construção de uma cultura que associe atividades econômicas produtivas com responsabilidade e instrumentos de gerenciamento de risco. Para isso o papel das instituições é criar mecanismos de incentivo para contratação, muito mais do que utilizar a responsabilidade civil em caráter punitivo que, por força de lei, ela não tem.

Considerações Finais

Por um lado, as atividades empresariais economicamente produtivas têm potencial para gerar grande quantidade de riscos e, consequentemente, de danos materiais e imateriais. Por outro lado, o setor de seguros tem técnica, conhecimento e experiência que viabilizam a criação de diferentes coberturas para responsabilidade civil, possíveis de serem adequadas aos diferentes perfis e necessidades empresariais.

Seguros são um instrumento para gerenciamento de riscos emprerariais que atendem técnica e juridicamente as empresas cujas atividades sejam realizadas de forma lícita. Seria temerário para toda a sociedade que os seguros permitissem aos segurados agir de forma dolosa, intencional, com objetivo de obter resultados econômicos às custas dos prejuízos materiais e imateriais de terceiros.

Quando a empresa contratante de seguro de responsabilidade civil causa danos a terceiros como resultado da materialização de um risco coberto pelo contrato e, com valores de indenização corretamente calculados, o prejuízo é administrável e os resultados negativos são menores para toda a sociedade. Vítimas de danos que são indenizadas por seguros de responsabilidade civil representam menor custo para o Estado, principalmente para o sistema de saúde e previdência social. Esse aspecto é muito relevante para sociedades tão socialmente desiguais como a brasileira.

Mas seguros de responsabilidade civil empresariais são instrumentos da autonomia privada das partes contratantes, não podem ser impostos como obrigatórios em um sistema que já viveu experiências negativas com essa modalidade e, que

embora tenha seguros disponíveis há mais de cem anos, ainda não construiu um debate mais amplo sobre essa modalidade de contrato e sua função social e econômica.

A atividade econômica empresarial em todos os segmentos e dimensões deve ser incentivada a contratar seguros de responsabilidade civil. Os seguradores devem ser incentivados a oferecer modelos de negócios acessíveis a todos e, o Estado, em especial por meio da regulação, deve agir para que o setor tenha não apenas desenvolvimento econômico, mas relevância social como instrumento de solução extrajudicial de conflitos.

Materializado o risco e computados os danos na regulação do sinistro, a indenização das vítimas pelo fundo mutual organizado e administrado pelo segurador é um instrumento extrajudicial relevante para a solução do conflito, para a proteção reputacional da empresa e, principalmente, para impedir vítimas indenes.

Referências Bibiograficas

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO INCORPORADOR

NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS INFORMAIS

Palavras-chave

Incorporação imobiliári. Incorporador. Informal. Responsabilidade

Luiz Gustavo Lovato

Mestre em jurisdição e processo pela PUCRS, advogado e professor

Introdução

A incorporação imobiliária é uma modalidade de contrato complexo, que envolve e engloba uma série de outros contratos, criando uma estrutura apta a garantir a venda de imóveis ainda na planta. Nesse microcosmo jurídico, uma figura é centralizadora: o incorporador. Sujeito de direito, comanda e se responsabiliza, de maneira direta ou indireta, por todas as obrigações assumidas na incorporação imobiliária.

Inicialmente, será tratado o instituto jurídico da incorporação imobiliária, seus limites legais e requisitos formais, bem como a personificação do incorporador. A incorporação, de per si, não apenas como um contrato, mas como um instituto jurídico, é formal, mas pode assumir contornos diversos no decorrer das atividades constitutivas até a entrega do produto final, que são as unidades imobiliárias autônomas. Surge a primeira problemática do presente texto: afinal, se a incorporação imobiliária é modalidade de contrato formal, pode-se considerar existente uma incorporação não formalizada? E o que seria, exatamente, essa personificação do incorporador?

Num segundo momento será tratado o contrato de alienação das unidades imobiliárias autônomas, celebrado ainda na planta. As regras gerais que se aplicam aos contratos de promessa de compra e venda sofrem influência da personificação da figura do incorporador. A problemática neste ponto do texto trata dos efeitos do contrato de promessa de compra e venda celebrado com o incorporador, e que tenha por objeto a aquisição de imóvel ainda na planta. Se a incorporação não foi regularmente formalizada, e o incorporador não personificado, essa modalidade de contrato gera o direito de reserva. Quais são exatamente os efeitos do direito de reserva?

Por fim, será tratada a responsabilidade do incorporador. A figura centralizadora do contrato complexo de incorporação imobiliária e a necessidade de sua participação em todos os contratos periféricos. Nesse conglomerado de atividades, o incorporador é a figura central, e isso define a sua responsabilidade, que pode ser enquadrada tanto na modalidade contratual como extracontratual, objetiva ou subjetiva. É assente na doutrina e na jurisprudência que o incorporador exerce atividade empresarial e, em decorrência disso, a lei civil aplicável pode ser tanto a geral (Código Civil) como a especial (Código de Defesa do Consumidor).

Diante dos temas propostos, este texto busca responder às problemáticas apresentadas, ressaltando-se sempre que o tema não se esgota nas premissas e conclusões aqui apresentadas, já que muitas serão as nuances e até mesmo os percalços que surgem no decorrer de uma incorporação imobiliária.

1. A Incorporação Imobiliária e a Persofinicação do Incorporador

A incorporação imobiliária é regida pela Lei nº. 4.591/641 e suas diversas alterações posteriores. Nessa evolução legislativa apresentaram-se diversas outras leis, isoladas ou verdadeiros microssistemas legislativos, que afetaram a aplicação dos efeitos da lei original. Para exemplificar, foram dois Códigos de Processo Civil, um Código Civil, um Código de Defesa do Consumidor e uma enorme gama de normas, nacionais e regionais, que regulamentam a atividade cartorária.

Quando se fala em incorporação imobiliária, alguns temas devem ser tratados necessariamente: a re-

1 Doravante denominada Lei das Incorporações. A nomenclatura será adotada para dar fluidez ao texto, pois a lei regulamenta também as relações condominiais.

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lação jurídica do terreno sobre o qual será erigida a edificação; a participação do construtor; a atuação dos corretores de imóveis; os contratos celebrados com os terceiros adquirentes; os financiamentos junto às instituições financeiras. Conforme fica claro, não serão tratadas questões de ordem fiscal, tributária, previdenciária ou mesmo penal e trabalhista, já que o escopo do texto é abordar questões contratuais e extracontratuais que podem constituir elementos de responsabilidade civil.

Em sua acepção gramatical, incorporar significa absorver, unir, integrar. A Lei das Incorporações conceitua como “a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”2. Incorporação imobiliária, portanto, é atividade, é prestação de serviço que engloba a entrega de coisa como produto final: a unidade imobiliária autônoma vendida ainda na planta. É obrigação de resultado.

Segundo Pedro Elias Avvad, a incorporação imobiliária é comporta pelos seguintes elementos:

(a) elemento objetivo: representando a divisão do terreno em frações ideais vinculadas a unidades autônomas em edificação a ser construída; (b) elemento subjetivo: o incorporador, pessoa física ou jurídica que realiza a incorporação; (c) o elemento formal: registro do memorial de incorporação no cadastro imobiliário da circunscrição competente, traduzindo como será constituída a edificação; e (d) elemento negocial: a atividade desenvolvida pelo incorporador.3

Uma incorporação imobiliária formal não constitui requisito essencial para a construção de prédios

2 Art. 28, parágrafo único.

3 AVVAD, Pedro Elias. Direito Imobiliário. Teoria Geral e Negócios Imobiliários. 3. ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 572.

ou condomínios edilícios. A estes bastam as autorizações dos órgãos públicos, com a concessão de alvará, licença ambiental, a provação de projeto e lançamentos tributários. A formalização da incorporação imobiliária constitui requisito para a alienação ou oneração de imóveis ainda na planta, e a responsabilidade civil é um dos principais fatores para isso. O art. 32 da Lei das Incorporações estabelece: “o incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente [...]”.

O registro do memorial de incorporação é o divisor de águas da atividade. Isso porque, dentre outros elementos, é nele que se encontram: o negócio celebrado com o proprietário do terreno (compra, doação, permuta); memorial descritivo e projeto da obra a ser realizada e suas respectivas autorizações; custo global e cronograma da obra; minuta da convenção de condomínio (que surtirá efeitos até a assembleia ordinária que constituirá a convenção definitiva); garantia prestadas pelo incorporador para a conclusão da obra. O rol completo de documentos está previsto no art. 32 da Lei de Incorporações, e vincula não apenas o incorporador, mas todos aqueles que, de forma direta ou indireta, participem da atividade. Por ser registrado junto à matrícula do terreno, todos os elementos do memorial serão oponíveis erga omnes.

Dessa forma, o incorporador, que vende unidades autônomas ainda na planta a terceiros, cria uma relação que, segundo Arnaldo Rizzardo, é de condomínio “[...] imperfeito, eis que a co-propriedade só abrange o terreno, os elementos de sustentação do edifício, as áreas livres ou de circulação, e equipamentos de utilização comum.”4 Mas a criação de

4 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 9. ed. rev. e atual.. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1.350.

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um regime condominial autoriza aos terceiros adquirentes a destituição do incorporador original para que a obra seja concluída em regime de condomínio e, nessa hipótese, os próprios adquirentes – agora condôminos – podem concluir a edificação adquirida na planta conforme o memorial averbado originalmente pelo incorporador.

A personificação da figura do incorporador, e não da incorporação em si, é outro elemento crucial para o desenvolvimento da atividade. Isso porque é no momento do registro do memorial de incorporação que o incorporador será formalmente identificado e constituído. Antes disso, as negociações pactuadas dependerão, uma a uma, da participação desse sujeito, que pode ser pessoa natural ou jurídica, e que se responsabiliza nos exatos limites do contrato celebrado.

O incorporador exerce a sua atividade com o objetivo de obter lucro e, por isso, constitui empresário, tendo a sua atividade regida pela lei geral e pelo Código de Defesa do Consumidor. Em suma, o incorporador é o responsável direto por todos os atos da incorporação, e indireto por aqueles que, por ele autorizados, forem realizados no desenvolvimento da atividade, a exemplo da atuação dos corretores de imóveis.

Apesar de a Lei de incorporações estabelecer que qualquer alienação ou oneração de unidades autônomas depende do registro do memorial de incorporação5, antes mesmo desse registro é possível a realização de uma permuta com o dono do terreno: troca-se o terreno por unidades futuras que ainda não foram registradas. Nesse momento, a incorporação ainda não teve o seu memorial registrado, mas a negociação já é feita em caráter irrevogável e irre-

5 Além do já mencionado art. 32 da Lei de Incorporações, o art. 66, I tipifica a alienação antes do registro como contravenção penal.

tratável, para garantir a conclusão da incorporação e os direitos dos terceiros adquirentes de boa-fé. O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos.6

Não é forçoso concluir que, antes do registro do memorial de incorporação junto à matrícula do terreno, perante o Cartório de Registro de Imóveis, o incorporador, embora não esteja personificado formalmente como tal, assim já age. Mas esse agir é vinculado à regularização da incorporação imobiliária para, após o registro, iniciar as negociações das unidades imobiliárias autônomas junto a terceiros adquirentes. Já é incorporador antes do registro, mas ainda não pode atuar plenamente como tal.

2. Direito Real Aquisitivo e Direito de Reserva

Uma negociação de compra e venda de imóvel pode assumir duas formas: a celebração da promessa de compra e venda, que dá direito aquisitivo à escritura pública de compra e venda ou à adjudicação compulsória; ou a escritura pública de compra e venda, que já autoriza a transferência imediata do registro de propriedade junto à matrícula. Justamente por existir essa possibilidade de negócio aquisitivo em uma ou duas fases contratuais, o legislador não autorizou o adquirente de imóvel a fazer o contrato de compra e venda com reserva de domínio. Essa modalidade de cláusula contratual somente é admitida nas compras de bens móveis, à luz dos arts. 521 a 528 do Código Civil. Para imóveis, usa-se o contrato preliminar da promessa.

6 Art. 32, §1º-A da Lei das Incorporações.

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O primeiro contrato, conforme dito no item anterior, é celebrado com o proprietário do terreno para a sua aquisição e posterior edificação. O próprio dono do terreno poderá ser o incorporador7, o que dispensará o contrato aquisitivo para a formalização da incorporação. Esse contrato, que poderá ser de promessa de compra e venda, doação ou permuta, estará necessariamente vinculado ao memorial, para ter oponibilidade erga omnes e, especialmente, preservar os direitos dos adquirentes das unidades autônomas8.

Em relação àqueles que adquirem as unidades autônomas ainda na planta, a contratação poderá ser bifásica (contrato preliminar de promessa de compra e venda e, após a quitação do preço, escritura pública de compra e venda) ou monofásica (escritura pública de compra e venda). Considerando que o contrato de compra e venda de imóveis de valor superior a 30 (trinta) salários mínimos é solene9, a escritura pública é documento essencial, ao fim, para que seja constituída a copropriedade do comprador com os demais condôminos.

A promessa de compra e venda constitui contrato preliminar que confere ao promitente comprador o direito à posse precária imediata do imóvel e o direito real aquisitivo10. Como, nas incorporações imobiliárias, o imóvel é adquirido ainda na planta, não é possível a concessão imediata da posse, o que elimina uma segurança comum aos promitentes compradores. Já o direito real aquisitivo confere ao

7 O art. 31 da Lei das Incorporações define quem está autorizado a figurar como incorporador: o proprietário do terreno, o promitente comprador do terreno, o cessionário ou o promitente cessionário deste, o construtor, o corretor de imóveis ou o ente da Federação imitido na posse a partir de decisão proferida em processo judicial de desapropriação em curso ou o cessionário deste, conforme comprovado mediante registro no registro de imóveis competente.

8 Cf. art. 39 da Lei das Incorporações.

9 Cf. art. 108 do Código Civil.

10 Cf. arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil.

promitente comprador o direito de exigir a celebração da escritura pública de compra e venda (que lhe dará o direito de transferir a propriedade do imóvel adquirido junto à matrícula do bem) ou à adjudicação compulsória.

Já a escritura pública de compra e venda constitui modalidade solene de contrato que a lei prescreve como forma de existência. Isso significa dizer que, caso as partes optem por celebrar um contrato particular de compra e venda de imóvel, este não existirá, mas a vontade declarada, sim. A forma atinge o plano de existência, e não apenas de validade, e a vontade declarada será aproveitada como promessa de compra e venda, e vinculará as partes mediante a criação do direito aquisitivo, com base no disposto no art. 170 do Código Civil.

Como é dever legal do incorporador registrar o memorial de incorporação junto à matrícula do imóvel, já se pode concluir de plano que não existem incorporações regulares em imóveis de posse, que não possuem registro de matrícula, ou que possuam somente a inscrição imobiliária junto à municipalidade. A importância do registro de matrícula junto ao cartório de registro de imóveis é destacada por Nicolau Balbino Filho:

O princípio da publicidade no direito imobiliário moderno fundamenta-se no imóvel – objeto de duração indeterminada, visível e tangível – e não na pessoa do proprietário, que pode mudar. Destarte, inaugurado o trato registral por assento matricial, que consulta o registro pelos lançamentos correspondentes a cada unidade imóvel pode estar tranquilo, porque o fólio real é o espelho que reflete com segurança o seu estado jurídico, quaisquer que sejam as vicissitudes de sua existência, embasado na especialidade suficiente à publicidade que se tem em mira.11

11 BALBINO FILHO, Nicolau. Direito Imobiliário Registral. 2. ed.

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O registro de matrícula, quando houver incorporação imobiliária regular, deve conter, além dos elementos comuns ao memorial, todas as transações realizadas a partir do registro deste, como financiamentos bancários, promessas de compra e venda, escrituras públicas de compra e venda, cessões etc. Embora o registro do contrato de promessa de compra e venda junto à matrícula não seja requisito necessário à constituição do direito real aquisitivo do promitente comprador12, o ato registral garante a segurança jurídica da sua oponibilidade erga omnes13 .

O termo de reserva é uma outra modalidade que, aqui, tem profunda relevância. É contrato atípico, pois não se enquadra nem na promessa de compra e venda e nem no contrato de compra e venda. O art. 32, caput, da Lei das Incorporações proibiu a alienação ou oneração das unidades autônomas antes do registro do memorial de incorporação, mas não a sua negociação. Mas se não pode alienar (venda, doação) e nem onerar (dar em garantia real ou celebrar promessa de compra e venda), o tipo de negócio possível acaba por ser bastante restrito: a reserva de unidade autônoma futura.

Conforme dito no começo deste item, essa reserva já existe nas hipóteses em que o incorporador permuta com o proprietário o terreno por unidades autônomas futuras. Nesse momento contratual, a incorporação imobiliária está apenas no projeto, pois ainda lhe falta o essencial, que é o imóvel. Então, não se está diante de uma permuta propriamente dita, mas de uma permuta atípica. Surge a questão se é possível fazer a reserva de unidades futuras (antes do registro da matrícula) a terceiros interessados.

Pedro Elias Avvad, porém, tem outra visão acerca São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89.

12 Nesse sentido, dispõe a súmula 239 do Superior Tribunal de Justiça: “o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”

13 Cf. art. 32, §2º da Lei das Incorporações.

deste contrato celebrado entre o incorporador e o proprietário do terreno:

Via de regra, o proprietário reserva para si uma parte do terreno, que corresponderá às frações a serem vinculadas às unidades que lhe caberão na incorporação, transferindo, para o incorporador, a fração do terreno restante, que será permutada pela construção (benfeitorias) das unidades que caberão ao dono do terreno e que corresponderão à fração retida.14

Embora seja o regularmente adotado, não nos parece fazer sentido do ponto de vista prático. Isso porque manteria o dono do terreno como coproprietário do incorporador, vinculando a fração permutada à entrega, ao final, de unidades imobiliárias autônomas. Na prática, a permuta normalmente ocorre sobre o todo o terreno, e ao proprietário original fica a reserva de unidades futuras, pois o imóvel é todo transferido ao incorporador. Mas essa é, obviamente, uma situação dentre muitas variáveis.

Sobre o tema do direito de reserva, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu:

Diante da recente nova redação (Lei n. 14.382/22), passou a regular de forma que “O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: [...]”.

Nesse andar, tem-se que a alteração legislativa deixou de vedar a negociação de unidades autônomas em momento anterior ao arquivamento de documentos no Registro de Imóveis, passando a proibir tão somente sua alienação ou oneração, termos, por cer14 AVVAD, Pedro Elias. Direito Imobiliário. Teoria Geral e Negócios Imobiliários. 3. ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 583.

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to, menos abrangentes que a negociação. Note-se, portanto, que a intenção do legislador foi a de abrandar o rigor da proibição contida no dispositivo, de modo a possibilitar a negociação dos imóveis e tão somente impedir a sua efetiva venda ou oneração. Logo, diante da modificação da nomenclatura utilizada, conclui-se que é possível a realização de pactos que visem negociar as unidades habitacionais do empreendimento.15

Na prática é bastante comum ver a celebração da promessa de compra e venda de unidades na planta em incorporações imobiliárias que ainda não tiveram o memorial registrado na matrícula. À luz do que já foi exposto, em especial do art. 170 do Código Civil, não há óbice, e talvez seja salutar, que tais contratos sejam recebidos como termos de reserva, o que não confere o direito aquisitivo da promessa, mas preserva o direito sobre a unidade futura, aproveitando-se a declaração de vontade externada. É questão de segurança jurídica, e deve autorizar a sua averbação junto à matrícula do imóvel, o que atualmente não ocorre por falta de previsão normativa própria.

O problema é que o termo de reserva não pode ter características de alienação ou oneração, por expressa vedação legal. Porém, não é raro que o contrato seja entabulado sob a forma de uma promessa de compra e venda, já com o início do pagamento do preço, ou mesmo a sua quitação. Isso porque o termo de reserva não garante ao signatário a concretização da incorporação imobiliária mas, somente, o direito de adquirir a unidade autônoma após o registro do memorial de incorporação. É contrato preliminar atípico.

3. A Responsabilidade do Incorporador

Uma vez iniciada a atividade empresarial da incorporação imobiliária, o incorporador passa a ser empresário, pois exerce atividade contínua (o desenvolvimento da incorporação) com o objetivo de aferir lucro mediante a alienação de unidades autônomas ainda na planta16. O incorporador assume diversas obrigações que podem ter como sujeitos ativos diversos participantes do processo. Nesse universo, os terceiros adquirentes das unidades ainda na planta são classificados como credores especiais, já que, a eles, se aplica o Código de Defesa do Consumidor17

A responsabilidade nas relações de consumo é solidária entre os fornecedores, e, vinculada à vulnerabilidade legalmente concedida ao consumidor, é, de regra, objetiva com inversão legal do ônus da prova18. O incorporador pode ser pessoa natural ou jurídica, o que não altera o caráter objetivo da responsabilidade, pois não será um profissional liberal, a quem a lei confere responsabilidade subjetiva. Há de se distinguir as personalidades do incorporador da incorporação. O incorporador não pode ser considerado profissional liberal

Embora a incorporação imobiliária assuma personalidade jurídica própria, inclusive com a criação de cadastro nacional de pessoa jurídica junto ao Ministério da Fazenda e Economia, o incorporador é obrigado e responsável pelos atos por ela praticados, pois centraliza em sua pessoa o desenvolvimento da atividade. Nas palavras de Pedro Elias Avvad, “[...] quando o incorporador celebra contrato com o construtor, nada mais fez do que estender-lhe a sua

16 O conceito de empresário está previsto expressamente no art. 966, caput, do Código Civil: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”

15 Agravo de Instrumento nº. 5054611-66.2023.8.24.0000, 5ª Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Cláudia Lambert de Faria, j. 09.10.2023.

17 REsp 686.198/RJ, Relatora para acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/10/2007, DJ de 1º/2/2008.

18 Cf. arts. 18 a 20 do Código de Defesa do Consumidor.

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obrigação, passando ambos a ser responsáveis pela construção.”19 A responsabilidade, no caso, é solidária.

Para preservar direitos dos credores da incorporação, e lei faculta que o incorporador afete patrimônio, fornecendo garantia real para a conclusão da obra e a entrega das unidades aos terceiros adquirentes, ou, como determina a lei, “destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”20 Esse patrimônio de afetação é uma das opções de garantia real que devem ser prestadas pelo incorporador, e tal patrimônio se torna disponível ao incorporador exclusivamente para a prática de atos relacionados ao desenvolvimento da incorporação imobiliária21.

O §2º do art. 31 da Lei das Incorporações determina que “nenhuma incorporação poderá ser proposta à venda sem a indicação expressa do incorporador, devendo também seu nome permanecer indicado ostensivamente no local da construção.” O incorporador, ou a pessoa que assume essa posição nas incorporações imobiliárias, não se presume, e decorre da lei ou do contrato. A formalização da figura do incorporador lhe reveste da responsabilidade solidária com a própria incorporação, já que é o próprio quem conduz, organiza e centraliza todas as atividades e os contratos correlatos, e por isso a sua personificação é tão importante. Conforme dispõe o §1º-A do art. 32 da Lei das Incorporações:

O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição

19 AVVAD, Pedro Elias. Direito Imobiliário. Teoria Geral e Negócios Imobiliários. 3. ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p.597. 20 Art. 31-A, caput, da Lei das Incorporações. 21 Cf. art. 31-A, §3º da Lei das Incorporações.

ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos.

Talvez um dos maiores problemas de uma incorporação imobiliária irregular seja o fato de o imóvel incorporado não trazer a titularidade condominial dos adquirentes das unidades imobiliárias. Sendo assim, os compradores de imóveis na planta não são donos e sequer possuem o direito real aquisitivo do imóvel, conforme apresentado no item anterior. O direito de reserva não garante a posição de condômino ao adquirente.

Em relação ao patrimônio de afetação, essa garantia de natureza real pode não cobrir a integralidade dos danos sofridos com o fracasso da incorporação imobiliária e, nessas hipóteses, os adquirentes, como credores privilegiados, poderão “[...] perseguir o patrimônio pessoal do incorporador, que nesse caso responderá subsidiária e solidariamente.”22 Mais uma vez, a incorporação irregular faz carecer de garantias para conclusão da obra, e o patrimônio pessoal do incorporador, dependendo do tamanho do empreendimento, pode sequer garantir a devolução dos valores pagos pelos adquirentes.

Resta, então, a responsabilidade pessoal daquele que figura como incorporador sem, de fato, ter sido personificado como tal ante a irregularidade da incorporação. Considerando o Lei das Incorporações, tem-se como responsabilidade do incorporador:

a) pelos contratos que, pessoalmente, celebrar e pelas obrigações que neles assumir23;

b) a manutenção e o bom uso do patrimônio de afetação24;

22 AGHIARIAN, Hércules. Curso de Direito Imobiliário. 11. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2012, p. 260.

23 Cf. art. 29, parágrafo único da Lei das Incorporações.

24 Cf. art. 31-A, §2º da Lei das Incorporações.

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c) pela obra, tanto a sua conclusão como a solidez25;

d) em caso de falência do incorporador, pessoa física ou jurídica, e não ser possível o prosseguimento da edificação, “os subscritores ou candidatos à aquisição de unidades serão credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador, respondendo subsidiariamente os bens pessoais deste”26;

e) averbar as unidades autônomas, após a concessão do habite-se, respondendo pela demora no cumprimento desta obrigação27.

Fica evidente que a figura do incorporador é central no desenvolvimento das incorporações imobiliárias. Caso essa figura não exista, ou não seja regularmente personificada, a responsabilidade se dilui, e cada sujeito responderá, via de regra, exclusivamente por ato próprio, por aquilo que assinou. A Lei das Incorporações, quando trata de crimes contra a economia popular, dispõe que, nos contratos dos quais não participe o incorporador, “[...] responderão solidariamente pelas faltas capituladas [...] o construtor, o corretor, o proprietário ou titular de direitos aquisitivos do terreno, desde que figurem no contrato, com direito regressivo sobre o incorporador, se as faltas cometidas lhe forem imputáveis”28. Ao fim e a cabo, o incorporador é o responsável.

Em relação ao dano, elemento essencial para a responsabilização do agente na esfera civil, esse decorrerá do contrato, sendo a responsabilidade eminentemente contratual. É importantíssima a análise do entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca da responsabilidade do incorporador em casos de extinção da incorporação imobiliária:

25 Cf. arts. 35, §6º e 43, II da Lei das Incorporações.

26 Art. 43, III da Lei das Incorporações.

27 Cf. art. 44, caput, da Lei das Incorporações.

28 Art. 66, parágrafo único.

2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entende que, em se tratando de uma relação de consumo, são responsáveis solidariamente perante o consumidor, em caso de defeito ou vício, todos aqueles que tenham integrado a cadeia de prestação de serviço.

Precedentes.

3. Ausente circunstância excludente da responsabilidade, o atraso na entrega do imóvel objeto do contrato de incorporação enseja o dever de indenizar, solidariamente, tanto da incorporadora quanto da construtora. Precedentes.

4. A Lei nº 4.591/1964 confere aos adquirentes o poder de destituição do incorporador. A destituição, além de significar uma penalidade ao incorporador, que paralisa as obras, ou lhes retarda excessivamente o andamento, é também uma causa extintiva do contrato de incorporação. Doutrina.

5. O dia da destituição da incorporadora, com a consequente assunção da obra pelos adquirentes, é o marco final das obrigações constituídas entre as partes.

6. Os riscos do empreendimento estão limitados às cláusulas e à extensão do contrato. Assume o incorporador os riscos contratados e apenas enquanto durar o ajuste.

7. Eventuais aportes financeiros adicionais assumidos pelos adquirentes a partir da destituição não podem ser cobrados do incorporador destituído, sob pena de agravar-se, de forma unilateral, o risco de um negócio originário.

8. Destituído o incorporador, são cabíveis lucros cessantes durante o período compreendido entre a data prometida para a entrega da obra, ou após o esgotamento do prazo de tolerância, quando houver, até a

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[...]

data efetiva da destituição do incorporador, marco da extinção (anômala) da incorporação.

9. O dano moral, em tais circunstâncias, exsurge in re ipsa. A circunstância que conduz o adquirente à assunção de uma obra que, por força contratual, deveria ter sido entregue no prazo estipulado, e não foi, detém a gravidade suficiente para ensejar a hipótese extraordinária necessária para a composição do dano extrapatrimonial.

[...]29

Caso a incorporação imobiliária seja irregular, sem a constituição formal do incorporador e o registro do memorial junto à matrícula do imóvel, ter-se-á a atividade empresarial não personificada daquele que atua como o dono da obra e, portanto, como empresário individual. Aplica-se à hipótese a responsabilidade solidária e integral do empresário, a teor do que dispõe o art. 990 do Código Civil. Porém, mesmo com essa previsão, algumas questões mostram-se eivadas de enorme insegurança jurídica no que diz respeito ao direito de reserva.

Afinal, se a incorporação imobiliária é irregular, não existirão direitos aquisitivos dos terceiros adquirentes, mas apenas o direito de reserva. Se a incorporação não for concluída, qual é o dano sofrido com a frustração do direito de reserva? O entendimento do Superior Tribunal de Justiça trata da existência do dano moral in re ipsa nas hipóteses em que o incorporador se compromete a entregar a obra em determinado prazo, mas não o faz. Em interpretação extensiva, nada justifica excluir o direito de reserva dessa modalidade de pretensão, pois, no momento em que esse direito é livremente pactuado entre o

29 REsp 1881806/SP. Superior Tribunal de Justiça, TERCEIRA TURMA, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 07/05/2021.

incorporador empresário individual e o terceiro interessado, já existe uma pretensão propriamente dita, e não uma mera expectativa de direito. Afinal, o termo de reserva é contrato preliminar.

Tanto o dano moral, como o lucro cessante e a perda de uma chance são institutos aplicáveis à espécie. Porém, como não existirá o memorial de incorporação formalizado, os elementos típicos da atividade, como prazo para a regularização da incorporação, prazo para a conclusão da obra, projeto e padrão de construção deverão constar expressos no termo de reserva. A responsabilidade é contratual, e a extensão do dano dependerá do que fora expressamente pactuado.

Conclusão

A incorporação imobiliária é modalidade de contrato complexo, com a constituição formal de dois elementos: a incorporação em si e a figura do incorporador. Essa formalização cria relações obrigacionais que, via de regra, não se presumem. Conforme se extrai das regras gerais do Direito Civil, a solidariedade da obrigação não se presume, pois decorre da lei ou da vontade das partes30

Em uma atividade empresarial não personificada, o empresário individual responde integral e solidariamente, com o seu patrimônio pessoal, pelas dívidas da sociedade. Grande parte da doutrina foca os seus estudos na solidez da obra e no cumprimento do prazo para a sua entrega 31. De fato, esses são os pontos mais importantes e que comumente costumam gerar danos e responsabilizações. Porém, não se pode olvidar o fato de que a incorporação imo-

30 Cf. art. 265, do Código Civil.

31 Por todos, CAVALIERI FILHO, Sérgio. A responsabilidade civil do construtor e do incorporador. In AZEVEDO, Fábio de Oliveira e BEZERRA DE MELLO, Marco Aurélio (coord.). Direito Imobiliário. Escritos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 775-793.

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biliária, por ser modalidade de contrato complexo, engloba uma série de outros contratos que podem gerar danos, além de uma atividade que pode gerar responsabilidade extracontratual.

Como exemplos da frase anterior, tem-se a comissão do corretor de imóveis, que é paga pelo vendedor que, inicialmente, é o próprio incorporador. Os custos com registros e despesas cartorárias que são, inicialmente, suportados pelo incorporador para a finalização da incorporação, com o desmembramento das matrículas filhas de cada unidade autônoma. Os gastos com as despesas condominiais, tributos e demais obrigações propter rem até a efetivação da compra e venda. Financiamento bancário da obra e dação do próprio imóvel em garantia32 Aquisição de material de construção, quando for contratada empreitada exclusivamente de lavor para a edificação. Enfim, há um universo de possibilidades relacionados à atividade do incorporador que pode gerar responsabilização.

Por mais que exista uma previsão legal acerca da atividade empresarial não personificada e a responsabilidade pessoal do empresário, talvez a não personificação crie empecilhos de natureza probatória para a vítima do ato ilícito. Enquanto o registro do memorial de incorporação imobiliária, por sua natureza registral e fé pública, torna praticamente indiscutíveis eventuais desvios da atividade empresarial do incorporador, a sua ausência demanda a prova de cada elemento da responsabilidade civil, como a conduta voluntária (nexo de imputabilidade), o nexo causal e o dano.

Para fins de reflexão, cabe a lição de José de Aguar Dias, que defendeu a existência de uma responsabi-

32 Superior Tribunal de Justiça, súmula 308: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.

lidade civil não apenas jurídica, mas também moral. Diz o autor que, “[...] para apurar se há, ou não, responsabilidade moral, cumpre indagar do estado de alma do agente: se aí se acusa a existência de pecado, de má ação, não se pode negar a responsabilidade moral.”33 Por mais que se trate de um conceito ultrapassado, confere um caráter extensivo à interpretação da norma jurídica, que não pode se resumir e limitar à pobreza da interpretação gramatical, afinal, o incorporador somente atua como tal com o objetivo de auferir lucro.

Referências

AGHIARIAN, Hércules. Curso de Direito Imobiliário. 11. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2012.

AVVAD, Pedro Elias. Direito Imobiliário. Teoria Geral e Negócios Imobiliários. 3. ed. rev. e ampl.. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

AZEVEDO, Fábio de Oliveira e BEZERRA DE MELLO, Marco Aurélio (coord.). Direito Imobiliário. Escritos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. São Paulo: Atlas, 2015.

BALBINO FILHO, Nicolau. Direito Imobiliário Registral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Lei nº. 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Lei das Incorporações

BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor

BRASIL. Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. A responsabilidade civil do construtor e do incorporador. In AZEVEDO, Fábio de Oliveira e BEZERRA DE MELLO, Marco Aurélio

33 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. V.1. 6º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 5.

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(coord.). Direito Imobiliário. Escritos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. São Paulo: Atlas, 2015.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. V.1. 6º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.

RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 9. ed. rev. e atual.. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 239: “o direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis.”

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 308: “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.”

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 686.198/RJ, Relatora para acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/10/2007, DJ de 1º/2/2008.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1881806/SP. Superior Tribunal de Justiça, TERCEIRA TURMA, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 07/05/2021.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Agravo de Instrumento nº. 505461166.2023.8.24.0000, 5ª Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Cláudia Lambert de Faria, j. 09.10.2023.

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09

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXTRAPATRIMONIAL NAS

RELAÇÕES TRABALHISTAS: BREVE ANÁLISE DOS ARTIGOS DO TÍTULO II-A DA CLT

Palavras-chave

Responsabilidade Civil. Relações Trabalhistas. Dano Extrapatrimonia l.

Rodolfo Pamplona Filho

Professor Titular do Curso de Direito e do Mestrado em Direito, Governança e Políticas Públicas da UNIFACS - Universidade Salvador e Professor Associado IV da Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) da UFBAUniversidade Federal da Bahia. Líder do Grupo de Pesquisa CPJ - Centro de Pesquisas Juridicas no Curso de Direito da UNIFACS - Universidade Salvador (com orientandos de graduação, PIBIC e mestrado), desde 2000, e do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais no Curso de Direito da UFBA - Universidade Federal da Bahia (com orientandos de graduação, PIBIC, mestrado e doutorado), desde 2007. Coordenador dos Cursos de Pós-Graduação On Line em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Contratual do CERS, desde 2016. Possui Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1994), Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), Mestrado em Direito Social pela UCLM - Universidad de Castilla-La Mancha (2012) e Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (tendo exercido sua Presidência, Vice-Presidência, Secretaria Geral e Coordenação Regional da Bahia, sendo, atualmente, Presidente Honorário da instituição), Academia de Letras Jurídicas da Bahia (tendo exercido a sua Presidência, por três mandatos, depois de ter exercido sua Secretaria Geral por três gestões anteriores), Instituto Baiano de Direito do Trabalho (tendo exercido a sua Presidência), Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) e Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Apresentador do Talk-Show “Papeando com Pamplona”. Poeta. Juiz do Trabalho concursado, com posse e exercício em 10/07/1995, sendo, atualmente, Titular da 32ª Vara do Trabalho de Salvador/BA, desde 26/06/2015. Site: www.rodolfopamplonafilho.com.br

INTRODUÇÃO

Epifanio A. Nunes

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela Universidade Salvador (UNIFACS); Pós-graduado em Direito Público e Privado pelo Centro Universitário (UniFTC); Graduado em Direito pelo Centro Universitário (UniFTC); Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Relações Públicas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Foi consultor em Políticas Públicas do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania para a proteção de Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO – PRONASCI); Consultor Jurídico; Professor. E-mail: epifanioanunes1@gmail.com

A relação entre empregador e subordinado ocupa um papel central no estudo do Direito do Trabalho. Isto porque não há uma relação com tal “eletricidade social” tendo em vista o seu alcance na proteção do trabalhador, juridicamente dependente da relação de emprego. Por tal razão, o sistema normativo destina ao polo hipossuficiente uma proteção maior na relação jurídica de direito material trabalhista, concretizando, no plano ideal, o princípio da isonomia, desigualando os desiguais na medida em que se desigualem.

Devido a esse alcance protetivo, durante o contrato de trabalho, as relações intersubjetivas entre o empregado e o empregador podem gerar danos conflitivos, inerentes à responsabilidade civil. E, quando se fala da responsabilidade civil nas relações trabalhistas, a questão torna-se ainda mais complexa, pelo fato de não ser possível aplicar isoladamente as regras de Direito Civil das regras inerentes às relações de emprego e vice-versa.

O reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho para reparação de danos morais e materiais ocorreu de forma gradual, sendo o marco histórico a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que pacificou a competência especializada, inclusive para danos decorrentes de acidente de trabalho1

1 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. A nova competência da Justiça do trabalho: uma contribuição para a compreensão dos limites

Com o advento da Lei nº. 13.467 de 2017, também conhecida como a “lei da reforma trabalhista”, os danos não materiais – que antes eram tratados como dano moral, dano estético e congêneres2 – passam a integrar os “danos extrapatrimoniais”, dos quais, segundo o novel instituto, podem ser vitimados o empregador e o empregado. De fato, a mencionada norma alterou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT - Decreto-Lei nº 5.452 de 1943) acrescentando um título próprio (Título II-A), tratando exclusivamente do dano extrapatrimonial, com a inclusão dos artigos 223-A a 223-G.

O Título II-A traz um novo regramento normativo acerca da responsabilidade civil do empregador e do empregado diante da ocorrência dos danos morais no âmbito das relações regidas pela CLT, cujo ponto polêmico foi a “tarifação da indenização do dano moral”, contendo a imposição de critérios e de limites pecuniários para a indenização de cada caso em específico. do novo art. 114 da Constituição Federal de 1988. Revista Ltr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 70, n. 1, p. 38-49, jan. 2006. 2 O dano imaterial ou extrapatrimonial não se restringe ao dano moral. Há, ainda, os danos à personalidade, à imagem, à integridade psicofísica, à saúde, à existência, à dignidade sexual, dentre tantos outros. Percebe-se que, dada a abstração dos danos imateriais, torna-se impossível exauri-los, sobretudo porque novos danos - cujo conteúdo seja não pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro - são gerados ou percebidos ao longo do tempo.

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No que pese o avanço trazido em relação à tutela dos danos morais na Relação de Emprego - tema o qual um dos autores já desenvolve trabalhos desde o ano de 19973 - a norma contém pontos polêmicos que serão enfrentados neste estudo.

Afinal, uma norma com restrições ao poder decisório jurisdicional, como não poderia deixar de ser, gera debates acadêmicos, doutrinários e jurisprudenciais: questiona-se a constitucionalidade da norma diante da aparente colisão com os direitos fundamentais grafados na Constituição Federal de 1988, como o direito de reparação integral do dano, o livre convencimento motivado do magistrado, a razoabilidade e a proporcionalidade, a proibição do retrocesso social, a proteção do trabalho, a igualdade e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

Antes da reforma trabalhista de 2017, os danos morais decorrentes da relação de emprego eram apurados a partir das normas do direito comum (fontes subsidiárias)4. A partir da vigência do Título II-A, os danos morais decorrentes das relações laborais seriam regulados exclusivamente com base nos artigos 223-A a 223-G.

Mas, estariam as fontes subsidiárias excluídas a partir da reforma trabalhista?

O desafio deste estudo é o de desbravar as nuances e os detalhes inerentes à responsabilidade civil por dano extrapatrimonial decorrente das relações trabalhistas. Contudo, antes de enfrentarmos a análise

3 Rodolfo Pamplona Filho é autor de diversas obras com este tema, cujo início se deu em 1997 com a defesa da Dissertação de Mestrado “O Dano Moral na Relação de Emprego”, lembrando que só no ano de 2004, com a Emenda Constitucional nº 45, a indenização por dano moral ou patrimonial decorrente da relação de trabalho foi incluída na Constituição Federal (inciso VI do artigo 114).

4 Antes da reforma, o direito comum como fonte subsidiária era previsto no parágrafo único do artigo 8º da CLT. Após a reforma, a redação foi em parte mantida no § 1º do mesmo artigo: “§ 1º O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho”.

dos artigos do Título II-A, cabe trazer alguns conceitos importantes para a compreensão do tema. É o que veremos a seguir.

1. Dano Extrapatrimonial

Consiste o dano moral na lesão de direitos, cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente5.

Percebe-se a partir do conceito trazido a importância de sua apreensão, já que a lesão ora discutida ocorre em direitos — repita-se! — cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro, restando afastada qualquer relação ao efeito patrimonial do dano moral ocorrido, pois muitos dos debates sobre a matéria (neste caso, bastante infrutíferos) residem na busca de uma quantificação do dano moral com base nos seus reflexos materiais6

Apenas por uma questão de rigor acadêmico, consideramos salutar distinguir o dano moral direto, o dano moral indireto e o dano moral em ricochete (ou dano reflexo).

O dano moral direto se refere a uma lesão específica de um direito extrapatrimonial, como os direitos da personalidade.

Já o dano moral indireto ocorre quando há uma lesão específica a um bem ou interesse de natureza patrimonial, mas que, de modo reflexo, produz um prejuízo na esfera extrapatrimonial, como é o caso,

5 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. – 4. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1401.

6 Ibidem, Loc. Cit.

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por exemplo, do furto de um bem com valor afetivo ou, no âmbito do direito do trabalho, o rebaixamento funcional ilícito do empregado, que, além do prejuízo financeiro, traz efeitos morais lesivos ao trabalhador.

É interessante diferenciar o dano moral indireto do dano moral em ricochete (ou dano reflexo). Enquanto no dano moral indireto tem-se uma violação a um direito da personalidade de um sujeito, em função de um dano material por ele mesmo sofrido; no dano moral em ricochete (ou dano reflexo) tem-se um dano moral sofrido por um sujeito, em função de um dano (material ou moral, pouco importa) de que foi vítima outro indivíduo, ligado a ele7

Percebe-se que o chamado dano em Ricochete –que será discutido quando da análise do artigo 223B – é uma especial categoria de dano, que, a despeito de não serem suportados pelos próprios sujeitos da relação jurídica principal, atingem pessoas próximas, e são perfeitamente indenizáveis, por derivarem diretamente da atuação ilícita do infrator8

O novo Título II-A da CLT adotou a nomenclatura danos extrapatrimoniais, quando trata do dano moral decorrente das relações de trabalho.

A partir da leitura dos artigos 223-A ao 223-E, é possível extrair o conceito do dano de natureza extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho conforme quis o legislador reformista: é a ação ou omissão danosa, decorrente da relação de trabalho, perpetrada contra pessoa física ou jurídica que tenha sido atinginda em sua esfera moral ou existencial, contemplando a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física, em relação às pessoas físicas; e, a imagem, a marca, o nome, o se-

gredo empresarial e o sigilo da correspondência em relação à pessoa jurídica9

De logo manifestamos nossa discordância desse conceito, extraído da norma reformista. Afinal, conforme será visto adiante, o legislador não foi feliz ao tentar restringir em um rol taxativo (numerus clausus) os acontecimentos passíveis de indenização extrapatrimonial decorrentes das relações de trabalho. E mesmo se a restrição partisse de um rol exemplificativo (numerus apertus), já seria questionável. Expliquemos melhor.

Quando se tenta delimitar o plano de existência dos eventos danosos referentes à responsabilidade civil, tende-se a dizer menos do que se deveria. Isto porque, as hipóteses de ocorrência dos comportamentos lesivos (ações ou omissões) das pessoas é, em si, incalculável e só pode ser verificável por meio da atuação jurisdicional difusa e diante do caso ‘in concreto’10

O fato é que as variantes dano à pessoa, dano existencial, dano estético, dano extrapatrimonial, dano moral, etc., possuem como denominador comum a proteção da pessoa humana e de toda a sua dignidade existencial constitucionalmente assegurada como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.

De acordo com Mauricio Godinho Delgado, Segundo a literalidade da nova Lei, não cabe mais falar em dano moral, dano estético e correlatos: simplesmente despontam os danos extrapatrimoniais, quer de trabalhadores, quer de empresas, que se tornam bastante similares e equivalentes, aparentemente desvestidos da força cons titucional

9 PAMPLONA FILHO, Rodolfo; SOUZA, Tercio Roberto Peixoto. Curso de direito processual do trabalho. 2. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 240.

10 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. Cit., p. 1499.

111
7 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. Cit., p. 1403. 8 Ibidem. Loc. Cit.

inspiradora deflagrada em 1988 em benefício da pessoa humana11

Para Luiz Carlos Amorim Robortella, a expressão “dano extrapatrímonial” define melhor o fenômeno jurídico do que a expressão “dano moral”, que, segundo ele, “não consegue abarcar toda a gama de situações de fato, parecendo vincular-se mais a sofrimentos, dores, angústias, que são apenas uma das formas pelas quais se manifesta”12

Inobstante as respeitáveis opiniões divergentes, entendemos que o termo “dano não material” melhor reflete as lesões do patrimônio imaterial, justamente em contraponto ao termo “dano material”, como duas faces da mesma moeda, que seria o “patrimônio jurídico” da pessoa, física ou jurídica13.

Entretanto, considerando a adoção da expressão “dano extrapatrimonial” no Título II-A da CLT, para fins didáticos, doravante usaremos o termo “dano extrapatrimonial” como antônimo de “dano material”.

2. Dano Extrapatrimonial e Pessoa Jurídica

Superada essa questão, cabe perguntar: pode a pessoa jurídica ser vítima do dano extrapatrimonial?

Havia, até bem pouco tempo, acesa polêmica acerca da possibilidade de pleito de indenização por danos morais no que diz respeito à pessoa jurídica. Por longos anos, considerou-se que os danos morais

11 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 730.

12 ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. Responsabilidade civil do empregador perante o novo Código civil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Campinas, nº. 22, p. 133147, 2003.

13 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. Cit., p. 1401. Luciano Martinez prefere a expressão “dano ao patrimônio imaterial” porque, segundo o autor, é “mais técnica e adequada, ou mesmo a “dano moral” por sua popularidade e difusão”. In: MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 422.

se limitavam às “dores da alma”, sentimentos que a pessoa jurídica jamais poderia ter, pois esta é uma criação do direito, e não um ser orgânico, dotado de espírito e emoções14.

Divergências a parte, se é certo que uma pessoa jurídica jamais terá uma vida privada, mais evidente ainda é que ela pode e deve zelar pelo seu nome e imagem perante o público-alvo, sob pena de perder largos espaços na acirrada concorrência de mercado, afinal, uma propaganda negativa de determinado produto, por exemplo, pode destruir toda a reputação de uma empresa, da mesma forma que informações falsas sobre eventual instabilidade financeira da pessoa jurídica podem acabar por levá-la a uma indesejável perda de credibilidade, com fortes reflexos patrimoniais15.

O fato é que a legislação jamais excluiu expressamente as pessoas jurídicas da proteção aos interesses extrapatrimoniais, entre os quais se incluem os direitos da personalidade. A própria Constituição Federal de 1988 ao preceituar em seu artigo 5º, X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, não fez qualquer acepção de pessoas, não podendo ser o dispositivo constitucional interpretado de forma restritiva, notadamente quando se trata de direitos e garantias fundamentais16.

Da mesma forma, ao assegurar “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (artigo 5º, V), o texto constitucional não apresentou qualquer restrição, devendo o direito abranger a todos, indistintamente.

14 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. Cit., p. 1409.

15 Ibidem, Loc. Cit.

16 Ibidem, Loc. Cit.

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Sem demérito de reconhecer que a teoria dos direitos da personalidade tenha sido construída a partir de uma concepção antropocêntrica do direito, consideramos inadmissível a posição que limita a possibilidade de sua aplicação à pessoa natural.

Essa tese, inclusive, já havia sido consagrada jurisprudencialmente por Súmula do Superior Tribunal de Justiça de nº 227, segundo a qual “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Posteriormente o Código Civil em seu artigo 52 pôs fim à polêmica, estabelecendo expressamente que a proteção dos direitos da personalidade aplica-se às pessoas jurídicas.

Finalmente, a Lei nº. 13.467/2017 trouxe expressamente a possibilidade de reparação dos danos extrapatrimoniais causados não só ao empregado, mas também à empresa (artigo 223-B).

Os danos materiais e os danos extrapatrimoniais trabalhistas podem ser cumulados. Também podem decorrer do mesmo fato ou de eventos diferentes, tendo em vista a distinção dos bens tutelados. Assim, a indenização por danos extrapatrimoniais ocorrerá sem prejuízo das indenizações por danos materiais, decorrentes, por exemplo, de lesões acidentárias.

Feitas estas ponderações, analisaremos, a seguir, os artigos contidos no Título II-A da CLT.

3. Delimitação e Abrangêncoa do Dano Extrapatrimonial Trabalhista

Art. 223-A.  Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.

De acordo com a redação do artigo 223-A, ‘apenas’ o dispositivo do Título II-A deve ser aplicado à repa-

ração do dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho.

A celeuma em relação a esse artigo decorreu da palavra “apenas”, porque, em tese, estaria o magistrado limitado a reparar os danos extrapatrimoniais nas relações laborais exclusivamente com base no Título II-A da CLT. É dizer: pela literalidade da norma, haveria um impedimento de aplicação secundária ou assessoria de outras normas fora do referido título.

Esse é, por exemplo, o entendimento de Augusto César Leite de Carvalho, para quem o artigo 223-A da CLT tenta excluir a proteção contina na Constituição Federal de 1988, no Código Civil e no direito comparado ao limitar a tutela da proteção do trabalhador17

Enoque Ribeiro dos Santos lembra que o Código Napoleônico de 1804 tentou enquadrar todos os fatos sociais da época às normas ali contidas, sendo que o caminhar evolutivo da sociedade demonstrou que fatos sociais dinâmicos diante de leis estáticas criam situações não albergadas pelo direito pré-existente na norma cristalizada, sobretudo diante de fenômenos como a globalização, a virtualização, a cibernética e a inteligência artificial, restando impossível na contemporaneidade a delimitação das situações de ocorrência dos danos extrapatrimoniais trabalhistas18

Para Marcus Aurélio Lopes,

A lei nitidamente busca concentrar toda a disciplina jurídica do dano extrapatrimonial e por isso a palavra “apenas” tem o sentido de excluir outras regras jurídicas incidentes

17 CARVALHO, Augusto César Leite de. Princípios do Direito do Trabalho sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. São Paulo: LTr, 2018, p. 21.

18 SANTOS, Enoque Ribeiro dos. O Dano Extrapatrimonial na Lei 13.467/2017, da Reforma Trabalhista, após o advento da Medida Provisória nº 808/2017. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, v. 29, n. 344, p. 9-20, fev. 2018.

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sobre fatos que se pretendam fundamento de prejuízos extrapatrimoniais. [...] estabelecer que os fatos que ensejam indenização extrapatrimonial se aplicam apenas as disposições da CLT significa que o ordenamento trabalhista supre de forma suficiente, sob o ângulo legal, a disciplina da causa e dos efeitos da responsabilidade por danos extrapatrimoniais decorrentes do contrato de trabalho. [...] A lei expressamente exclui outras regras da incidência sobre danos extrapatrimoniais o que se caracteriza como um comando direto e positivo sobre o fato. [...] No caso do dano extrapatrimonial trabalhista há disciplina jurídica expressa afirmando que apenas a CLT é fonte de direitos. Há, portanto, limitação na aplicação da lei, já que está excluída a incidência do Código Civil e outras leis esparsas sobre responsabilidade extrapatrimonial19. (Grifamos)

Conforme o enunciado nº 18 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho de 2017:

Aplicação exclusiva dos novos dispositivos do Título II-A da CLT à reparação de danos extrapatrimoniais decorrentes das relações de trabalho: inconstitucionalidade. A esfera moral das pessoas humanas é conteúdo do valor dignidade humana (art. 1.º, III, da CF) e, como tal, não pode sofrer restrição à reparação ampla e integral quando violada, sendo dever do Estado a respectiva tutela na ocorrência de ilicitudes causadoras de danos extrapatrimoniais nas relações laborais. Devem ser aplicadas todas as normas existentes no ordenamento jurídico que possam imprimir, no caso concreto, a máxima efetividade constitucional ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 5.º, V e X, da CF). A interpretação literal do art.

19 COELHO, Luciano Augusto de Toledo. LOPES, Marcus Aurélio. Breves comentários ao novo regime do dano extrapatrimonial na justiça do trabalho. IX Amatra, 13 nov. 2017. Disponível em: http://www.amatra9.org.br/breves-comentarios-ao-novo-regime-do-dano-extrapatrimonial-na-justica-do-trabalho-luciano-coelho-e-marcus-aurelio-lopes/. Acesso em 02 agosto de 2023.

223-A da CLT resultaria em tratamento discriminatório injusto às pessoas inseridas na relação laboral, com inconstitucionalidade por ofensa aos arts. 1.º, III; 3.º, IV; 5.º, caput e incisos V e X e 7.º, caput, todos da Constituição Federal20

É de se notar que, em se adotando a literalidade da norma, haveria uma antinomia entre os artigos 223A – que restringe a aplicação apenas dos dispositivos do Título II-A da CLT acerca da reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho – e o artigo 8º da CLT, principalmente em seu §1º, segundo o qual o direito comum é a fonte subsidiária do direito do trabalho.

E a fonte subsidiária tradicionalmente adotada quando ocorrem lacunas na legislação trabalhista é o Direito Civil. Esse entendimento é consagrado não só pelo próprio texto da CLT, mas também do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial. Eis que, numa interpretação literal do artigo 223-A da CLT, o artigo 927 do Código Civil, por exemplo, não poderia ser usado nos casos previstos no Título II-A da CLT, subvertendo e maculando a histórica subsidiariedade do direito civil em relação ao Direito do Trabalho.

Luciano Augusto de Toledo Coelho explica que a interpretação literal do artigo 223-A e seguintes resultaria em situações teratológicas, citando o seguinte exemplo:

[...] um acidente com um motorista, no qual fosse perdida valiosa carga, o dono da carga poderia exigir da empresa transportadora uma indenização por danos morais sem qualquer limitação, utilizando-se o regime civil, enquanto que o motorista, credor de

20 BRASIL. Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Enunciado nº 18. In: 2ª Jornada de 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho. Enunciados aprovados. Brasília/DF: CONAMAT, 2018. Disponível em: <https:// www.anamatra.org.br/attachments/article/27175/livreto _RT_Jornada_19_Conamat_site.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2023.

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parcela alimentar e crédito privilegiado, caso lesionado no acidente, estaria restrito ao regime do Título II-A da nova lei. A responsabilidade objetiva deixaria, por exemplo, de existir, por exemplo, na seara trabalhista, existindo, todavia, na seara civil. Ora, o regime de responsabilidade é um só21

Ademais, a restrição ensejaria a limitação indevida do papel constitucionalmente assegurado ao Poder Judiciário, além de uma restrição da atividade pacificadora dos conflitos sociais, conferida a esse mesmo poder22

De acordo com o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o artigo 223-A violaria o princípio constitucional da isonomia previsto no caput do artigo 5º da Constituição Federal; afastaria a aplicação do artigo 944 do Código Civil, que relaciona a indenização à extensão do dano; desconsideraria a proteção constitucional conferida às relações de trabalho (artigo 7º) e ao meio ambiente (artigo 225)23

A Procuradoria-Geral da República, em parecer juntado à Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5870, entendeu que o legislador ordinário promoveu “o isolamento disciplinar dos direitos fundamentais de personalidade na órbita das relações de trabalho, para submeter-lhes à referida restrição reparatória”24.

A restrição gerada com termo “apenas” deixou clara a necessidade de se interpretar o artigo 223-A conforme a Constituição Federal, sob pena de manifesta inconstitucionalidade.

21 COELHO, Luciano Augusto de Toledo. LOPES, Marcus Aurélio. Op. Cit.

22 PAMPLONA FILHO, Rodolfo; SOUZA, Tercio Roberto Peixoto. Op. Cit., p. 63-65.

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 6069 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em: 03 ago. 2023.

24 Ibidem.

E foi nesse sentido o voto conjunto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes nas Ações Direitas de Inconstitucionalidade de números 5.870, 6.050. 6.069 e 6.082, cuja tese foi aprovada por voto da maioria dos ministros em Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal em julgamento finalizado em 23 de junho de 2023. Segundo o entendimento sedimentado em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a disciplina legislativa em nenhum momento afastou a aplicação dos princípios constitucionais inerentes às relações trabalhistas do regramento dos danos extrapatrimoniais ou de qualquer outra dimensão das relações jurídicas regidas pela CLT, de forma que, ao apreciar cada caso concreto, deverá o magistrado interpretar o ordenamento jurídico como um todo integrado, ainda que a norma prevista no artigo 223-A circunscreva expressamente o tratamento da reparação extrapatrimonial às disposições do Título II-A25

Assim, ficou decidido que, na ausência de contrariedade expressa ao regime da CLT, os parâmetros fixados no Código Civil poderão ser aplicados supletivamente às relações trabalhistas; e eventuais omissões normativas poderão ser suprimidas mediante a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito, nos termos do artigo 4º do Decreto-Lei 4.657/194226

É de se notar que a interpretação perpetrada ao dispositivo pelo STF adota o princípio da unicidade do direito como forma de solução hermenêutica para a problemática do artigo 223-A, afinal, o Direito é, de fato, um só: um sistema único de normas hierarquicamente sistematizadas, disponíveis ao julgador responsável por subsumir o caso concreto à norma legal em abstrato27

25 Ibidem

26 Ibidem.

27 SOUTO, Cláudio. Introdução ao Direito como Ciência Social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971, p. 150.

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O entendimento do Pretório Excelso converge, a propósito, com o de Mauricio Godinho Delgado, para quem a interpretação das regras contidas no Título II-A da CLT não pode ser meramente literalista: deve observar os métodos cinéticos de interpretação jurídica, como o método teleológico, o sistemático e o lógico-racional, possibilitando a harmonização dos preceitos inseridos com o conjunto jurídico mais amplo, previsto na Constituição Federal de 1988, nas normas norma supralegais de Direitos Humanos e nos demais diplomas normativos que tratam da matéria, quer seja do Direito do Trabalho (a exemplo das Leis nº. 9.029/1995 e nº 9.799/1999), quer seja de normas situadas fora do Direito do Trabalho, como é o caso do Código Civil28

Do todo, restou evidente a atecnia da lei nº 13.467 referente à tentativa de restrição da atuação do poder decisório jurisdicional trabalhista.

4. Conceito de Dano Extrapatrimonial e os Titulares do Direito à Reparação

Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.

O artigo 223-B conceitua o dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho e restringe a legitimidade da propositura de ação à pessoa da vítima, que pode ser pessoa física ou pessoa jurídica.

Vale dizer: o mencionado artigo deixa claro que a vítima é a única titular da reparação do dano extrapatrimonial trabalhista. Segundo essa interpretação restritiva, estaria excluído o dano moral em ricochete ou por via reflexa, já que o dispositivo prevê que o trabalhador ou o empregador são os titulares

exclusivos do direito à indenização. Assim, terceiros, alheios a relação de trabalho, estariam impossibilitados de buscar em juízo o ressarcimento de indenização por danos indiretos, gerados por ação ou omissão danosa ao empregado. Noutros termos, segundo essa interpretação literal da norma, a viúva e os filhos do empregado não seriam considerados titulares do direito ao ressarcimento decorrente da morte por acidente de trabalho.

Trata-se de evidente restrição que conflita com vários dispositivos constitucionais e leis ordinárias. Ofende, por exemplo, o artigo 943 da lei civilista, que estabelece que o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança. Ofende, também, o artigo 948 do Código Civil, segundo o qual haverá indenização no caso de homicídio, consistindo no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; bem como a prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. É o caso, por exemplo, do pai de família que vem a perecer por descuido de um inábil segurança de uma agência bancária em uma troca de tiros. Note-se que, a despeito de o dano haver sido sofrido diretamente pelo sujeito que pereceu, os seus filhos, alimentandos, sofreram os seus reflexos, por conta da ausência do sustento paterno29.

A Corte Suprema, antes da promulgação da reforma trabalhista, já havia pacificado o entendimento de que compete à Justiça do Trabalho julgar os danos reflexos ou em ricochete, provenientes do mesmo fato gerador, sendo as vítimas também titulares do direito à reparação dos danos extrapatrimoniais por elas sofridos, decorrentes das relações de trabalho. 29 STOLZE, Pablo;

116
28 DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 786-787.
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. Cit., p. 1388.

A discussão acerca dos danos reflexos ou em ricochete, provenientes do mesmo fato gerador, ganhou relevância por conta da tragédia ocorrida em 25 de janeiro de 2019 na Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho, Minas Gerais, quando uma das barragens da empresa Vale S.A. rompeu, vitimando cerca de duzentos e cinquenta pessoas – trabalhadores, terceirizados e demais vítimas. A tragédia de Brumadinho foi o maior acidente de trabalho do mundo na década30

O evento de Brumadinho resultou na Ação Civil Pública de número 0010261-67.2019.5.03.0028, movida pelo Ministério Público do Trabalho e pela Procuradoria Regional do Trabalho da 3ª Região, tendo o processo terminado em acordo homologado, ensejando a reparação dos danos morais e patrimoniais dos familiares das vítimas, além de outros direitos trabalhistas de natureza individual e homogênea dos sobreviventes e dos familiares, tais como estabilidade no emprego, auxílio-creche, atendimento médico, auxílio-educação, dentre outros; e a compensação por dano moral coletivo ou danos extrapatrimoniais sociais31. Contudo, o chamado “dano-morte” não foi contemplado nesse acordo.

O dano-morte é o dano extrapatrimonial que tem por objetivo indenizar a vítima fatal do evento, sendo que o valor será reclamado pelo espólio do morto.

O dano-morte, decorrente do evento em Brumadinho, foi tratado em outra oportunidade pelo Tribunal Superior do Trabalho. Eis que, na data de em 20 de junho de 2023, entendeu o TST pela obrigatoriedade de se indenizar às vítimas fatais do acidente, cujo direito de ação, de caráter patrimonial, se trans30 DIAS, André Luiz Freitas; REPOLES, Maria Fernanda Salcedo. Dano-morte, Macroeconomia e Dano Existencial no rompimento da barragem da Vale S. A. em Brumadinho, MG Belo Horizonte, MG: Marginália Comunicação, 2021, p. 10. 31 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 6069. Op. Cit..

fere aos herdeiros. O entendimento foi o de que o dano-morte independe das indenizações decorrentes dos acordos firmados na Ação Civil Pública de número 0010261-67.2019.5.03.0028, a serem pagas aos familiares e herdeiros da vítima. Noutros termos restou assentado que o direito à indenização pelo dano-morte é um direito autônomo do falecido, distinto do dano extrapatrimonial reflexo ou em ricochete, sofrido pelos familiares e herdeiros da vítima.

O fato é que, para não incorrer em inconstitucionalidade, o artigo 223-B da CLT deve ser objeto interpretação conforme a Constituição. E foi neste sentido que o Pretório Excelso interpretou o mencionado artigo sem excluir a aplicação supletiva de outras normas.

Adotou a Corte Suprema a interpretação conforme à Constituição ao artigo 223-B da CLT, afastando qualquer interpretação que impossibilite o exercício de pretensão de reparação do dano extrapatrimonial na Justiça do Trabalho nos casos do dano em ricochete ou dano reflexo32

5. Bens Juridicamente Tutelados: Conteúdo Taxativo ou Exemplificativo?

Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.

Art. 223-D. A imagem, a marca, o nome, o segredo empresarial e o sigilo da correspondência são bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa jurídica.

Os artigos 223-C e 223-D trazem, respectivamente, um rol bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física e à pessoa jurídica.

32 Ibidem.

117

O artigo 223-D fez constar expressamente o reconhecimento de que a pessoa jurídica pode ser vitimada de dano extrapatrimonial. O mencionado artigo põe fim à discussão sobre a possibilidade de a pessoa jurídica ser vítima de dano moral, ainda que essa possibilidade já estivesse prevista na Súmula nº. 227 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. Novamente, a se considerar o rol dos direitos tutelados como taxativos, a inconstitucionalidade restaria evidente, afinal ter-se-ia a exclusão de outros bens jurídicos pétreos, constitucionalmente sedimentados. Foi nesse sentido que o Conselho Federal da OAB aduziu, por exemplo, que o artigo 223-C exclui outros bens juridicamente tutelados, como é o caso da idade, da etnia, da nacionalidade e da crença religiosa, previstos na Constituição Federal de 198833

Entendemos que não pode o magistrado trabalhista, diante do caso concreto, restringir a apreciação dos danos tão-somente às hipóteses contidas nos artigos 223-C e 223-D, devendo estes serem tomados apenas de forma exemplificativa. Afinal, uma interpretação literal e restritiva aos bens juridicamente tutelados, excluindo aqueles presentes na Carta Federal de 1988, ensejaria flagrante inconstitucionalidade.

É este, a propósito, o entendimento da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, evento promovido pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra):

É de natureza exemplificativa a enumeração dos direitos personalíssimos dos trabalhadores constante do novo artigo 223-C da CLT, considerando a plenitude da tutela jurídica à dignidade da pessoa humana, como assegurada pela Constituição Fede-

33 Apud BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Op. Cit.

ral (artigos 1º, III; 3º, IV, 5º, caput, e §2º)34

No mesmo sentido, entende Maurício Godinho Delgado:

[...] o rol de “bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa natural” fixado no art. 223C da Consolidação não é, de forma alguma, exaustivo, porém apenas exemplificativo. É que os elencos de fatores antidiscriminatórios são, regra geral, meramente ilustrativos, por força da própria Constituição de 1988 (art. 3º, IV, in fine, CF). A interpretação literalista conduziria à absurda conclusão de que o art. 223-C não respeitaria o fator “deficiência”, embora seja expressamente enfatizado pela Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência, art. 1º) e pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, da ONU, ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n. 186/2008 — e que ostenta status de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF)35.

Gilmar Mendes lembrou que o próprio artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, usado como parâmetro de controle para a impugnação do artigo 223-C, ao tratar do direito fundamental à inviolabilidade da intimidade, faz menção a apenas dois bens jurídicos: a “honra” e a “imagem” das pessoas. Por isso, se fosse adotada a interpretação gramatical ao artigo 223-C da CLT, estaríamos, segundo o Ministro, diante de um “verdadeiro paradoxo hermenêutico”36

34 FELICIANO, Guilherme Guimarães; MIZIARA, Raphael. Enunciados da 2ª jornada de direito material e processual do trabalho organizados por assunto. Disponível em: https://drive. google.com/file/d/1oZL9_JohYjNInVvehEzYDp-bl0fcF6i6/view. Acesso em: 05 out. 2023.

35 DELGADO, Mauricio Godinho. Op. Cit., p. 787.

36 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 6069 Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em: 03 ago. 2023.

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Ao julgar o tema, o plenário do Supremo Tribunal Federal firmou a tese vinculante de que não foi a intenção do legislador ordinário conferir qualquer conteúdo normativo taxativo, mas apenas exemplificativo. A orientação é a de que seja adotada uma interpretação sistêmica, própria do Direito Constitucional contemporâneo, ao invés da interpretação gramatical37

6. Legitimidade Passiva dos Danos Extrapatrimoniais Trabalhistas: Quem Pode Ser Responsabilizado?

Art. 223-E. São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão.

O artigo trata da autoria e da coautoria dos danos extrapatrimoniais decorrentes da relação de trabalho. De acordo com o dispositivo, todos os que tenham colaborado para a ofensa a dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho têm o dever de repará-lo na proporção da ação ou da omissão de cada um dos agentes. Vale dizer: o dispositivo em comento não trata das reparações por dano patrimonial, não havendo que se falar, a partir desse dispositivo, dos danos materiais sofridos pelos trabalhadores38

O artigo 223-E também prevê a responsabilidade solidária ou subsidiária dos agentes39. O dispositivo admite, inclusive, o reconhecimento de culpa concorrente e até mesmo a possibilidade de culpa exclusiva da vítima40. Em qualquer dos casos, deve

37 Ibidem.

38 Contudo, em relação ao mesmo ato lesivo, poderá haver a cumulação dos danos morais e dos danos materiais omissivos ou comissivos, conforme será visto adiante, quando da análise do artigo 223-F da CLT.

39 É importante frisar que a solidariedade decorre da lei ou do contrato: não poderá ser presumida (artigo 265 do Código Civil).

40 GUNTHER, Luiz Eduardo; FERREIRA, Leonardo Sanches; ZAGONEL, Marina. Dano moral coletivo e dano extrapatrimonial

o magistrado observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade com o fim de aferir equitativamente a dosimetria referente à indenização imposta a cada um dos corresponsáveis pelo dano extrapatrimonial41

6.1 Da omissão acerca da responsabilidade objetiva

Percebe-se que a norma foi omissa com relação à responsabilidade objetiva prevista no Código Civil, artigo 927, parágrafo único, segundo o qual a obrigação de reparar o dano independe de culpa nos casos previstos em lei; ou nos casos cuja natureza da atividade desenvolvida pelo autor do dano seja de risco habitual.

Mesmo diante da omissão do novel instituto, o fato é que, inegavelmente, a responsabilidade civil do empregador por ato causado por seu empregado, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele, deixou de ser uma hipótese de responsabilidade civil subjetiva, com presunção de culpa (Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal), para se transformar em uma hipótese legal de responsabilidade civil objetiva. A ideia de culpa, na modalidade in eligendo, tomou-se legalmente irrelevante para se aferir a responsabilização civil do empregador, propugnando-se pela mais ampla ressarcibilidade da vítima, o que se mostra perfeitamente compatível com a vocação de que o empregador deve responder pelos riscos econômicos da atividade exercida42

Portanto, a responsabilidade civil por atos de pessoas empregadas é consectário lógico da condição de empregador. Assim, serão de responsabilidade do trabalhista: incertezas na tutela coletiva do trabalhador. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 8, n. 76, p. 62-75, mar. 2019.

41 SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Op. Cit.

42 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil nas relações de trabalho e o novo Código civil brasileiro. Revista de direito do trabalho, São Paulo, v. 29, n. 111, p. 158-176, jul./set. 2003.

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empregador as indenizações por danos decorrentes do exercício do trabalho ou em razão dele, como é o caso dos acidentes do trabalho e das doenças ocupacionais, conforme o Código Civil, artigo 932, inciso III43. Vale lembrar, aliás, que tal responsabilidade também é objetiva, a teor do artigo 933 do mesmo diploma44

O mencionado, artigo 932, inciso III do Código Civil não deixa margem a dúvidas de que o empregador responde pelos atos dos seus subordinados durante o exercício do trabalho que lhes competir ou em razão dele. Noutros termos, não importa quem seja o sujeito vitimado pela conduta do empregado, pouco importando que seja outro empregado vitimado ou um terceiro ao ambiente laboral (fornecedor, cliente, transeunte, etc.)45.

Mesmo com o advento do artigo 223-E da CLT essa responsabilidade do empregador se mantém. E isso decorre naturalmente da assunção dos riscos do empreendimento prevista no artigo 2º da CLT, bem como da subsidiariedade do direito comum como fonte do direito do trabalho (artigo 8, §1º, CLT), sendo plenamente aplicável o aludido artigo 932, inciso III do Código Civil.

No mesmo sentido, Sebastião Geraldo de Oliveira também entende que o empregador continua sendo o responsável civil pelas ações e omissões de seus gestores ou prepostos e traz os motivos:

Em primeiro lugar, porque a redação do dispositivo não foi taxativa no sentido da exclusão da responsabilidade. Uma mudança tão radical em tema de tamanha importân-

43 Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: [...] III — o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; [...]”.

44 STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. Cit., p. 1031.

45 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil nas relações de trabalho e o novo Código civil brasileiro. Op. Cit.

cia não poderia deixar qualquer margem a dúvidas. Em segundo, porque os riscos do empreendimento sempre foram do empregador (art. 2° da CLT) e não dos que atuam em seu nome e em seu benefício. Em terceiro, porque a Súmula n. 341 do STF há mais de meio século já fixou entendimento no sentido de que o patrão responde pelos atos de seus empregados ou prepostos, tanto que o Código Civil atual consagrou expressamente o princípio no art. 932, III. Em quarto, porque a própria CLT aponta no artigo 157 que cabe ao empregador cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e naturalmente responder quando tais normas não são observadas. Em quinto, porque prevê o § 1° do artigo 19 da Lei n. 8.213/91 que: “A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador” e esse dispositivo não foi revogado. Por último, a norma não afastou a solidariedade dos coautores da ofensa extrapatrimonial, conforme bem assentado no Código Civil: Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932 46

No que concerne à possibilidade de responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, o Supremo Tribunal Federal em 12/03/2020 sacramentou de vez a questão ao julgar o Recurso Extraordinário nº 828.040 que discutiu a matéria. Neste julgamento, o Pretório Excelso firmou a tese de repercussão geral, Tema 932, declarando a constitucionalidade da responsabiliza-

46 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. O dano extrapatrimonial trabalhista após a Lei n. 13.467/2017. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 8, n. 76, p. 17-52, mar. 2019.

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ção objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos previstos em lei; ou quando a atividade, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade. Declarou a Corte Suprema a possibilidade de cumular a aplicação do artigo 927, parágrafo único do Código Civil com o artigo 7º, inciso XXVIII da Constituição Federal na Justiça do Trabalho47.

Caso o acidente seja provocado por seu empregado ou preposto, poderá o empregador ajuizar ação regressiva, nos termos do artigo 934 do Código Civil, visando o reembolso da indenização; poderá, ainda, promover o desconto nos salários. Contudo, a norma deve ser interpretada em consonância com o artigo 462 da Consolidação das Leis do Trabalho, que dispõe, in verbis:

Art. 462. Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.

§ 1o Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.

Assim, para que o empregador possa descontar valores referentes a danos causados culposamente pelo empregado, será necessária a pactuação específica, o que é dispensável, por medida da mais lídima justiça, no caso de dolo48 .

É óbvio que tal avença poderá ser objeto de controle judicial, em caso de ocorrência de qualquer vício que leve à invalidade do negócio jurídico, como é o caso da coação psicológica para a obtenção de determinado documento. Da mesma forma, o elemento anímico deverá ser comprovado pelo empregador, evitando abusos que importariam na transferência do risco da atividade econômica para o empregado. Mais importante, porém, é o fato de que essa regra compatibiliza o caráter tuitivo que deve disciplinar toda norma trabalhista com a rígida regra de direito de que a ninguém se deve lesar, não se chancelando, pela via estatal, a irresponsabilidade de trabalhadores, enquanto cidadãos, pelos atos danosos eventualmente praticados49

E se o dano causado pelo empregado seja justamente o resultado patrimonial de um ato praticado pelo empregado, lesando direitos de terceiros, pelo qual o empregador teve de responder objetivamente? É o que enfrentaremos no próximo tópico.

47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 828.040/DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?. Acesso em: 03 ago. 2023.

48 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil nas relações de trabalho e o novo Código civil brasileiro. Op. Cit.

6.2 O Litisconsórcio facultativo e a denunciação da lide

O empregador responde objetivamente pelos danos causados pelo empregado e não há óbice para que a pretensão indenizatória seja direcionada em face do empregado, fulcrada na ideia de responsabilidade civil subjetiva, ou, melhor ainda, diretamente contra os dois sujeitos, propugnando por uma solução integral da lide, o que se respalda, inclusive, na palavra “também” registrada no caput do já mencionado artigo 932 do Código civil.

Trata-se de uma medida de economia processual, pois permite verificar, desde já, todos os campos de

49 Ibidem, Loc. Cit.

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responsabilização em uma única lide, evitando sentenças contraditórias.

E se a pretensão for deduzida somente contra o empregador, caberia a intervenção de terceiros conhecida por denunciação da lide?

A denunciação da lide, conforme ensina Manoel Antônio Teixeira Filho, [...] traduz a ação incidental, ajuizada pelo autor ou pelo réu, em caráter obrigatório, perante terceiro, com o objetivo de fazer com que este seja condenado a ressarcir os prejuízos que o denunciante vier a sofrer, em decorrência da sentença, pela evicção, ou para evitar posterior exercício da ação regressiva, que lhe assegura a norma legal ou disposição do contrato50

Esta forma de intervenção de terceiros está prevista no artigo 125 do Código de Processo Civil51, sendo que para os litígios envolvendo as relações de trabalho importa o inciso II do mencionado artigo: será admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo.

Imagine-se, por exemplo, que o empregador esteja sendo acionado, sob a alegação de que uma 50 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Litisconsórcio, Assistência e Intervenção de Terceiros no Processo do Trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 1993, p. 196. 51 Art. 125. É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes: I - ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam; IIàquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo. § 1º O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida. § 2º Admite-se uma única denunciação sucessiva, promovida pelo denunciado, contra seu antecessor imediato na cadeia dominial ou quem seja responsável por indenizá-lo, não podendo o denunciado sucessivo promover nova denunciação, hipótese em que eventual direito de regresso será exercido por ação autônoma.

empregada tenha sido assediada sexualmente por um colega de trabalho52. Em função dos danos materiais e morais causados por tal empregado, na sua atividade laboral, deve a empregadora responder objetivamente, se provados todos os três elementos indispensáveis para a caracterização da responsabilidade civil, sem quebra do nexo causal.

Nesse caso, baseando-se no já mencionado artigo 462 da Consolidação das Leis do Trabalho, é plenamente cabível a responsabilização regressiva do empregado.

Por que não fazê-la nos mesmos autos da ação principal?

Poder-se-ia argumentar que isso faria demorar o ressarcimento da vítima, por ser gerada uma nova lide entre dois sujeitos, não tendo ela interesse jurídico em discutir a culpa, pela previsão legal de responsabilização objetiva.

Essa não nos parece, porém, a melhor solução.

Imagine, por exemplo, que não seja deferida a denunciação da lide, sob tal fundamento — muito comum, inclusive, em ações de responsabilidade civil do Estado — mas, na ação regressiva, o suposto assediador nega a autoria e materialidade do fato. Haveria, sem sombra de dúvida, a possibilidade jurídica de sentenças contraditórias, que desprestigiariam a atividade jurisdicional.

Assim sendo, consideramos não somente possível a formação do litisconsórcio passivo, mas, principalmente, recomendável o eventual deferimento da denunciação da lide, garantindo-se, assim, uma resolução integral da demanda e possibilitando uma maior celeridade na efetiva solução do litígio e uma economia processual no sentido macro da expressão. Até

52 Mais sobre o tema, ver: PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O assédio sexual na relação de emprego. São Paulo: LTr, 2001.

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mesmo se tal ação foi ajuizada na Justiça do Trabalho, não haverá motivo razoável para se afastar a intervenção de terceiros quando o dano decorrer da relação de emprego, nos termos do artigo 114, VI da Constituição Federal.

6.3 Responsabilidade extrapatrimonial em relações triangulares de trabalho

A relação triangular de trabalho é um fenômeno recente, caracterizado pela existência de uma relação jurídica que ultrapassa a linearidade da clássica fórmula bilateral empregado-empregador.

No caso, uma empresa é contratada para executar determinadas atividades laborativas em favor da empresa contratante, assumindo em seu lugar o pagamento dos salários dos trabalhadores, desconcentrando as atividades da empresa contratante. Noutras palavras, haverá uma dúplice relação jurídica, em que um sujeito contrata os serviços de outro, em um pacto de natureza civil, e este último contrata empregados, que trabalham em atividades relacionadas com o tomador de serviços53. Nesse conceito se enquadram os serviços temporários ou terceirizados.

Trata-se de modelo de excelência empresarial e administrativa, com a possibilidade de redução de custos de mão-de-obra, especialização dos serviços prestados, ampliação da competitividade e da produtividade54

Ao ler o artigo 223-E da CLT, o já mencionado artigo 932, III do Código Civil e o §3° do artigo 5°-A da Lei 13.429/201755, resta evidente que o tomador res -

53 PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil nas relações de trabalho e o novo Código civil brasileiro. Op. Cit. 54 Ibidem. Op. Cit.

55 Lei 13.429/2017, artigo 5°-A, §3º: “É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato”.

ponde pelos danos extrapatrimoniais causados aos trabalhadores.

No caso, aquele que se beneficiou do serviço deverá arcar, direta ou indiretamente, com todas as obrigações decorrentes da sua prestação. A ideia dessa responsabilização se baseia em uma culpa in eligendo do tomador de serviços, na escolha do prestador, bem como in vigilando da atividade exercida, aplicando-se analogicamente outras disposições da legislação trabalhista, como, por exemplo, o artigo 455 da Consolidação das Leis do Trabalho56.

Assim, por exemplo, se um determinado restaurante terceiriza o serviço de manobrista de seus clientes, deve responder, juntamente com o empregador do manobrista pelos danos causados ao consumidor no exercício dessa função.

Cabe frisar que a empresa contratante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços (§ 5° do artigo 5°-A da Lei nº 13.429/2017), o que se estende às hipóteses de dano extrapatrimonial.

Cada pessoa jurídica responderá na exata proporção de sua participação para a ocorrência do evento danoso, conforme o já comentado artigo 223-E; e aquele que suportou inicialmente a indenização terá direito de regresso contra a pessoa por quem se responsabilizou, nos termos do artigo 934 do Código Civil.

56 CLT, artigo 455. “Nos contratos de subempreitada responderá o subempreiteiro pelas obrigações derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos empregados, o direito de reclamação contra o empreiteiro principal pelo inadimplemento daquelas obrigações por parte do primeiro. Parágrafo único. Ao empreiteiro principal fica ressalvada, nos termos da lei civil, ação regressiva contra o subempreiteiro e a retenção de importâncias a estes devidas, para a garantia das obrigações previstas neste artigo.”

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Não se trata de uma novidade no sistema, mas, sim, da consagração da ideia de que se deve propugnar sempre pela mais ampla reparabilidade dos danos causados. Assim, aquele que se beneficia de determinada atividade deve arcar com os danos eventualmente causados por ela.

7. Possibilidade de Cumulação dos Danos Patrimoniais e Extrapatrimoniais

Art. 223-F. A reparação por danos extrapatrimoniais pode ser pedida cumulativamente com a indenização por danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo.

§ 1º. Se houver cumulação de pedidos, o juízo, ao proferir a decisão, discriminará os valores das indenizações a título de danos patrimoniais e das reparações por danos de natureza extrapatrimonial.

§ 2º A composição das perdas e danos, assim compreendidos os lucros cessantes e os danos emergentes, não interfere na avaliação dos danos extrapatrimoniais.

Prevê o dispositivo a possibilidade de cumular as reparações por danos extrapatrimoniais (decorrentes da indenização por dano moral ou dano estético) e danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes) decorrentes do mesmo fato lesivo57. Trata-se de regra prevista anteriormente na Súmula número 37 do STJ, segundo a qual “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.

De acordo com o §1º, quando o pedido de reparação por danos extrapatrimoniais for cumulado com o pedido de danos materiais, deverá o juízo discriminar os valores referentes a cada uma das indenizações, o que impossibilita, neste caso, a fixação de um valor unitário. Conforme Sebastião Geraldo de

57 SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Op. Cit.

Oliveira, “esse preceito legal está fundamentado no fato de que, para os danos materiais, a fonte normativa continuará sendo o Código Civil; contudo, para os danos extrapatrimoniais, será aplicável no novo Título II-A da CLT”58

Por fim, o parágrafo 2º apenas deixa claro que os danos materiais (lucros cessantes e os danos emergentes) não interferem na avaliação dos danos patrimoniais, justamente por conta da natureza jurídica diversa das indenizações, que termina por justificar, em si, a cumulação dos pedidos.

8. Critérios de Fixação da Indenização Trabalhista Por Dano Extrapatrimonial

Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:

I - a natureza do bem jurídico tutelado;

II - a intensidade do sofrimento ou da humilhação;

III - a possibilidade de superação física ou psicológica;

IV - os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;

V - a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;

VI - as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;

VII - o grau de dolo ou culpa;

VIII - a ocorrência de retratação espontânea;

IX - o esforço efetivo para minimizar a ofensa;

X - o perdão, tácito ou expresso;

58 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Op. Cit.

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XI - a situação social e econômica das partes envolvidas;

XII - o grau de publicidade da ofensa.

A partir da leitura dos 12 incisos percebe-se a intenção do legislador reformista de indicar as provas e os fatos relevantes que deverão ser observados pelo magistrado no momento de formação do juízo de equidade para fixar o valor da indenização extrapatrimonial.

Contudo, inobstante a existência das diretrizes constantes do novel artigo, dada a imaterialidade do bem juridicamente tutelado e diante da infinitude de situações indenizáveis possíveis de acontecer, decorrentes da relação de trabalho, entendemos não ser possível a existência de diretrizes taxativas, mas tão-somente exemplificativas. Por exemplo: ainda que a norma preveja a possibilidade de se elevar o valor da indenização ao dobro quando houver reincidência entre partes idênticas (§ 3o, artigo 223-G), não fez constar no rol das considerações um dos objetivos da indenização que é o seu caráter inibitório ou preventivo da reincidência de novas ações ou omissões lesivas59.

Vejamos a fixação dos limites contidos no § 1º do artigo 223-G:

Artigo 223-G [...]

§ 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:

I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;

II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;

III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;

59 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Op. Cit.

IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.

§ 2º Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com observância dos mesmos parâmetros estabelecidos no § 1o deste artigo, mas em relação ao salário contratual do ofensor.

§ 3º Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização.

A partir da leitura da norma em destaque, percebe-se que o objetivo do legislador reformista foi o de fixar limites para as indenizações decorrentes de danos morais, se utilizando de critérios objetivos com o fito de evitar decisões judiciais em situações semelhantes com valores díspares; ao mesmo tempo em que estabeleceu uma gradação de valores com base na classificação da ofensa conforme a sua gravidade.

Eis que, a partir dos limites trazidos nos incisos do § 1.º do artigo 223-G, passou-se a questionar a sua constitucionalidade diante do princípio da supremacia formal e material da Constituição Federal de 1988 sobre as leis e demais atos normativos.

A pertinência do questionamento acerca da constitucionalidade § 1.º do artigo 223-G advém do fato de que não pode o legislador ordinário violar o princípio da isonomia (artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988), estabelecendo limitações indenizatórias por danos extrapatrimoniais voltadas exclusivamente às relações de trabalho, quando em outros ramos do Direito inexiste normas limitantes devido à evidente impossibilidade de se mensurar, a partir de normas abstratas, todos os acontecimentos concretos, passíveis de indenização.

125

Noutras palavras, não se pode engessar a liberdade do magistrado de analisar e mensurar o evento danoso, tolhendo-lhe o alcance de suas decisões na reparação do dano extrapatrimonial prejudicando a justa e integral reparação, contrariando o princípio da reparação integral previsto nos incisos V e X do artigo 5º, bem como o inciso XXVIII do artigo 7º da Constituição Federal de 1988:

Artigo 5º [...]

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;

Conforme bem lembra Maurício Godinho Delgado, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, V, ao mencionar expressamente a noção de proporcionalidade, inegavelmente afastou o critério de tarifação da indenização por dano extrapatrimonial60.

Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro também lembra que inexiste no artigo 5º, X, da 60 DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei nº 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 146.

Constituição da República qualquer previsão de regramento ou de qualquer hipótese de delimitação de valores pecuniários destinados à reparação por danos extrapatrimoniais, de forma que o magistrado deve tomar por referência os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade61

Assim sendo, no que toca à reparação por danos extrapatrimoniais, entendemos que deve-se primar pela ampla e total reparação, tendo como substrato balizador os princípios da razoabilidade e proporcionalidade em prol do equilíbrio na fixação dos valores indenizatórios, alcançando não só as funções reparatória e sancionatória, mas também a função pedagógica, tudo para, de alguma forma, amenizar a dor sofrida pela vítima bem como para dissuadir o agente de novamente praticar atos deste jaez.

Portanto, deve o magistrado, revestido de arbítrio e de prudência, emitir o juízo valorativo do dano moral, sentenciando a indenização na exata medida da reprovabilidade da conduta ilícita; duração e intensidade do sofrimento da vítima; condições sociais do ofendido; capacidade econômica do causador do dano; além de circunstâncias outras que se façam presentes62

Nesta senda, assim decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª região:

INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONTROLE DIFUSO E INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE. TARIFAÇÃO DA INDENIZAÇÃO POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS PREVISTA NOS INCISOS I A IV DO § 1º DO

61 CASTRO, Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de. A tarifação da indenização do dano moral: prefixação do quantum reparatório, apud MIESSA, Élisson (Org.). A reforma trabalhista e seus impactos. Salvador: JusPODIVM, 2017, p. 472

62 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 155.

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ART. 223-G DA

LEI Nº 13.467/17. INCOMPATIBILIDADE MATERIAL COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE. A limitação da reparação por danos extrapatrimoniais nas relações de trabalho viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88), da isonomia (art. 5º, caput da CF/88) e da reparação integral (art. 5º, V e X e art. 7º, XXVIII, ambos da CF/88), impondo-se, em respeito ao princípio da supremacia da Constituição Federal, a declaração em controle difuso e incidental de inconstitucionalidade dos incisos I a IV do parágrafo 1º do artigo 223G da CLT, introduzido pela Lei nº 13.467/17, por incompatibilidade material com o texto constitucional63.

O Ministro Gilmar Mendes julgou as ações de forma conjunta, tendo o plenário do Supremo Tribunal federal firmado a seguinte tese vinculante com relação ao valor da reparação por danos extrapatrimoniais na esfera trabalhista:

Diante destes questionamentos, as Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade de números 6069, 6050, 6082, 5870 foram protocolizadas, todas com o tema da tarifação da indenização por danos morais, tendo como ponto em comum, dentre outros, as alegações de ofensa aos princípios constitucionais referentes à reparação integral do dano, do livre convencimento motivado do magistrado, da razoabilidade e da proporcionalidade, da proibição do retrocesso social e da proteção do trabalho64.

63 BRASIL. TRT da 2ª Região; Processo: 100475221.2020.5.02.0000; Data: 05-11-2021; Órgão Julgador: Tribunal Pleno - Cadeira 73 - Tribunal Pleno - Judicial; Relator(a): JOMAR LUZ DE VASSIMON FREITAS - Acórdão publicado em 16/11/2021

64 O chamado “tabelamento do dano moral” (ou extrapatrimonial) chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio de três ADIs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade): ADI 6069, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); ADI 6050, de autoria da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) e a ADI de número 6082, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI). A ADI 5870 foi julgada por unanimidade extinta sem resolução do mérito, em razão da prejudicialidade por perda superveniente de objeto, nos termos do voto do Relator.

O Tribunal, por maioria, conheceu das ADIs 6.050, 6.069 e 6.082 e julgou parcialmente procedentes os pedidos para conferir interpretação conforme a Constituição, de modo a estabelecer que: 1) As redações conferidas aos arts. 223-A e 223-B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou dano em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 2) Os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no art. 223G, caput e § 1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superiores aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade. Tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber (Presidente), que julgavam procedente o pedido das ações. Plenário, Sessão Virtual de 16.6.2023 a 23.6.2023. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Origem: Distrito Federal. Relator: Min. Gilmar Mendes). (Grifamos).

Portanto, a partir do entendimento exarado pelo Pretório Excelso, a quantificação da reparação por dano extrapatrimonial serve como um critério de orientação e de fundamentação da decisão judicial, o que não impede o arbitramento do dano em valores acima dos limites máximos trazidos nos incisos I a IV do § 1º do artigo 223-G, de acordo com as circunstâncias do caso concreto e conforme os prin-

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CLT, INTRODUZIDO PELA

cípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade.

Considerações Finais

Essas são as nossas reflexões sobre a responsabilidade civil por dano extrapatrimonial nas relações trabalhistas. A título de sistematização doutrinária, podemos assim compreender o tema:

O dano extrapatrimonial é a lesão aos direitos de conteúdo não pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro, restando afastada qualquer relação ao efeito patrimonial do dano moral ocorrido. Em outras palavras, o dano extrapatrimonial ocorre quando a ofensa atinge a esfera personalíssima da pessoa, a exemplo da honra, da imagem, da intimidade e da vida privada, dentre outros bens imateriais.

A Lei nº. 13.467 de 2017, dentre outras modificações trazidas, incluiu na CLT um título próprio (Título II-A), inserindo os artigos 223-A a 223-G com o objetivo específico de tratar dos danos não materiais, reunidos sob a denominação de “danos extrapatrimoniais”, dos quais podem ser vitimados o empregador e o empregado. Antes da mencionada norma, os danos morais decorrentes da relação de emprego eram apurados a partir do direito comum (fontes subsidiárias), em especial o Código Civil.

A norma trouxe restrições ao poder decisório jurisdicional ensejando o questionamento acerca da constitucionalidade do novo regramento, tendo em vista os princípios da reparação integral do dano, do livre convencimento motivado do magistrado, da razoabilidade e da proporcionalidade, da proibição do retrocesso social, da proteção do trabalho, da igualdade e, sobretudo, da dignidade da pessoa humana.

O artigo 223-A gerou grande celeuma ao constar em sua redação que ‘apenas’ o dispositivo do Título

II-A da CLT deve ser aplicado à reparação do dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho, o que dispensaria o Direito Civil como fonte subsidiária. Diante da controvérsia, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o magistrado, ao apreciar cada caso concreto, deverá interpretar o ordenamento jurídico como um todo integrado, não estando restrito ao Título II-A da CLT.

O artigo 223-B conceitua o dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho e restringe a legitimidade da propositura de ação à pessoa da vítima, que pode ser pessoa física ou pessoa jurídica, o que gerou discussões acerca dos danos reflexos ou em ricochete, tendo a Corte Suprema adotado interpretação conforme a Constituição, afastando qualquer interpretação que impossibilite a pretensão de reparação do dano extrapatrimonial na Justiça do Trabalho.

Os artigos 223-C e 223-D trazem um rol de bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física e à pessoa jurídica. Questionava-se se seriam taxativos ou exemplificativos, tendo o plenário do Supremo Tribunal Federal decidido serem exemplificativos.

O artigo 223-E trata da autoria e da coautoria dos danos extrapatrimoniais decorrentes da relação de trabalho. Todos os que tenham colaborado para a ofensa a dano extrapatrimonial decorrente das relações de trabalho têm o dever de repará-lo na proporção da ação ou da omissão de cada um dos agentes.

Muito embora a lei tenha sido omissa acerca da responsabilidade objetiva do empregador por danos decorrentes do exercício do trabalho, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese de repercussão geral, Tema 932, declarando a constitucionalidade da responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho nos casos

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previstos em lei, ou quando a natureza da atividade apresentar exposição habitual a risco com potencialidade lesiva.

De acordo com o artigo 223-F, é possível cumular as reparações por danos extrapatrimoniais e danos materiais decorrentes do mesmo fato lesivo.

Consta do artigo 223-G uma lista de 12 incisos com as diretrizes que deverão ser observados pelo magistrado no momento de formação do juízo de equidade para fixar o valor da indenização extrapatrimonial. O mencionado artigo também fixa limites para as indenizações decorrentes de danos extrapatrimoniais, o que gerou questionamentos acerca constitucionalidade dessa limitação e tabelamento, tendo o Pretório Excelso decidido que a quantificação da reparação por danos extrapatrimoniais serve tão-somente como um critério de orientação e de fundamentação da decisão judicial, o que não impede o arbitramento do dano em valores acima dos limites máximos trazidos nos incisos I a IV do § 1º do artigo 223-G, de acordo com as circunstâncias do caso concreto e conforme os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade.

Diante das dúvidas, críticas e incertezas, restou claro que o legislador reformista não foi feliz com as inovações trazidas com os artigos do Título II-A, sobretudo porque, a considerar a literalidade dos dispositivos, restariam alguns deles eivados de inconstitucionalidade, o que levou o Pretório Excelso, depois de provocado, a realizar um verdadeiro “malabarismo hermenêutico” para não declará-los inconstitucionais, adotando uma interpretação conforme a constituição dos trechos polêmicos, ainda que a literalidade de alguns deles padeça de flagrante inconstitucionalidade por ofensa a princípios pétreos.

Finalizamos o trabalho com um questionamento para a reflexão: se mesmo alguns juristas e entidades entendem pela inconstitucionalidade de trechos do Título II-A da CLT– o que ensejou, inclusive, a interpretação conforme a constituição pelo STF –, como explicar ao homem médio – o verdadeiro interessado – que a literalidade do texto não significa exatamente o que foi lido?

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A INCONSTITUCIONAL LIMITAÇÃO DAS

INDENIZAÇÕES POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Palavras-chave

Flexibilização dos Direitos Sociais. Função Instrumental dos Danos Morais. Inconstitucionalidade da Reforma Trabalhista.

Resumo

O artigo tem o objetivo descrever e analisar a constitucionalidade das inovações normativas impostas ao campo da responsabilidade civil nas relações laborais com a reforma trabalhista de 2017. A partir de uma abordagem crítico-reconstrutiva na primeira etapa do trabalho revisitamos a doutrina justrabalhista para recuperar as premissas de proteção social do trabalho e desenvolver como indenização por danos morais é instrumento de promoção da dignidade humana nas relações empregatícias. Na segunda parte do texto procedemos à análise de conteúdo dos argumentos formulados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.069. Como resultados identificamos que a tarifação dos danos extrapatrimoniais é incompatível com a ordem constitucional, pois está estruturada numa noção de igualdade que anula a complexa e diversa matriz semântica-ontológica da dignidade humana no paradigma do Estado Democrático de Direito. Além disso, cria uma sistemática indenizatória para as relações trabalhistas diversa daquelas que orientam as relações privadas, essa incoerência no interior da ordem constitucional estabelece o salário do ofendido como o único parâmetro da reparação por danos morais decorrentes do labor. Concluímos que a decisão da corte de estabelecer interpretação conforme a Constituição ao disposto no art. 223-G não foi adequada para superar as ofensas constitucionais à igualdade e à dignidade, pois embora tenham tido o intuito, apenas de orientar, os limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G funcionam de forma tácita como recurso de interpretação e delimitação da medida reparadora nos casos concretos.

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INTRODUÇÃO

Rodrigo Portela Gomes

Professor Adjunto do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Co-Líder do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo e História na América Latina (IDP). Dou-tor em Direito, Estado e Constituição pela UnB com período de visita técnica na Universidad Nacio-nal de Colombia, financiado pela FAP/DF. E-mail: rodrigo.portela@academico.ufpb.br.

José Paes de Santana

Professor do Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro Oeste (UNIDESC). Doutor Honoris Causa pela Emil Brunner World University (EBWU). Doutorando pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). E-mail: paesdireito1@gmail.com.

Em um contexto pós-escravismo, do ponto de vista legal em 1888, surge no cenário brasileiro, a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, com o desafio de conciliar as expectativas econômicas e sociais.

As inovações normativas trazidas na terceira constituição brasileira, inauguravam a expressão “bem-estar social” a partir de seu preâmbulo e de forma embrionária já previam a proibição da classe social como fator discriminatório, além de enfatizar a proteção social do trabalhador. Contraditoriamente deu sustentação à política imigratória para substituir a mão-de-obra escrava para um país eminentemente agrário e de dimensões continentais, consolidando um dos principais fatores da desigualdade racial no país, com a interdição do trabalho formal para a maioria da população negra.

Assim, não apenas o trabalho, mas o programa de proteção social dele decorrente tinha uma dimensão instrumental primordial para reconstrução do

país em bases mais plurais e democráticas, regido pela justiça social. Nesse sentido a reparação por danos morais no âmbito laboral também integram o rol de instrumentos que atreladas ao trabalho como direito fundamental, tem como pretensão a realização da justiça, igualdade e dignidade. Razão por que aqui se discuti por meio de uma abordagem crítico-reconstrutiva, as inovações normativas dos artigos 223-A, 223-B e 223-G parágrafo 1º, I a IV, trazidas pelo legislador intertemporal.

Especificamente, no que diz respeito à tarifação dos danos sofridos pelo obreiro com base em seu salário, se evocaram diversas premissas constitucionais, por isso o artigo pretende discorrer até que ponto a manutenção de tais excertos legais não representa uma involução legislativa no contexto histórico das Constituições brasileiras, contrariando princípios como o da vedação ao retrocesso. Numa análise do conteúdo constitucional temos como hipótese trata-se de mais uma interdição legal a produzir efeitos deletérios as relações laborais, recuperando pre-

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ceitos discriminatórios a partir da condição socioeconômica que se insere o sujeito de direito, tendo em vista que o valor de seu salário é um dos fatores determinantes para circunscrever sua classe social.

Nesse sentido admitir tais limitações no quantum indenizatório, ainda que de forma meramente orientativa, é legitimar a perpetração de dominação entre as classes sociais, como algo natural, o que não encontra guarida, nem no constitucionalismo democrático legitimado, e albergada em um regime de governo exercido pela soberania de representantes eleitos pelas maiorias, tampouco deveria encontrar apoio nas Cortes Constitucionais, que no seu papel contramajoritário, deveriam ser o ponto de equilíbrio das tensões existentes entre a norma procedente das Casas Legislativas e que atentam contra os direitos fundamentais de grupos sociais marginalizadas, mesmo em um contexto social democrático. Para cumprir com os objetivos, na primeira etapa apresentamos os fundamentos teóricos para a função instrumental das reparações por danos extrapatrimoniais e na segunda etapa, a título de ilustração analisamos como a alteração legislativa estabeleceu uma cognição constitucional restritiva à promoção da justiça, igualdade e dignidade do trabalhador.

1. Responsabilidade Civil nas Relações Trabalhistas: Instrumento de Promoção da Dignidade do Trabalhador

Antes de ser um instituto justrabalhista, a responsabilidade no direito civil, já alude que alguém que deve garantir a outrem uma resposta, por um dano causado, observada a relação de causa e efeito entre o dano causado e o prejuízo sofrido. No Brasil o Código Civil de 1916, já previa, como cláusula geral, essa reparação do ponto de vista material, em seu artigo 159, e especificamente o artigo 1.538 do mesmo instituto, já trazia a gênese da reparação do

dano estético, que hoje se inclui como espécie de dano extrapatrimonial.1 Outros exemplos, como a cláusula geral de responsabilização das estradas de ferro e o dever de indenizar pelas mercadorias que receberam para transportar, em caso de perda total ou parcial, por furto ou avaria, com inversão do ônus da prova, pela culpa sempre presumida das companhias, salvaguardadas algumas exceções ali previstas.

A CLT, todavia, ao desenhar a relação de emprego apoiada no princípio da proteção2, trouxe por meio da Reforma Trabalhista, inserida pela lei 13.467/17, uma previsão para reparação por danos extrapatrimoniais, delineada dos artigos 223-A ao 223-G, observando apenas a vulnerabilidade socioeconômica ou hipossuficiência, inovando no contexto jurídico nacional, por apresentar previsão legal expressa sobre o dano extrapatrimonial,3 novidade com origens no Direito Civil Italiano, que por lá, nasce a partir de uma cláusula típica e fechada prevista inicialmente no artigo 2.059, in verbis: “Il danno non patrimoniale deve essere risarcito solo nei casi determinati dalla legge,”4 o que numa tradução livre significa dizer que “os danos não pecuniários só serão indemnizados nos casos determinados por lei”.

1 BRASIL. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em 10 dez. 2023.

2 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 02 dez. 2023.

3 BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm. Acesso em: 23 dez. 2022.

4 ITÁLIA IT212. Codice civile. (approvato con Regio Decreto del 16 marzo 1942, n. 262, e come modificato dalla Decreto 7 dicembre 2016, n. 291). Disponível em: https://www.wipo.int/wipolex/es/ text/430550. Acesso em 13 dez. 2023.

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Assim se verifica que no Brasil o direito positivo cria uma cláusula geral de indenização na responsabilidade civil, característica dos ordenamentos atípicos ou abertos, aplicável à reparação patrimonial e/ou moral, por meio de um único excerto legal, qual seja, o artigo 186 do atual Código de 2002, enquanto na Itália o Código Civil, como mencionado acima, cria uma cláusula fechada de responsabilização para os danos não patrimoniais, onde só é permitido indenizar os casos determinados em lei, como uma característica dos ordenamentos típicos ou fechados, embora o mesmo Código Civil italiano, tenha previsto esta cláusula aberta apenas para os danos patrimoniais no artigo 2.043.5

Doutrinariamente, contudo, o dano não patrimonial, no início dos anos 90, na Itália, tem nova subdivisão sob a expressão “dano existencial,” para se remeter aos projetos de vida do indivíduo, cunhada por Paolo Cendon e Patrizia Ziviz, in “Il danno esistenziale: una nuova categoria dela responsabilità civile”6 Hoje, porém não resta dúvida, na doutrina e no direito posto, de que o dano material, diversamente do não patrimonial, se reporta ao patrimônio da pessoa, englobando o dano material efetivamente sofrido ou dano emergente, e aquilo que deixou de receber ou lucros cessantes.

Já o dano extrapatrimonial se subdivide em moral, afeto aos direitos da personalidade; estético, configurado por lesão à saúde ou a integridade física quer morfológica ou fisiológica, independentemente da aparente visibilidade do dano, e existencial, como

5 Wesendonck, Tula. O Dano Existencial na Jurisprudência Italiana e Brasileira: um estudo de direito comparado. In: Revista da AJURIS – v. 38 – nº 124, dez. 2011, p. 328-356. Disponível em: Disponível em: https://www.responsabilidadecivil.org/single-post/2018/03/28/o-dano-existencial-na-jurisprud%C3%AAncia-italiana-e-brasileira-um-estudo-de-direito-compara. Acesso em 15 dez 2023.

6 CENDON, Paolo, ZIVIZ, Patrizia. Il danno esistenziale: una nuova categoria della responsabilità civile. Milão: Giuffrè Editore, 2000.

aquele que impede o obreiro de “executar, de prosseguir ou mesmo de recomeçar os seus projetos de vida, que serão, por sua vez, responsáveis pelo seu crescimento ou realização profissional, social e pessoal.”7

A seguir, contudo, estabeleceremos como premissa constitucional de proteção social ao trabalho, entre outros aspectos, o princípio da dignidade humana.

2. As Premissas Constitucionais de Proteção Social do Trabalho

Defere a Constituição Federal de 1988 – CF/88, em seu artigo 5º, V e X, a indenização por dano material, moral, à imagem, à intimidade, à vida privada e à honra, circunscrevendo a abrangência dos danos materiais e não materiais, a partir de cláusula geral aberta, como já mencionado neste artigo. É certo que a CF/88 estabeleceu como fundamento da República Federativa do Brasil, entre outros, a dignidade da pessoa humana, além dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.8

Ou seja, o arcabouço constitucional instituiu como premissas a proteção social ao trabalho, a isonomia, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a justiça social, a boa-fé objetiva, sempre precedidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio da isonomia é o baluarte na disciplina dos direitos e garantias fundamentais, e não por acaso é a porta de entrada para a disciplina dos direitos e deveres individuais e coletivos na CF/88. Este princípio é o antecedente lógico para garantir “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

7 ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de; BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. O dano existencial e o direito do trabalho. Rev. TST, Brasília, vol 79, nº 2, abr/jun. 2013. p. 243.

8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15. dez.. 2023.

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segurança e à propriedade.”9 Assim nos dizeres de Alvarenga e Boucinhas Filho, “[...] lutar em igualdade de condições, concretizar sonhos. É direito. Não é favor.”10

Com respeito aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, estes por óbvio resultam na acumulação de riquezas, e a exploração irracional da mão de obra sem a tutela do Estado para alcançar a justiça social, acentua as desigualdades sociais no contexto das relações sociais e jurídicas, de modo que todos estes valores são premissas da tessitura de uma mesma teia de proteção do trabalhador, para o que o direito do trabalho preocupou-se em estabelecer uma relação de emprego indissociável do princípio da proteção. Dessa forma os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e a justiça social, são verso e anverso no desenvolvimento da ordem econômica, como preceitua o artigo 170 da CF/88.

Quanto à boa-fé objetiva, esta é indissociável de qualquer relação contratual, devendo contemplar desde o contrato social onde “todos os homens vivam a liberdade e ao mesmo tempo abram mão de seus direitos em favor da liberdade coletiva e aceitem o pacto social,”11 até as relações bilaterais mais específicas como as de trabalho ou mesmo as de emprego.

Apesar de consagrado em norma infraconstitucional, este princípio repercute em quaisquer relações sociais, se configurando como cláusula geral de permanente observação, de conceito jurídico indeterminado, ao mesmo tempo em que deve ser observado segundo os casos mais específicos. Ele não 9 Idem.

10 ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de; BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. O dano existencial e o direito do trabalho. Rev. TST, Brasília, vol 79, nº 2, abr/jun. 2013. p. 260.

11 VILALBA, Hélio Garone. O contrato social de Jean-Jacques Rousseau: uma análise para além dos conceitos. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/heliovilalba.pdf. Acesso em 20 dez. 2023.

se qualifica pelo estado anímico do agente, de estar se comportando conforme o direito, mas por um padrão de conduta estabelecido de acordo com o tipo da relação formalizada entre as partes, criando deveres negativos, quanto positivos, “que exige que as partes tudo façam para que o contrato seja cumprido conforme previsto e para que ambas obtenham o proveito objetivado.”12 No contexto desse princípio se albergam a proibição do venire contra factum proprium, para impedir comportamentos contraditórios das partes, bem como da tu quoque para evitar a quebra da confiança, além “do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana.”13

Esse conjunto de premissas deve sempre concorrer para o alcance da dignidade da pessoa humana, que a CF/88 estabeleceu, no sentido de assegurar a vida digna onde seja propiciado o desenvolvimento integral dos indivíduos, indo além da busca da mais valia ou de se auferir lucro, mas de se viver bem, estabelecendo-se na atualidade, no ordenamento jurídico, a centralidade da dignidade humana, em contraposição à “hipertrofia do estudo da empresa e do Estado,”14 como fora próprio das relações jurídicas do século XIX.

Dignidade do latim significa honradez, virtude, [...] de sorte que para Immanuel Kant (1724 – 1804), “a dignidade é o valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, que não é passível de ser substituído por um equivalente,”15 como assim também são

12 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. V.

III. Contratos. Declaração unilateral de vontade. Responsabilidade civil. 12. ed. Rev. atual. de acordo com o CC 2002. Atualizador Regis Fichtner. Rio de Janeiro: Forense, 2005

13 Idem.

14 MORATO, Antônio Carlos. Quadro Geral dos Direitos da Personalidade. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo v. 106/107 p. 121 - 158 jan./dez. 2011/2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67941/70549. Acesso em 13 dez. 2023, p. 128.

15 Equipe da Enciclopédia Significados. O que significa dignidade. Criado e Revisado. Disponível em: https://www.

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os projetos de vida do obreiro, de sorte que estamos falando de valoração da vida acima dos bens materiais, e do ser acima do ter, razão porque é preciso garantir por meio da instrumentalização do direito do trabalho a reparação dos ataques ao bem-estar da pessoa do empregado.

3. A Função Instrumental da Reparação por Danos Extrapatrimoniais no Âmbito do Trabalho

As disposições legais da CLT, por meio da reforma trabalhista inovaram no ordenamento jurídico brasileiro e como já foi citado nesse artigo, amparadas pela doutrina e pela jurisprudência, têm estabelecido proteção ao dano material, englobando os danos emergentes e os lucros cessantes, na tutela do patrimônio do obreiro e também do empregador, bem como dispõem sobre a tutela contra os danos de natureza não patrimonial, na vanguarda da proteção aos danos moral, estético e existencial, tendo cada um seu bem jurídico tutelado em específico, sejam os direitos da personalidade, seja a saúde ou a integridade morfofisiológica do organismo, sejam os projetos de vida do empregado como sujeito ativo de sua historicidade.

Na atualidade, a jurisprudência sumulada dos tribunais, especialmente a do STJ, tem pacificado a cumulação desse conjunto harmônico de direitos, especialmente nos termos das Sumulas 37,16 que permite que permite acumular a indenização por dano material e moral, oriundos do mesmo fato. Já o verbete 38717 do mesmo Tribunal, permite cumular significados.com.br/dignidade/#:~:text=No%20direito%20can%C3%B4nico%2C%20dignidade%20%C3%A9,significa%20honradez%2C%20virtude%2C%20considera%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 23 dez. 2023.

16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Sumula 37 Disponível em: https://www.coad.com.br/busca/detalhe_16/844/ Sumulas_e_enunciados. Acesso em 26 dez. 2023.

17 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Sumula 387. Disponível em: https://www.coad.com.br/busca/detalhe_16/2290/

indenização por dano estético e moral. Outra instrumentalidade que tem contribuído para a efetivação do direito personalíssimo a imagem é o disposto na Súmula 403,18 também do STJ, que dispensa a prova do prejuízo para se requerer indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa, com fins econômicos ou comerciais.

Nesse mesmo sentido, o artigo 223-F da CLT, 19 expressamente garantiu a reparação por danos extrapatrimoniais, com a indenização por danos materiais, decorrentes do mesmo ato lesivo, de forma que assim sendo não se há de falar em proibição de indenização cumulativa de quaisquer espécies de danos causados às partes, devendo o juiz discriminar cada valor correspondente da indenização ao respectivo dano, conforme sua natureza.

Para complementar a ideia da instrumentalidade, já se discutiu alhures, sobre a intransmissibilidade dos direitos da personalidade e até mesmo o artigo 223B da CLT,20 trouxe redação que foi objeto das ADI’s aqui discutidas, em que fazia a seguinte referência: “causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.”21

Tal redação parecia cercear o direito de ação dos sucessores sobre eventuais danos causados a seus progenitores, na qualidade de sucessores destes, Sumulas_e_enunciados. Acesso em 26 dez. 2023.

18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Sumula 403. Disponível em: https://www.coad.com.br/busca/detalhe_16/2312/ Sumulas_e_enunciados. Acesso em 26 dez. 2023.

19 BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm. Acesso em: 23 dez. 2022.

20 Idem

21 Idem.

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pois o texto fazia referência a “titulares exclusivos,” todavia, a Súmula 392 do Tribunal Superior do Trabalho – TST, pela alteração que sofrera em 2015, por iniciativa do então presidente da Comissão de Jurisprudência daquela Corte, Ministro João Orestes Dalazen, acolmatou a lacuna que foi motivo de tantas ADI’s.

Nesse passo já não mais se discute a possibilidade de os herdeiros pleitearem o dano moral em ricochete por acidente sofrido, ainda que tenha havido morte do titular, como se depreende da notícia do TST acerca da alteração sumulada.

são parte do projeto da vida daquele que se foi, sofreram juntos, não perquirindo os herdeiros, o pretium doloris23 ou o preço da dor do de cujus, mas de si mesmos.

A nova redação da Súmula adequa o texto anterior ao entendimento atual do Tribunal Superior do Trabalho e também do Supremo Tribunal Federal sobre a competência da Justiça Trabalhista para julgar ações de indenização por dano moral e material motivadas por acidentes de trabalho. Com a alteração, a Súmula 392 do TST passa a garantir o julgamento das ações ainda que propostas por dependentes e herdeiros de trabalhador que tenha morrido vítima de acidente ou doença relacionada ao trabalho.22

Com esse entendimento, a despeito de ser o direito à honra e à imagem do pai falecido, um dos direitos intransmissíveis da personalidade, nem por isso ficam os herdeiros impedidos para sucederem o de cujus no seu direito de ação, pois a honra e a imagem de quem falece não é coisa de ninguém, e ao ser atingido um membro da família, seus entes queridos

22 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho – TST. Súmula 392 do TST que trata de ações por dano moral e material de trabalho ganha nova redação. Notícia do TST, Seg 9 nov. 2015, 13:52:00. Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/sumula-392-do-tst-que-trata-de-acoes-por-dano-moral-e-material-de-trabalho-ganha-nova-redacao#:~:text=REP%C3%93RTER%3A%20A%20S%C3%BAmula%20392%20do,do%20 Tribunal%20Pleno%20do%20TST. Acesso em 26 dez. 2023.

Dessa forma o acidente experimentado que enseja indenização à vítima e outras compensações materiais ou econômicas, fazem parte da agenda do homem no seu projeto de vida, de na sua dignidade, não precificar todas as relações da vida, mas ressaltar o que é digno exatamente naquilo que não tem preço, não podendo ser deixado de lado, pois, faz parte do etéreo, das relações afetivas, do lugar reservado ao ser no seu projeto de existência, cujo ter, fica em um plano inferior, lhe servido apenas de suporte.

4. Análise do Conteúdo Constitucional Formulado no Julgamento da ADI 6.069

A ADI 6.069,24 cujo conteúdo é congênere ao das

ADI’s 6.05025 e 6.082,26 teve julgamento conjunto no Supremo Tribunal Federal – STF, por força de dispositivo regimental da Corte.

[...] estão na pauta quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) que questionam dispositivos da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) que fixam um teto para pagamento de indenizações decorrentes

23 MAPFRE. Enciclopédia. Dicionário MAPFRE de seguros Disponível em: https://www.fundacionmapfre.com.br/publicacoes/dicionario-mapfre-seguros/pretium-doloris/. Acesso em 28 dez 2023.

24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.069 Distrito Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em 13 dez. 2023. Inteiro teor do acórdão. P. 1-172.

25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.050 Distrito Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5612680. Acesso em 13 dez. 2023.Inteiro teor do acórdão. P. 1-171.

26 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.082 Distrito Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5640983. Acesso em 13 dez. 2023. Inteiro teor do acórdão. P. 1-167.

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de dano moral em relações de trabalho. Serão julgadas conjuntamente a ADI 6069 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, as ADIs 6050 e 5870  da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e a ADI 6082 da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria. Pela reforma, em caso de ofensa gravíssima à vida, à saúde ou à integridade física em uma relação empregatícia, o valor da indenização não poderá ultrapassar 50 vezes o valor do último salário contratual do trabalhador. Em todas as ações, as entidades argumentam que tal limitação ofende o princípio da isonomia pois o valor decorrente de um mesmo dano moral, mas causado a pessoas com cargos diferentes na empresa, terá valor diferenciado em razão do salário de cada empregado. Sobre o mesmo tema serão julgadas em conjunto as ADIs 6050, 6082 e 5870, todas de relatoria do ministro Gilmar Mendes.27

Note-se que a ADI 5.870, proposta pela Associação

Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, perdeu o objeto, pois tratava das alterações sobre o mesmo dispositivo da Reforma Trabalhista, proveniente da Medida Provisória – MP 808/17,28 que não foi apreciada pelo Congresso Nacional. A MP substituía o salário contratual do ofendido pelo limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência, o que para a ANAMATRA afastava a possibilidade de violação do princípio da isonomia e melhorava a situação dos trabalhadores de menor renda, sendo ainda assim, desfavorável aos critérios limitativos.

27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Confira os processos que estão na pauta da sessão dessa quinta-feira. Notícia do STF, 03/10/2019, 10:10:00. Disponível em: https://portal.stf.jus. br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=425328&ori=1. Acesso em 02 jan. 2024.

28 BRASIL. Medida Provisória, nº 808, de 14 de novembro de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2017/mpv/mpv808.htm. Acesso em: 15 dez. 2023.

Na exposição de motivos da referida MP, nota-se nos itens 8 e 9, que era intenção clara de seus idealizadores, corrigir e modernizar a legislação que depois foi fruto das ADI’s aqui analisadas, mas o STF ainda assim ratificou o texto do Legislativo, que Ele próprio intentou corrigir.29 De qualquer sorte na análise constitucional, as ADI’s foram julgadas parcialmente procedentes, conferindo no caso do artigo 223-A, que restringia o espectro normativo para apreciação dos danos extrapatrimoniais, interpretação conforme a Constituição. Já para o artigo 223-B que trazia aparente limitação ao dano extrapatrimonial em ricochete, o STF ratificou o que o Ministro Dalazen já prenunciara em 2015.

Sobre o artigo 223-G, caput e §1º, incisos I a IV, quanto às limitações da reparação ao quantum salarial do ofendido, afirmou o STF que o julgador deveria observar tal limitação como critério orientativo de decisão judicial, podendo atribuir indenização superior, o que seria constitucional, observando-se as circunstâncias do caso concreto em apreço. O argumento da Constitucionalidade pelo STF, firmou-se basicamente no fato de que “O Presidente da Câmara dos Deputados informa que o Projeto de Lei 6.787/2016, que deu origem à Lei 13.467/2017, foi processado dentro dos estritos trâmites constitucionais e regimentais inerentes à espécie,”30 e também no fato de que

[...] é imprescindível que o Supremo Tribunal Federal reconheça que, num Estado Constitucional, as Cortes Constitucionais devem atentar para a necessidade de autocon-

29 BRASIL. Exposição de Motivos da MP 808/17. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/ Exm/Exm-MP-808-17.pdf. Acesso em: 15 dez. 2023.

30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.069 Distrito Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5626228. Acesso em 13 dez. 2023. Inteiro teor do acórdão. P. 1-172. p. 9.

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tenção (self-restraint) na revisão e na interpretação dos atos legislativos, sob o risco de se investirem de um suprapoder, desnaturando o pacto constituinte fundado na harmonia e na independência entre os poderes. (ADI 6.082, eDOC 30, p. 8)31

Além disso, a Corte também se valeu também do argumento de que o balizamento nas indenizações mais concretiza que afronta o princípio da isonomia, pois serviria de norte para evitar decisões discrepantes sobre casos semelhantes. Sob tais argumentos, o STF, ainda afirmou que a norma questionada não limita nem restringe a atividade jurisdicional, tampouco a isonomia ou a segurança jurídica, mas que “evitar-se-á a prolação de decisões contraditórias a partir dos limites já expressos na lei.”32 Estes foram os principais argumentos da Corte julgadora, apesar dos diversos posicionamentos contrários nos argumentos dos impetrantes das ADI’s, já mencionados neste artigo.

O que se depreendeu do julgamento das ADI’s em apreço, foi que ainda prevalece como válido o tabelamento, muito embora se tenha dito que este deverá servir de critério meramente orientativo das decisões judiciais. O que atemoriza a segurança jurídica é que paira sobre a cabeça do obreiro a possibilidade de julgamentos que observem a literalidade da Lei e convertam o que poderia ser orientativo em limite rígido, qual espada de Dâmocles, quer pela sobrecarga de trabalho dos juízes de piso, quer porque ainda há aqueles que não romperam com a ideologia do Estado Liberal de juiz “boca da lei,” tampouco aderiram à ideologia do Estado Democrático de Direito de juiz “boca da Constituição.”33

31 Idem, p. 10.

32 Idem, p. 10.

33 BEZERRA LEITE. Carlos Henrique. Curso de Direito Processual do Trabalho. 15. ed. De acordo com o CPC/15. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 71.

Dessa forma, o que poderia ter sido um julgamento contramajoritário, foi uma ratificação da norma oriunda das Casas Legislativas Federais, com algumas ponderações que deveriam trazer segurança jurídica, mas, mais podem representar para o futuro, uma imensidão de recursos pela possibilidade de que mesmo se devendo dar à norma interpretação conforme a constituição, ela pode ainda assim, ter um viés limitativo no quantum das ações trabalhistas de indenização por danos extrapatrimoniais, ensejando o inconformismo da classe trabalhadora. Nessa questão fica claro que mesmo com a possibilidade de se levar em conta no julgamento do dano extrapatrimonial “as condições socioeconômicas dos envolvidos,”34 por outro lado isso pode representar uma discriminação do reclamante, em função do valor de seu salário, que é elemento indissociável de sua classe social,35 aspecto que já foi refutado desde a Constituição Federal de 1934.36 Em suma, o olhar para as indenizações por danos extrapatrimoniais, deve ser pautada sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, com base na interpretação das Leis, conforme a Constituição e não desta segundo aquelas, evitando-se assim a vedação ao

34 TARTUCE, Flávio. Questões controvertidas quando à reparação por danos morais. Aspectos doutrinários e visão jurisprudencial. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7586/ questoes-controvertidas-quanto-a-reparacao-por-danos-morais. Acesso em 12 dez. 2023.

35 TINEU, Rogério. Ensaio sobre a teoria das classes sociais em Marx, Weber e Bourdieu. Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.10, n.29, p. 89-107, jun.-set.2017.

36 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição Da República Dos Estados Unidos Do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Art 113, 1). Acesso em 02 dez. 2023.

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retrocesso e, no futuro, a produção de atos judiciais viciados por negativa de prestação jurisdicional.37

Considerações Finais

Após essa reflexão acerca do julgamento, em especial da ADI 6.069/DF, observou-se que na evolução da reparação do dano extrapatrimonial, cuja CLT inovou trazendo para nosso ordenamento jurídico na expressão manifesta acerca da espécie existencial, a CF/88 estabelece, de forma peculiar, no art. 5º, X que o exame do evento danoso deve ser o mais abrangente possível. Por óbvio também não resta dúvida a reclamação pela indenização por dano extrapatrimonial em qualquer de suas espécies, é uma garantia para instrumentalização da justiça, igualdade e dignidade. Especialmente, o dano existencial é objeto jurídico merecedor de tutela o projeto de vida do trabalhador, que engloba não só a vida deste individuadamente, mas a de todos os seus entes queridos, de modo que a eventual dor do obreiro é a dor de sua família.

Ficou claro que o viés constitucional de olhar para essa espécie de dano sob a ótica da dignidade da pessoa humana, mais que o pretium doloris estabelece ao projeto de vida do trabalhador um lugar jamais alcançado por ele na legislação, ou na doutrina, e o dignifica por ser este projeto de vida algo sem preço e por isso insubstituível, fazendo dele exatamente tão digno, como dignificada deve ser a vida do obreiro no Direito do Trabalho, de forma a poder sentar-se ao lado da dignidade no lugar reservado às coisas etéreas.

Contudo, o conjunto de argumentos levados à interpretação constitucional no caso da ADI 6.069, não foi adequada para superar os sentidos restritivos

37 MANUS, Pedro Paulo Teixeira; MONTEIRO, Carlos Augusto Marcondes de Oliveira. A má valoração da prova e o cabimento do recurso de revista por negativa de prestação jurisdicional. Rev. TST, São Paulo, vol. 87, no 2, abr/jun 2021.

implicados na concepção dos dispositivos oriundos da reforma trabalhista. Na dimensão cognitiva, permanece presente a possibilidade de o julgado apoiar-se na estratégia de tarifação expressa no artigo celetista, por conseguinte limitando o quantum indenizatório por danos morais, tendo em vista que não foi afastada em definitiva com a declaração de inconstitucionalidade. A gramática da proteção social do trabalho como instrumento de dignidade é secundarizada a partir desta solução do intérprete constitucional, recuperando o viés discriminatório contido no arcabouço colonial38

Referências

ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de; BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. O dano existencial e o direito do trabalho. Rev. TST, Brasília, vol 79, nº 2, abr/jun. 2013. p. 240-261.

ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 1998.

BEZERRA LEITE. Carlos Henrique. Curso de Direito Processual do Trabalho. 15. ed. De acordo com o CPC/15. São Paulo: Saraiva, 2017.

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tuição Politica do Imperio, offerecida e jurada por Sua Magestade o Imperador. Disponível em: https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em; 23 out. 2022.

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RECONFIGURANDO PARADIGMAS: POR UM NOVO

LÉXICO ANTIDISCRIMINATÓRIO NO CONTEXTO DA RESPONSABI LIDADE CIVIL

Palavras-chave Antidiscriminação. Responsabilidade. Civil. Honra. Imagem.

Luana Pereira da Costa

Advogada no Petri & Machado da Rosa Advocacia, Líder do Núcleo Antidiscriminatório. Professora universitária na Uniritter. Escritora e Palestrante. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestre em Sociologia, ambos pela UFRGS. Pesquisadora nas áreas de relações raciais e de gênero, direito e sociologia. Autora do livro “Vivências e Percursos de Mulheres em Situação de Violência: Um Olhar Interseccional”, publicado pela Editora Letramento, Selo Casa do Direito. Autora do livro “Compliance Antidiscriminatório: Lições práticas para um novo mundo corporativo” publicado pela Editora Thomson Reuters. Certified Expert in Compliance pela ESENI/ARC.

Fabiano Machado da Rosa

Advogado especializado em Compliance e Gestão de Crises Corporativas. Sócio Fundador da PMR Advocacia, maior escritório de direito empresarial fundado e liderado por advogados negros. Autor dos livros “Compliance Antidiscriminatório: Lições práticas para um novo mundo corporativo” e “Gestão de Crises e Diversidade: 21 Estratégias para Prevenção e Transformação de Crises Discriminatórias”, ambos publicados pela Editora Thomson Reuters. Professor universitário, escritor, palestrante e conselheiro de administração. Hoje dedica sua atuação à agenda ESG no mundo corporativo.

11

Iniciamos esse artigo com uma breve justificativa pela escolha da primeira pessoa do plural como voz a partir da qual quem está nos lendo será conduzido ou conduzida. Menos usual em textos acadêmicos de direito - ainda que comum no campo das ciências sociais, a primeira pessoa localiza quem escreve e essa é a nossa intenção ao adotá-la.

Ao sermos instados a escrever um artigo sobre responsabilidade civil, de pronto nos surgiu a necessidade de trazer provocações no que tange às suas intersecções com os temas da antidiscriminação. Em nossa prática como advogados, conduzimos casos envolvendo situações de discriminação em que os parâmetros tradicionais de avaliação de responsabilização demonstram-se insuficientes, ao não consideram ou subestimarem aspectos sociais e históricos que vulnerabilizam determinados grupos de indivíduos.

Mais especificamente, falamos de casos em que são verificados danos à honra e à imagem de pessoas por motivos discriminatórios e que impõem desafios adicionais a nós, advogados e advogadas, na construção de narrativas e teses jurídicas que sejam capazes de expor as peculiaridades de tais situações às pessoas julgadoras e convencê-las da necessidade da adoção de um olhar antidiscriminatório na aplicação do direito aos casos concretos.

Assim, o presente artigo é conduzido do ponto de vista de dois advogados negros, um homem e uma mulher, que identificam falhas do discurso jurídico, no que diz respeito à análise de responsabilização civil por danos à honra e à imagem em casos que envolvam situações de discriminação, em especial no que tange as intersecções entre gênero e raça.

Em louvável e recente esforço, a Ordem dos Advogados do Brasil realizou o primeiro censo demográfico das pessoas advogadas1, que evidenciou interessantes achados. Dentre os profissionais da advocacia, 49% são mulheres e 1% declararam outras identidades de gênero. No entanto, a média de idade das mulheres é mais baixa em comparação aos homens, o que pode sugerir uma entrada mais recente do público feminino na profissão. Ainda segundo o censo, 64% dos profissionais se declaram brancos, o que demonstra uma sub-representação da população negra na advocacia. Os dados encontrados estão alinhados com o contexto histórico e social brasileiro, em que a entrada de mulheres e pessoas negras no ensino superior e em determinadas profissões ainda é uma tendência recente.

É também nesse sentido que a primeira pessoa do plural importa. Apesar dos esforços na democratização do acesso ao ensino superior e às carreiras jurídicas, pessoas negras são minoria e mulheres ainda vêm construindo estratégias de rompimento dos “tetos de vidro” que as impedem de alcançar cargos de liderança2. Portanto, nosso ponto de vista, como autores desse artigo, pode oferecer uma visão diversa em comparação às tradicionais óticas sob as quais o direito é analisado.

Patrícia Hill Collins, socióloga negra estadunidense, cunhou o termo “outsider within” como forma de

1 JORNAL NACIONAL. OAB divulga Censo com retrato dos advogados brasileiros: a profissão está cada vez mais feminina - exatamente metade dos profissionais é formada por mulheres; 64% dos advogados se declaram brancos, com uma concentração maior entre os mais velhos. G1: Globo. [S.I]. 1 dez. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/12/01/oab-divulga-censo-com-retrato-dos-advogados-brasileiros.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2023.

2 BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. Violência Institucional nas Sociedades de Advogados:: os óbices à ascensão das mulheres

In: SCHINKE, Vanessa Dorneles (org.). A Violência de Gênero nos Espaços do Direito: narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 213-225.

145 1.
Introdução

apontar a relevância do pensamento de mulheres negras para os paradigmas tradicionais sociológicos, fazendo eco a outros pesquisadores que também já apostavam na intelectualidade desde as margens dos centros acadêmicos para a construção de um pensamento sociológico efetivamente criativo. Para a autora, “trazer esse grupo - assim como outros que compartilham um status de outsider within ante a sociologia - para o centro da análise pode revelar aspectos da realidade obscurecidos por abordagens mais ortodoxas”3.

Também no ambiente corporativo, onde desenvolvemos nosso trabalho como advogados, o valor da diversidade vem sendo reconhecido. A presença de indivíduos pertencentes a grupos minorizados vem sendo relacionada a maior inovação, criatividade e performance das empresas que adotam programas de diversidade, inclusão e equidade4

Nesse contexto, acreditamos que também o direito pode ser beneficiado pelo olhar dos outsiders within, mais especificamente das mulheres e das pessoas negras que têm cada vez mais ocupado espaços de intelectualidade jurídica e que podem aportar contribuições relevantes e criativas para problemas não solucionáveis a partir de paradigmas tradicionais.

Nesse sentido, o presente artigo será conduzido a partir do olhar da antidiscriminação, com ênfase nas interseccionalidades entre gênero e raça. Nosso trabalho não tem se resumido a esses dois marcadores sociais e reconhecemos que a antidiscriminação engloba outros marcadores de diferenciação como

3 COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, 2016, p.101.

4 Ver, por exemplo, as pesquisas desenvolvidas pela consultoria McKinsey & Company, em especial “Diversity Matters Even More”, publicada em 2023 e disponível em <https://www.mckinsey.com/featured-insights/diversity-and-inclusion/diversity-matters-even-more-the-case-for-holistic-impact#/>, acessada em 14.12.2023.

idade, condição de pessoa com deficiência, peso corporal, religião, origem, dentre outros. No entanto, para fins de delimitação do tema deste texto, optamos por dar maior atenção aos eixos de gênero e raça.

Em um primeiro momento, iremos abordar alguns conceitos que julgamos necessários para a construção de um novo léxico jurídico que dê conta dos problemas relacionados à discriminação, em especial no que diz respeito a danos morais relacionados. Após, faremos um breve relatório das fontes de direito que podem subsidiar o debate sobre responsabilidade civil desde um ponto de vista antidiscriminatório. Ao fim, aduziremos nossas considerações finais, com insights importantes para a comunidade jurídica.

2. Responsabilidade Civil e um Novo Léxico Antidiscriminatório

Quando falamos de qualquer área do direito, sabemos da importância dos conceitos jurídicos para a análise dos casos concretos. Ao refletirmos sobre responsabilidade civil, por exemplo, devemos dominar os conteúdos dos conceitos de dano, nexo, ato ilícito, culpa e dolo, apenas para “começo de conversa”.

Na mesma senda, observamos que, no que diz respeito ao direito antidiscriminatório, ainda há uma relevante ausência do seu léxico nos debates jurídicos. Discriminação, preconceito, racismo recreativo, interseccionalidade são apenas alguns dos exemplos de conceitos que vêm sendo amplamente debatidos por intelectuais e acadêmicos de direito. Portanto, pretendemos aqui apresentar algumas das concepções que julgamos essenciais para uma análise antidiscriminatória de casos que envolvam

146

o reconhecimento de danos morais decorrentes de situações de discriminação.

De maneira inicial, defendemos que os aspectos sociais e históricos que compõem as situações de discriminação devem ser levados em consideração na análise de casos concretos. Isso porque, quando se fala de atos discriminatórios, é necessário que alteremos a ótica pela qual os fatos são analisados e o direito é aplicado. Não se trata de danos ordinários à honra objetiva e subjetiva. Trata-se de danos que reverberam feridas históricas e reforçam estereótipos estruturais. Estes, por sua vez, implicam consequências e desigualdades sociais concretas.

Nesse sentido, é essencial a adoção do paradigma do Direito da Antidiscriminação que, conforme Roger Raupp Rios,

acrescenta elementos, princípios, institutos e perspectivas para a compreensão do conteúdo jurídico do princípio da igualdade e de suas consequências. De fato, o direito da antidiscriminação, visualizado como campo específico da reflexão e da prática jurídicas, volta sua atenção, desde o início, para o fenômeno da discriminação, suas modalidades, seus principais desafios e questões5.

A insuficiência dos paradigmas tradicionais para a análise de casos de discriminação é apontada por Adilson Moreira, na robusta e inovadora obra “Tratado de Direito Anditiscriminatório”, em que afirma:

Nossos tribunais têm reconhecido que uma concepção da discriminação vista apenas como vedação de arbitrariedade não é suficiente para identificar o caráter estrutural dos processos de exclusão aos quais membros de certos grupos estão expostos. Isso significa que a compreensão comum da

5 RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 13.

discriminação apenas como uma forma de tratamento que não pode ser juridicamente justificado parece ser altamente problemática6

No campo do direito da antidiscriminação, há certo consenso entre seus principais autores acerca das diferenciações entre preconceito e discriminação. Enquanto aquele diz respeito a “percepções mentais negativas em face de indivíduos e de grupos socialmente inferiorizados, bem como as representações sociais conectadas a tais percepções”7, este “designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos”8

A discriminação negativa, por sua vez, possui suas subclassificações. Na perspectiva do senso comum, é esperado que episódios de discriminação sejam explícitos e intencionais, sem o que, muitas vezes, a interpretação tradicional do direito nega sua aplicação. No entanto, a discriminação explicitamente intencional é apenas uma das possibilidades de tratamento diferenciado negativo, conforme aprendemos com os conceitos de discriminação direta e indireta.

Do ponto de vista do direito norte americano, conforme nos ensina Roger Raupp Rios9, a discriminação direta (disparate treatment) diz respeito ao tratamento diferenciado negativo motivado pelo preconceito

6 MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 39.

7 RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 15.

8 RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 15.

9 RIOS, Roger Raupp. Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

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em que há a intenção de discriminar. Essa intenção pode ser explícita no texto da medida ou lei (discriminação explícita ou facial discrimination); estar presente na aplicação da medida ou lei, independente da intenção do instituidor da medida (discriminação na aplicação ou discriminatory application); ou, ainda, ser adotada na concepção e na elaboração do texto ou medida que, adotando critérios aparentemente neutros, obscurece sua verdadeira intenção de discriminar (discriminação na concepção ou discrimination by design).

De outro lado, a discriminação indireta (disparate impact) ou discriminação de fato não exige a comprovação da motivação ou intenção discriminatória. Ela pode ocorre quando mesmo um texto ou medida que adote critérios neutros impacte de forma desproporcional determinados grupos sociais ou indivíduos, de forma a representar, na prática, tratamento diferenciado negativo e injusto.

Essa primeira introdução de conceitos básicos do direito da antidiscriminação já nos demonstra a complexidade do tema e a necessidade do seu aprofundamento no debate jurídico, em especial no que diz respeito à responsabilidade civil. Conceitos jurídicos tradicionais como nexo causal, dolo e culpa podem ser confrontados pelas contribuições do direito antidiscriminatório, na medida em que textos, medidas ou atos discriminatórios nem sempre irão apresentar, explicitamente, suas intenções ou motivações discriminatórias.

Seguindo nossa exposição, outras concepções também são relevantes para a melhor compreensão de casos de discriminação, como o conceito de interseccionalidade. Cunhado pela pesquisadora e advogada estadunidense, Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade propõe que o racismo e o sexismo não podem ser tratados como fenômenos isolados,

senão como estruturas que conformam o exercício de poder de maneira racializada, generificada e hierarquizada. Para a autora, as manifestações e os exercícios de poder possuem duas dimensões: uma que opera ao categorizar grupos em suas diferenças - como pessoas negras e mulheres - e outra que, em um segundo momento, causa consequências sociais e materiais a esses grupos vinculadas a essas categorizações10

No mesmo sentido, Roger Raupp Rios e Rodrigo da Silva11, por sua vez, aduzem sobre o conceito de discriminação múltipla ou interseccional, que envolve a interação entre dois critérios proibidos de discriminação, como gênero e cor, sem que seja possível decompor os seus efeitos.

A discriminação interseccional ocorre quando dois ou mais critérios proibidos interagem, sem que haja possibilidade de decomposição deles. (...) Assim, a discriminação interseccional implica uma análise contextualizada, dinâmica e estrutural, a partir de mais de um critério proibido de discriminação.

O ordenamento jurídico brasileiro elencou desde sua Constituição Federal os critérios proibidos de discriminação, dentre os quais o gênero/sexo e raça/cor. Quando uma prática racista e sexista é perpetrada, essa estrutura discriminatória repudiada pelo ordenamento é reforçada. Assim, uma atitude discriminatória reverbera de maneira muito grave no âmago de pessoas negras e de mulheres, por exemplo. De um lado porque se conecta com um passado his -

10 CRENSHAW, Kimberle Williams. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color, Stanford Law Review, v. 43, n. 6, p. 1.241-1.299, 1991, p. 1297.

11 RIOS, Roger Raupp; SILVA, Rodrigo da. Democracia e direito da antidiscriminação:: interseccionalidade e discriminação múltipla no direito brasileiro. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 69, n. 1, p. 44-49, Jan-Mar 2017. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/ pdf/cic/v69n1/v69n1a16.pdf. Acesso em: 14 dez. 2023, p.45.

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tórico brasileiro vergonhoso de escravização e que faz reviver feridas muito profundas no processo de construção de identidade e de reconhecimento de humanidade do povo negro. De outro, porque reforça estereótipos desumanizantes que, em níveis estruturais, colocam as mulheres negras em posições desiguais na escala social, como evidenciam os fartos dados estatísticos brasileiros.

As contribuições das reflexões sobre discriminações múltiplas ou interseccionais podem confrontar conceitos tradicionais sobre o que é honra objetiva e subjetiva, cuja violação enseja responsabilização civil. Quando tratamos de atos discriminatórios e da busca por reparação em razão de danos morais, frequentemente observamos a utilização de estereótipos negativos de determinados grupos sociais como forma de ofensa à honra de indivíduos a eles pertencentes. Nestes casos, a aplicação do direito deve levar em consideração as reverberações sociais e psíquicas da utilização de elementos discriminatórios que, em sua essência, são desumanizantes e que, portanto, se revestem de maior gravidade em comparação a casos ordinários.

Mulheres negras, por exemplo, vêm sendo frequentemente vinculadas a estereótipos negativos que, na literatura acadêmica das ciências sociais, são denominados de “imagens de controle”, conceito cunhado por Patrícia Hill Collins, socióloga estadunidense. Conforme tradução do conceito traçada por Winnie Bueno, pesquisadora brasileira12:

As imagens de controle são a justificativa ideológica que sustenta a continuidade dos sistemas de dominação racistas e sexistas

12 BUENO, Winnie de Campos. PROCESSOS DE RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADES NO PENSAMENTO

FEMINISTA NEGRO:: uma possibilidade de leitura da obra black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment (2009) a partir do conceito de imagens de controle. 2019. 169 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Unisinos, São Leopoldo, 2019, p.73.

que buscam manter as mulheres negras em situação de injustiça social. São uma forma potente de atacar a assertividade e a resistência das mulheres negras à sua objetificação enquanto o outro da sociedade. Ao retratar as mulheres negras através de estereótipos que as desumanizam, os grupos dominantes estabelecem uma miríade de justificativas que buscam perpetuar as inequidades sociais e violências que eles impõem às mulheres negras em todo o globo. As imagens de controle fazem parte de uma ideologia generalizada de dominação, que opera a partir de uma lógica autoritária de poder, que nomeia, caracteriza e manipula significados sobre as vidas de mulheres negras que são dissonantes daquilo que elas enunciam sobre si mesmas.

Os estereótipos negativos baseados em critérios discriminatórios frequentemente são adotados em contexto de descontração, em “piadas” ou “brincadeiras” pejorativas. Não raro o direito também nega sua aplicação para proteção da honra em casos tais, sob a justificativa de que ofensas apresentadas na forma de “humor” não possuem o condão de afetar a honra das pessoas atacadas, pela ausência do animus de ofender.

Nesse contexto, importa salientar também o conceito de racismo recreativo, cunhado por Adilson Moreira13, que nos provoca a entendê-lo como “um projeto de dominação que procura promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento da hostilidade racial”14. No decorrer da obra, mobilizando teorias da igualdade e dos limites da liberdade de expressão, o autor aduz a dificuldade dos tribunais brasileiros em reconhecer a viola-

13 MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019. (Feminismos Plurais). Selo Sueli Carneiro.

14 MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019. (Feminismos Plurais). Selo Sueli Carneiro, p.148.

149

ção à honra de pessoas afetadas por ofensas discriminatórias encobertas pelo humor, sob a justificativa de ausência de animus injuriandi

Nesse sentido, não há duvidas que o direito da antidiscriminação apresenta um largo arcabouço teórico capaz de contribuir ativamente para reflexões no campo da responsabilidade civil, de forma a revisitar princípios como a igualdade, a não discriminação e a reparação integral, bem como conceitos como dano, nexo causal, dolo, culpa, imagem e honra.

3. Evidências da Relevância da Antidiscriminação no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Quando falamos de responsabilização civil em razão de danos contra a honra e a imagem, observamos que a própria Constituição Federal aponta os limites da liberdade de manifestação, em seu art. 5º, inciso X, ao aduzir que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

No que diz respeito à proteção de grupos historicamente vulnerabilizados, cumpre salientar que já em 1951 o ordenamento jurídico brasileiro estabelecia sanções àqueles que, por motivo de discriminação de raça e cor, negassem a pessoas negras o exercício de direitos. A Lei Afonso Arinos (Lei 1.390/51) constituiu como contravenção penal a recusa de estabelecimento comercial ou de ensino a cliente, comprador ou aluno em razão da cor, bem como fixou multas correlatas.

Em um movimento de evolução e progressismo, como resultado da mobilização e da luta do movimento negro, a Constituição Federal, em 1988, incluiu o racismo entre as proibições de discriminação,

ao elencar os objetivos da nação, bem como o tornou crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII).

No ano seguinte, sobreveio a Lei Caó (Lei 7.716/89), a qual preencheu de conteúdo o tipo penal do racismo, definindo os crimes resultantes do preconceito de raça ou cor.

Em 1997, foi promulgada a Lei n. 9.459/1997, que alterou alguns crimes previstos na Lei Caó, bem como tipificou a qualificadora de discriminação racial para o crime de injúria.

No que diz respeito ao aspecto criminal, a aplicação dos crimes de racismo e injúria racial tem se demonstrado extremamente limitada. Segundo levantamento da Gaúcha ZH, no RS, entre 2005 a 2018, somente 6,8% dos casos de racismo e injúria racial resultaram em condenação15

Segundo análise feita pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso Simone Diniz, em que restou reconhecida a omissão estatal brasileira quanto à aplicabilidade da legislação antirracista, entre as principais dificuldades na sua implementação estão a exigência por parte dos tribunais de se comprovar a existência de ódio racial ou a intenção de discriminar. Muitas vezes, casos explícitos de racismo são relegados ao status de “piada” ou exige-se a comprovação de uma intenção consciente de ofender, que, como se sabe, nem sempre é explícita. No que tange à responsabilização civil em casos de ofensas discriminatórias, são enfrentados problemas similares, conforme já amplamente debatemos neste artigo.

15 TEIXEIRA, Bruno; ROSA, Vitor. RS condenou 6,8% dos réus por racismo e injúria racial: de 2005 a 2018, 349 réus foram considerados culpados em um total de 5.104 processos. Gaucha Zh. Porto Alegre. 26 abr. 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2019/04/rs-condenou-68-dos-reus-por-racismo-e-injuria-racial-cjux6puqg014k01p7j0sqz4pt. html. Acesso em: 14 dez. 2023.

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Em 2021, o Supremo Tribunal Federal equiparou a injúria racial ao crime de racismo, no bojo do HC 154.248 de Relatoria do Ministro Edson Fachin. Em janeiro de 2023, a Lei 14.532/2023 foi promulgada para alterar a Lei Caó, incluindo a injúria racial entre os crimes de racismo ali previstos. Ainda, trouxe algumas inovações, como o aumento de pena caso o racismo seja praticado em contexto de descontração, diversão ou recreação (art. 20-A) e a necessidade da adoção de uma perspectiva antidiscriminatória, ao dispor que

Art. 20-C: Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou expoição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

Da mesma forma, a proibição da discriminação por sexo/gênero vem elencada na Constituição Federal e constitui objetivo primordial da nação. Diversas leis buscam concretizar esse objetivo, o que denota o reconhecimento jurídico da relevância dos impactos desproporcionais de gênero sobre as mulheres.

A título exemplificativo, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) refere a violência moral e psicológica entre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo aquela compreendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria e esta, inclusive tipificada enquanto crime, como qualquer conduta que cause dano emocional à mulher, inclusive por meio de ridicularização, humilhação ou constrangimento.

Da mesma forma, a tipificação do crime de perseguição (stalking), incluído no Código Penal pela Lei nº 14.132/2021 e que consubstancia violação à liberdade e à privacidade de suas vítimas, considera

como causa de aumento de pena o seu cometimento em condições que envolvam discriminação ou menosprezo à condição de mulher – nos mesmos termos da qualificadora do feminicídio.

Mais recentemente, outras leis também consideraram os impactos desproporcionais das estruturas de gênero sobre as mulheres, como a Lei do Emprega + Mulheres (14.457/2022), Lei da Igualdade Salarial (Lei 14.611/2023) e o Protocolo “Não é Não” (Lei 14.786/2023).

Em um esforço para a adoção de um olhar de gênero em casos judiciais, o Conselho Nacional de Justiça, em 2021, publicou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero16, em que são oferecidas diversas ferramentas para a interpretação do direito e sua aplicação nos casos concretos para magistrados e magistradas, dando relevo a desigualdades sociais históricas e suas implicações quanto a temas jurídicos como ônus da prova, honra e discriminações.

Ainda, de forma mais ampla no que diz respeito às múltiplas formas de discriminação no ambiente de trabalho, a Constituição Federal e a Consolidação das Leis do Trabalho vedam a utilização de qualquer critério discriminatório para fins de admissão ou permanência no emprego, bem como a concessão de benefícios e promoções ou estabelecimento de salário. No mesmo sentido, a Lei 9.029/95 proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória para efeito de acesso à relação de emprego ou sua manutenção, seja por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil ou idade. Também criminaliza a exigência de atestado de gravidez ou de esterilização, ou

16 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. . Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. [S.I]: Enfam, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf. Acesso em: 14 dez. 2023.

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qualquer forma de controle de natalidade pelo empregador/a.

Todo o exposto demonstra uma tendência do ordenamento jurídico brasileiro em reconhecer as peculiaridades de determinados grupos sociais, vulnerabilizados e diferenciados negativamente, buscando oferecer ferramentas de proteção que lhe sejam adequadas, em especial no que diz respeito aos eixos de gênero e raça/cor. Nossa breve exposição não esgota toda a legislação antidiscriminatória existente no contexto brasileiro, senão busca demonstrar que o tema da antidiscriminação não está à parte do debate jurídico. Pelo contrário, deve estar no centro de todas as discussões, como forma de efetivar princípios fundamentais à nação, como os da não discriminação, da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

4. Considerações Finais

No presente artigo, buscamos adotar uma abordagem tripla, em que fossem oferecidas (i) provocações à comunidade jurídica sobre a insuficiência de paradigmas tradicionais para a avaliação de responsabilização civil em casos de discriminação; (ii) contribuições teóricas para a construção de um léxico antidiscriminatório no campo da responsabilidade civil; e (iii) evidências da relevância da antidiscriminação no ordenamento jurídico brasileiro.

Sem a pretensão de esgotar o tema, que merece maior aprofundamento, buscamos oferecer insights para a comunidade jurídica quanto às intersecções entre antidiscriminação e responsabilidade civil. Defendemos que tratar dos impactos negativos desproporcionais a que grupos minorizados estão submetidos em diversos aspectos da dignidade humana, incluídas nela a honra e a imagem, é tarefa imperativa dos profissionais do campo jurídico para

uma aplicação do direito aos casos concretos que efetive o objetivo da não discriminação, elencado pela Constituição Federal. Para tanto, é necessário que o Direito Antidiscriminatório seja cada vez mais debatido no meio jurídico, de forma interdisciplinar e transversal a todos os ramos do direito, como forma de efetiva promoção da igualdade.

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TEIXEIRA, Bruno; ROSA, Vitor. RS condenou 6,8% dos réus por racismo e injúria racial: de 2005 a 2018, 349 réus foram considerados culpados em um total de 5.104 processos. Gaucha Zh. Porto Alegre, p. 2-3. 26 abr. 2019. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs. com.br/seguranca/noticia/2019/04/rs-condenou-68-dos-reus-por-racismo-e-injuria-racial-cjux6puqg014k01p7j0sqz4pt.html. Acesso em: 14 dez. 2023.

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RESPONSABILIDADE CIVIL NA CONSULTORIA E PARECERES

JURÍDICOS

Palavras-chave

Responsabilidade civil. Advogado. Parecer jurídico. Inviolabilidade Profissional

Rogéria Fagundes Dotti

Doutora e mestre pela Universidade Federal do Paraná. Secretária-Geral do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Presidente da Comissão de Processo Civil da OABPR. Membro do Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal. Membro da International Association of Procedural Law. Advogada.

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1. Introdução

O exercício da advocacia, de forma livre e independente, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Para tanto, contudo, é necessário assegurar a imunidade pelas opiniões e atos que venham a ser praticados.

Por outro lado, essa imunidade profissional não pode ser absoluta. Isto é, possui limites estabelecidos pela própria lei. Dessa forma, caso os advogados atuem de forma abusiva, poderão vir a ser responsabilizados.

Dentro desse contexto amplo de atuação profissional, o presente artigo procura analisar o risco de responsabilização dos advogados que praticam atividades meramente consultivas, por meio da elaboração de pareceres ou opiniões legais. Nesses casos, cabe perguntar: quais são os limites para a eventual responsabilização?

O presente artigo procura responder a essa questão, partindo do pressuposto de que a mera interpretação da lei jamais pode constituir base para a punição do intérprete.

2. A conquista do Respeito e do Prestígio Para a Advocacia

A advocacia é um dos setores da sociedade civil que mais contribui para o fortalecimento democrático do país. Os advogados são profissionais engajados na defesa dos direitos e da liberdade. De igual forma, a Ordem dos Advogados do Brasil tem uma história importante de luta na defesa da cidadania e da democracia. Isso naturalmente gera respeito e prestígio para toda a classe.

Diante da natureza de sua atividade, o advogado deve ter em mente que exerce um verdadeiro múnus público1, contribuindo para a realização da justiça.

1 Como reconhece o art. 2º, § 2º da Lei 8.906/94.

Conforme prevê o art. 31 do Estatuto, o advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia. Para tanto, é imprescindível a independência na atuação profissional2, sem a submissão a eventuais imposições de autoridades públicas, nem tampouco à pressão popular3

Segundo Piero Calamandrei, “para o advogado que defende a causa alheia, o que está em jogo não é o valor econômico do pleito (coisa que diz respeito ao cliente), mas a missão de honra pela qual se sente pessoalmente vinculado a quem teve tanta confiança nele que o encarregou da tutela do seu direito”4

De fato, o que permite ao advogado atuar em determinado litígio é a escolha do cliente, ou seja, a confiança que lhe foi atribuída por um terceiro. É isso que deve ser considerado. Ao receber o mandato, o advogado foi honrado com a confiança de alguém que, por não poder se defender diretamente, elege-o e tem fé em seu trabalho. Daí a responsabilidade inerente ao exercício da advocacia.

Honra e responsabilidade são, na advocacia, os dois lados de uma mesma moeda. Na medida em que o advogado é honrado com a confiança depositada pelo cliente, assume também a responsabilidade pela boa condução do caso.

Eduardo Juan Couture, um dos mais notáveis juristas uruguaios, reuniu alguns conselhos para a advocacia. Chamou esse texto de “Os Mandamentos do Advogado”. São 10 sugestões para que o profissional possa bem conduzir sua carreira. Dentre eles,

2 Art. 31. § 1º. O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância.

3 Art. 31. § 2º. Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão.

4 Calamandrei, Piero. Elogio dei giudici scritto da um avvocato Tradução de Ary dos Santos, 7ª edição, Lisboa: Livraria Clássica Editora, p. 129, grifos nossos.

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destaca-se o 5º, justamente por tratar da lealdade processual: “Sê Leal. Leal para com o teu cliente, a quem não deves abandonar até que compreendas que é indigno de ti.  Leal para com o adversário, ainda que ele seja desleal contigo.  Leal para com o juiz, que ignora os fatos e deve confiar no que tu lhe dizes”5

A lealdade processual é uma das qualidades que distingue os bons profissionais. Para quem trabalha com a palavra, ter credibilidade é fundamental. E ela só é conquistada com lealdade no processo. Um advogado que é desleal com o adversário ou com o juiz está fadado ao fracasso. Não terá uma boa reputação e isso afetará toda e qualquer demanda futura. Por outro lado, a conduta leal e ética poderá abrir caminhos e auxiliar a construir um nome de respeito e consideração.

A ética profissional, nas palavras de Paulo Lôbo, “não parte de valores absolutos ou atemporais, mas consagra aqueles que são extraídos do senso comum profissional, como modelares para a reta conduta do advogado”6. Trata-se de um conjunto de “lugares-comuns que se captam nas condutas qualificadas como adequadas ou exemplares, não se confundindo com juízos subjetivos de valor”7

Na medida em que tais condutas passam a ser previstas expressamente na lei, tornam-se obrigatórias para toda a classe da advocacia. Os advogados devem, então, estar sempre atentos ao Código de Ética e Disciplina, editado pelo Conselho Federal da OAB em 1995 e revisto em 2015. Ele traz as principais diretrizes e normas para a atuação profissional.

A Constituição Federal assegura a todos o direito de defesa, destacando ainda a importância do exercício da advocacia para a prestação jurisdicional. Conforme prevê o art. 133, o advogado é indispensável à administração da justiça. Por sua vez, o Estatuto da Advocacia e da OAB reconhece a advocacia como indispensável, destacando ainda que, em seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social. É o que vem exposto no art. 2º e parágrafos da Lei 8.906/94. Daí porque se diz que a advocacia constitui um munus público, isto é, um encargo público. Embora o advogado não seja agente estatal, ele é um dos elementos para a aplicação da Justiça.

O autoritarismo e o abuso de poder – que podem ocorrer no dia a dia profissional – devem ser combatidos com bom senso e com manifestações dentro da legalidade, mediante o uso do direito de petição (CF, art. 5º, XXXIV, a). A petição é importante porque através dela o advogado poderá reverter o quadro de intolerância, sem entrar em um conflito pessoal com qualquer autoridade.

O respeito advém da conduta do próprio profissional e da forma como ele se relaciona com seus clientes, com as autoridades e com os demais colegas. Fazer-se respeitar como advogado é fundamental. Utilizando os fundamentos legais, sempre haverá um caminho para a resistência contra o abuso de autoridade.

Por outro lado, o advogado não deve ter receio em assumir demanda que possa lhe gerar impopularidade. Isto porque todos têm o direito à defesa, independentemente do crime que tenha sido praticado.

5 COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1979, p. 25.

6 LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 15 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 442.

7 LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 15 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 443.

Lamentavelmente, nas situações que causam repulsa ou revolta popular, é bastante comum que o advogado seja confundido com a pessoa de seu cliente ou com o crime praticado por este. Pode en-

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tão vir a sofrer ataques pela opinião pública. Quem, com grande serenidade, afastou essa inquietação foi um dos grandes advogados de nosso país: Ruy Barbosa. Ele, que também chegou a ter dúvidas antes de aceitar determinado caso, trouxe uma importantíssima lição na carta que enviou ao colega Evaristo de Moraes, consultado para defender o médico Mendes Tavares, acusado de um crime passional. Disse, então, o seguinte: “Ora, quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais, a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais. Se a enormidade da infração reveste caracteres tais, que o sentimento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela em violenta revolta, nem por isso essa voz deve emudecer. Voz do Direito no meio da paixão pública, tão suscetível de se demasiar, às vezes pela própria exaltação de sua nobreza, tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel”.8

Justamente por ser a “voz dos direitos legais do acusado”, o advogado deve sempre considerar um dos grandes ensinamentos de Ruy Barbosa. Segundo ele, “quanto maior a enormidade do crime, maior a precaução no julgar”9

Destaque-se, nesse sentido, que o art. 31 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB) estabelece o dever de o advogado não recuar diante de

8 BARBOSA. Ruy. O dever do advogado – Carta a Evaristo de Moraes, prefácio de Evaristo de Morais Filho, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Aide Editora, 1985, p. 45. 9 MATOS, Miguel. Migalhas de Rui Barbosa. Vol. I. 1ª ed. São Paulo: Migalhas, 2010, 224.

pressões populares ou de autoridades. Inúmeras vezes a advocacia nos conduz a caminhos de impopularidade – quer pela ignorância das massas populares, quer pelo desejo de vingança que cresce na população diante de crimes violentos, quer diante de pressão das autoridades.

A propósito, ensina-se que “a opinião pública nem sempre está do lado da verdade; comumente deixa-se levar por impulsos irrefletidos e pelas comoções do momento ou pela manipulação das informações. A impopularidade pode ser o preço a pagar pelo advogado na defesa do cliente, quando está convencido que é merecedor de justiça”10

O bom advogado sabe que seu trabalho é essencial. Esse advogado atua com coragem e ética, mesmo diante de situações difíceis. E é justamente esse destemor que fará dele um profissional digno de respeito e consideração.

3. A Inviolabilidade e a Responsabilidade Profissional do Advogado

O advogado possui a prerrogativa da inviolabilidade por seus atos e manifestações, nos limites da lei. É o que vem previsto no art. 2º, § 3º da Lei nº 8.906/94. Isso significa que o advogado não pode ser processado por suas palavras e por sua atuação profissional. Possui imunidade. Tal prerrogativa é fundamental para o livre exercício da profissão.

Mas, por outro lado, tal prerrogativa não pode ser exercida com abuso. Daí porque se fala “nos limites da lei”. Todo ato ou omissão ilícita, que vier a causar dano a outrem e que tenha sido praticado com dolo ou culpa, gera o dever de indenizar.

10 LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 15 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 456.

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O art. 32 da Lei nº 8.906/94 estabelece que o advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa. Já o parágrafo único do mesmo dispositivo prevê que nos casos de lide temerária, o advogado poderá ser solidariamente responsabilizado, desde que esteja coligado com seu cliente para lesar a parte contrária. Essa eventual responsabilidade deverá ser apurada mediante ação própria.

Isto significa que a responsabilidade civil do advogado, mesmo nos casos de lide temerária, não poderá ser apurada no próprio processo em que figura como parte seu constituinte. Trata-se da impossibilidade da extensão da aplicação das penas de litigância de má-fé. Estas, consoante disposto nos arts. 79 e 80 do Código de Processo Civil dirigem-se às partes litigantes, não podendos ser estendidas a seus procuradores.

O Superior Tribunal de Justiça possui vários precedentes no sentido do acima exposto11. Com efeito, entende a Corte que, “6. Em caso de litigância de má-fé (CPC, arts. 17 e 18)12, descabe a condenação solidária da parte faltosa e de seus procuradores. A conduta processual do patrono da parte é disciplinada pelos arts. 14 do CPC13 e 32 do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – EAOAB (Lei 8.906/94), de maneira que os danos processuais porventura causados pelo advogado, por dolo ou culpa grave, deverão ser aferidos em ação própria”14

Vale lembrar que a chamada lide temerária nada mais é que a demanda judicial sem fundamento legal suficiente, com o intuito ilícito. Trata-se de uma atuação sem justa causa e com objetivo ilegal. Como bem reconhece a doutrina, a “lide temerária funciona como meio indevido de pressão e intimidação, estando destituída de qualquer fundamentação legal, consistindo em instrumentalização abusiva do acesso à justiça, para fins impróprios ou ilícitos”15

Nesses casos, tanto a parte como o advogado poderão ser responsabilizados de forma solidária, diante da expressa previsão legal. Como se sabe, a solidariedade não se presume, devendo estar prevista na lei ou no contrato (CC art. 265). Em relação à atuação dos advogados, a própria legislação estabelece as circunstâncias que geram essa obrigação solidária. Isso significa que tanto o advogado quanto seu constituinte poderão responder pela integralidade do prejuízo causado, por se tratar de solidariedade passiva (CC art. 275).

Aplica-se à responsabilidade civil dos advogados o art. 32 do Estatuto da Advocacia, por ser lei especial e específica para essa atividade profissional, assim como o art. 186 do Código Civil, regral geral da responsabilidade subjetiva, a qual incide em relação a todos os profissionais liberais.

11 Vale citar, dentre outros: STJ, AgInt no AREsp 1.722.332/MT, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j. 13.06.2022; STF, REsp. 1.173.848/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 10.05.2010; STJ, REsp. 1.247.820/AL Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 1/7/2011.

12 Correspondentes aos arts. 79 e 80 do CPC/2015.

13 Correspondente ao art. 77 do CPC/2015.

14 STJ, REsp. 1.331.660/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 17.12/2013, DJe 11.04.2014.

Toda conduta profissional que não for essencial para a defesa e gere dano ao próprio cliente ou a outrem pode ser considerado um ato abusivo e levar à responsabilização do profissional. Um exemplo é a petição de recurso com ofensas pessoais ao magistrado que prolatou a sentença recorrida. Tal conduta caracteriza abuso e, nesse caso, apesar da inviolabilidade, o advogado pode ser processado e punido. Em outras palavras, a atuação do advogado é imune, desde que não sejam extrapolados os limites legais. 15 LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 15 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 464.

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Nesse sentido, há inúmeros julgados do Superior Tribunal de Justiça: “A imunidade profissional, garantida ao advogado pelo Estatuto da Advocacia não alberga os excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária. Precedentes”16

De igual forma, manifesta-se a doutrina ao afirmar que: “A inviolabilidade do advogado, por seus atos e manifestações no exercício da profissão não é absoluta, sujeitando-se aos limites legais, devendo sempre apresentar relação de causalidade com o exercício profissional. Saliente-se, portanto, que haverá excesso impunível se a ofensa irrogada foi vinculada à atividade funcional e pertinente à pretensão que esteja o advogado defendendo em juízo. A imunidade inexistirá, porém, quando a ofensa for profissional e não guardar pertinência com a discussão da causa”17

4. A Responsabilidade Subjetiva

Exige Dolo ou Culpa

Importante destacar que a responsabilidade civil prevista no art. 32 do Estatuto tem natureza subjetiva, isto é, exige a presença dos requisitos dolo ou culpa. Não há que se falar, então, na responsabilidade objetiva do advogado por eventuais danos que sua atuação venha a causar. Ainda que dela decorram prejuízos, só haverá o dever de indenizar se existir atuação culposa ou dolosa. Isso porque, nos termos da lei, ele só responderá caso tenha faltado com algum dever de cuidado (culpa) ou tenha agido com a intenção deliberada de praticar o ato ilício (dolo). O art. 32 é expresso ao exigir o elemento subjetivo para a fixação da responsabilidade civil.

16 STJ - REsp. 1.022.103/RN – 3ª Turma – Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 17.04.2008.

17 Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2006, p. 1773.

Logo, ainda que a conduta profissional tenha causado danos, se o advogado demonstrar que não agiu com culpa (isto é, sem imprudência, negligência ou imperícia), nem tampouco com dolo, não poderá ser responsabilizado. Como já exposto, um dos pressupostos da responsabilidade civil nesse caso é o seu elemento subjetivo.

5. As Atividades de Consultoria e Elaboração de Pareceres Jurídicos

As atividades de consultoria e de assessoria jurídicas se referem à atuação extrajudicial dos advogados, mediante o esclarecimento de dúvidas e a organização estratégica de negócios, a partir do conhecimento específico da legislação.

Nos termos do art. 5º, § 4º do Estatuto da OAB (incluído em virtude da Lei nº 14.365/2022) essa forma de atuação independe de outorga de procuração ou de formalização por contrato de honorários. A prestação do serviço pode se dar de maneira verbal ou por escrito, sempre a critério do advogado.

Diante da possibilidade de prestação verbal e de acordo com a alteração legislativa18, caberá exclusivamente ao Conselho Federal da OAB a análise sobre a efetiva realização desses serviços pelo advogado. Em outros termos, não é possível ao Poder Judiciário entender que tal prestação não ocorreu, se o Conselho Federal da OAB concluir de forma positiva.

Vale destacar que o profissional da advocacia não pode ser responsabilizado por pareceres jurídicos ou opiniões legais que tenha firmado, de caráter meramente consultivo, mormente se não agiu com 18 Lei nº 14.365/2022, a qual introduziu o § 14 à Lei 8.906/94, com o seguinte teor: § 14. Cabe, privativamente, ao Conselho Federal da OAB, em processo disciplinar próprio, dispor, analisar e decidir sobre a prestação efetiva do serviço jurídico realizado pelo advogado.

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dolo ou erro grosseiro (inescusável). Entendimento contrário implicaria na possibilidade de responsabilização profissional por mera divergência na interpretação do Direito.

Nesse sentido, o Conselho Federal da OAB editou a Súmula 05/2012/COP com o seguinte teor:

“ADVOGADO. DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO. PODER PÚBLICO. Não poderá ser responsabilizado, civil ou criminalmente, o advogado que, no regular exercício do seu mister, emite parecer técnico opinando sobre dispensa ou inexigibilidade de licitação para contratação pelo Poder Público, porquanto inviolável nos seus atos e manifestações no exercício profissional, nos termos do art. 2º, § 3º, da Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB)”.

O Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes19, já decidiu que o advogado ou procurador jurídico não pode ser responsabilizado pela mera elaboração de pareceres, salvo se tiver agido com erro inescusável. Nesse sentido, vale transcrever parte das conclusões de importante acórdão da lavra do Ministro Luiz Fux:

“2. O erro grave ou grosseiro do parecerista público define a extensão da responsabilidade, porquanto uma interpretação ampliativa desses conceitos pode gerar indevidamente a responsabilidade solidária do profissional pelas decisões gerenciais ou políticas do administrador público. 3. A responsabilidade do parecerista deve ser proporcional ao seu efetivo poder de decisão na formação do ato administrativo, porquanto a assessoria jurídica da Administração, em razão do caráter eminentemente 19 Podem ser citados como exemplos os julgamentos proferidos pelo STF nos MS nº 24.073/DF, MS nº 24.631/DF e MS nº 24.584/DF. E para afastar a responsabilidade penal, vide decisão do STF no HC 158.086/MG.

técnico-jurídico da função, dispõe das minutas tão somente no formato que lhes são demandadas pelo administrador”20

De igual forma, decidiu o STF ao julgar o AgRg no MS 31.815/DF, concluindo dentre outros pontos que:

“a assimetria informacional impõe que a responsabilidade do parecerista seja proporcional ao seu real poder de decisão”; “ainda que prevaleça no âmbito do órgão de controle entendimento diverso, o advogado é livre para se manifestar com base em outras fontes e argumentos jurídicos” e que “a utilização de condicionantes de cautela pode contribuir para descaracterizar a culpa grave em determinadas situações limítrofes”21.

6. Conclusões

A responsabilidade civil dos advogados está disciplinada no art. 32 e seguintes da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB). Em virtude de sua especificidade, tal diploma legislativo prevalece sobre a regra geral prevista no art. 186 do Código Civil.

Diante da importância da advocacia para a construção do Estado Democrático de Direito, deve ser assegurada aos advogados uma atuação independente e livre de pressões ou influências indevidas. Para tanto, a legislação estabelece não apenas a autonomia profissional, mas também a imunidade pelos atos que venham a ser praticados no exercício da profissão.

Por outro lado, como é notório, essa imunidade não pode ter caráter absoluto. Nesse sentido, os tribunais pacificaram o entendimento de que o advogado poderá ser responsabilizado civil e criminalmente

20 STF, AgRg no MS 35.196/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 12.11.2019.

21 STF, AgRg no MS 31.815/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, j. 08.03.2021.

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nas hipóteses em que atuar com excesso, ou seja, além dos limites legais.

No que diz respeito à advocacia consultiva, mediante a elaboração de pareceres ou opiniões legais, a possibilidade de responsabilização exige certa cautela. Isso porque o advogado não pode vir a ser responsabilizado pela mera interpretação da lei, sob pena de restarem violadas as garantias da independência e da autonomia profissional.

Os tribunais vêm reconhecendo que o advogado ou procurador jurídico não pode ser responsabilizado pela mera elaboração de pareceres, salvo se tiver agido com erro inescusável. Nesse sentido, por erro inescusável se entende o dolo ou o erro grosseiro.

7. Referências Bibliográficas

BARBOSA. Ruy. O dever do advogado – Carta a Evaristo de Moraes, prefácio de Evaristo de Morais Filho, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, Aide Editora, 1985.

CALAMANDREI, Piero. Elogio dei giudici scritto da um avvocato. Tradução de Ary dos Santos, 7ª edição, Lisboa: Livraria Clássica Editora.

COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1979.

LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 15 ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023.

MATOS, Miguel. Migalhas de Rui Barbosa. Vol. I. 1ª ed. São Paulo: Migalhas, 2010.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2006.

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CONFLITOS ENTRE DIREITOS: A DIGNIDADE, O LIVRE ARBITRIO E O DIREITO A VIDA (DIGNA)

Palavras-chave

Dignidade. Livre Arbítrio. Morte Digna. Direito à Vida. Jurisdição Voluntária.

Rosana Chiavassa

Advogada, especialista em Direito do Consumidor, formada pela Universidade de São Paulo e pós graduada pela Faculdade Getúlio Vargas e pela PUC Belo Horizonte.

Marcelo Chiavassa de Mello Paula Lima

Advogado formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e pós Doc pela USP.

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1. Constitição Federal de 1988

Em termos de direitos humanos e sociais, a Constituição Federal de 1988 foi a grande precursora da garantia de direitos no Brasil, posto que, até então, poucos encontravam-se firmemente positivados.

A título ilustrativo, os direitos do idoso, da criança, da família em conceito maior, igualdade de gênero, veto ao racismo, ao preconceito, ao terrorismo, direitos do consumidor, entre tantos outros.

Desde então, e paulatinamente, a Sociedade passou a absorver esses temas, de acordo com seus interesses e direitos de forma crescente e acompanhamos o nascimento e organização de ilhas de direitos. Chamamos de ilhas de direitos os grupos organizados que saíram, literalmente, às ruas e gritaram, chamando a atenção da Sociedade, do Judiciário, Legislativo e Executivo. Algumas dessas ilhas obtiveram sucesso, e o reconhecimento ou regulamentação dos pleitos, através de políticas públicas. Outras, ainda não.

De qualquer forma, uma enorme evolução legislativa, principalmente em função da velocidade das mudanças na Sociedade, mercê da era digital, enquanto ainda se discute o marco regulatório indígena.

Continuamos a assistir essas conquistas e, inclusive, a parte da sociedade contrária às mesmas. Momentos de grandes conflitos sociais.

Por outro lado, hoje, já podemos constatar, como uma das consequências, os conflitos de direitos existentes entre essas ilhas, ilustrando com uma fala de uma avó carente indagar o motivo de seu neto não ter acesso a fraldas descartáveis e enxoval, se os filhos das presidiárias são contemplados.

Em verdade, as duas crianças deveriam receber essa materialização do direito, mas, infelizmente, quem tem o poder de gritar mais, está à frente da parte da população que ainda não se organizou e está virando minorias.

Democracia. Processo lento e paulatino.

E nesse emaranhado de processo evolutivo, esbarramos, por outro lado, em outro grande problema: o da irreverência brasileira frente a algumas leis, que –simplesmente – não são respeitadas. Como se respeitar ou cumprir a lei fosse volitivo.

Educação, ou sua ausência.

E, por fim, diante da inércia do Poder Estatal, acompanhamos uma crescente judicialização de boa parte desses direitos, citando a título de exemplo, a área da saúde, da educação, de genero.

Em função da obrigatoriedade do fornecimento de creches, sabemos que liminares concedidas tem comprometido os orçamentos de várias e várias Prefeituras, o que acaba refletindo em carência de outros direitos, às vezes igualmente importantes, como segurança e saúde.

O mesmo se diga, na área da saúde, que, sendo pragmática, estando garantido o direito universal à saúde, essa discussão não terminará no judiciário.

Indagações são feitas pela Sociedade: mas falta ou não orçamento? Dá para contemplar toda a Medicina sem prejuízo de outros setores? Ou prejudicaremos o fornecimento de outros direitos universais garantidos, como saneamento e segurança?

Certo é que essa discussão dar-se-á no âmbito da Sociedade, decidindo os destinos de um orçamento que, apesar de ainda não haver transparência e pensando num Poder ético e incorruptível, é finito.

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É tirando um viés desse direito à saúde que adentraremos no tema dessa discussão.

E, principalmente porque é de fácil constatação que justamente por prever toda essa proteção, tentando reparar um passado de abandono e repressão, que o Estado se arvorou no papel de agente altamente paternalista.

2. Direito à Dignidade Humana

Expresso em nossa CF, pela primeira vez, já no artigo 1º, que a República Federativa do Brasil traz, como um de seus inerentes fundamentos, a dignidade da pessoa humana.

Referido fundamento se propaga em outras passagens da Magna Carta, principalmente no artigo 5º, que traz as garantias e direito individuais.

Dignidade humana é a garantia do respeito e consideração, por parte do Estado e da comunidade, a cada ser humano.

Com isso, passou o ser humano a ter, de um lado, as condições mínimas de uma existência saudável para poder protagonizar sua própria existência. E, de outro, a proteção contra qualquer ato degradante.

E, por fim, e mais importante, o respeito à sua liberdade individual e a sua personalidade.

Assim, de forma, indiscutível, temos que a dignidade humana é a espinha de todo o ordenamento jurídico pátrio, não podendo ser mitigado ou relativizado, sob pena de gerar a instabilidade do regime democrático, o que confere ao dito fundamento caráter absoluto.

Doutrina e jurisprudência caminham juntos nesse reconhecimento:

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, pg. 54):

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, O Princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição de 1988, 2004, pg. 92

(...) o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (...).

(HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-048 DIVULG 12-032009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL02352-03 PP-00466)

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De qualquer forma, a garantia da dignidade da pessoa humana é absoluta, não podendo sequer ser renunciada.

Claro que haverá momentos em que nos confrontaremos com a contraposição desse mesmo direito com o de outrem e nesses casos caberá ao aplicador do direito essa resolução, com a análise caso a caso e considerando todas as nuances envolvidas isoladamente.

3. O Direito à Vida e à Liberdade (livre arbítrio)

Na sequência, a Carta magna traz, em seu artigo 5º a Carta Magna a individualização dos direitos, sendo de destaque, agora, somente o caput.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

O direito à vida, na realidade, é a incorporação pela axiologia jurídica de um valor sociocultural historicamente delimitado. Nesse sentido, o Professor Miguel Reale destaca o “valor da pessoa humana” como principal elemento da axiologia jurídica, o qual constitui “uma conquista histórica, um fruto do amadurecimento lentamente através do tempo”.1

O direito à vida, portanto, impõe na ordem jurídica um valor cultural que é um constructo social e uma conquista histórica de nossa época, qual seja: o respeito à sacralidade da vida.

No caso do direito à vida, o bem protegido não é apenas a existência singular de uma pessoa, mas,

1 REALE, Miguel. Pessoa Sociedade e História: gênese e validade transcendental da personalidade. P. 1. Disponível em: http://www.bibliojuridica.org/libros/1/460/7.pdf

sobretudo, a defesa dos valores sagrados intrínsecos àquela vida humana.

Em termos jurídicos, o direito à vida é a condição sine qua non para a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana.

Para os doutrinadores, a vida é o bem jurídico de maior proteção legal, obviamente que de forma indissolúvel da dignidade.

Por isso, podemos e devemos falar em vida digna, pois o conceito de vida não é meramente o bater de um coração e o funcionamento de um cérebro.

A vida é o conjunto de histórias, conquistas, derrotas, lutas, pensamentos e convicções de cada ser humano dotado de consciência e, portanto, de livre arbítrio.

Essa conceituação mais rasa tem sido vital para alguns debates, como o aborto de crianças anencefálicas, ou oriundas de estupros, e etc.

Mas, para a discussão que se pretende, com a devida vênia, referido conceito é anacrônico, antiquado e ineficaz.

Sim, pois, numa análise um pouco mais profunda, o Estado deixou o direito à liberdade – frise-se, indispensável à sociedade proposta pela Constituição –restrito, engessado, absolutamente limitado.

De forma curiosa, o Estado reconhece direitos para o nascituro, mas nega a concretização da verdadeira liberdade de decisão (livre arbítrio) em assuntos ainda hoje considerados tabus.

De um lado nos permite, nos dá o direito de infringir leis (obviamente assumindo as consequências), mas de outro, não.

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Em verdade, o que vemos é o Estado, no seu papel conservador de paternalista, não respeitando, verdadeiramente, nosso livre arbítrio, partindo da premissa (inconsciente) de que ainda engatinhamos em algumas questões e por isso não podemos decidir.

Partindo do pressuposto de que seus jurisdicionados, mesmo que maiores de idade, formados em grau superior, imbuídos de todas as informações necessárias para formar sua opinião no que toca à si mesmo não poderia fazê-lo.

4. Direito à Saúde

Temos garantido, também, na Constituição Federal, o direito à saúde:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

Pois bem. Unindo-se o direito ao livre arbítrio e à saúde temos que cada ser humano deve ter toda a Medicina disponível a seu favor, podendo, com as informações adequadas, decidir, inclusive, se aceita ou não o tratamento proposto.

Aliás, alguns dos princípios do Código de Deontologia Médica, legislação infraconstitucional, ligados ao tema:

Dos Princípios

Principio 2 - O alvo de toda a atenção do médico é o paciente, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

Principio 5 – É dever do médico aprimorar

continuamente os seus conhecimentos e usar o melhor progresso cientifico em benefício do paciente, agindo sempre com prudência e diligencia.

Principio 9 – O médico, ainda que em caráter de pesquisa, guardará sempre absoluto respeito pela vida humana, desde a concepção até a morte, utilizando seus conhecimentos em benefício do paciente e jamais o fazendo para gerar sofrimento mental e físico ou extermínio do homem, nem para permitir ou encobrir tentativa contra sua dignidade ou integridade.

E, de outro lado, demonstrando que tudo converge aos 4 direitos constitucionais aqui discutidos, dignidade, vida, saúde e liberdade, temos inseridos na citada legislação, as condutas caracterizadoras de infrações ética:

Artigo 1- Deixar de utilizar todos os conhecimentos técnicos ou científicos, ao seu alcance, contra o sofrimento ou o extermínio do homem.

Artigo 3 – desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seu cuidado profissional.

Na relação singular típica, o doente procura o médico – conferindo-lhe, com este gesto, a legitimidade inicial para o observar e para o desenvolvimento seguinte da atividade, o cuidar, se for de sua vontade.

Isto constitui um passo natural na execução continuada do contrato médico/paciente.

O direito, nessa relação contratual, está assentado nas garantias individuais e nos direitos da personalidade, vida, saúde, direito à integridade física e moral de cada indivíduo, intimidade, dignidade, constituindo as técnicas médicas invasivas e sofisticadas, uma das facetas mais relevantes nessa sua proteção.

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O dever de zelo e respeito do doente funda-se num direito inato da personalidade e não depende, na sua afirmação básica, da estrutura contratual em que se pratica o ato médico.

O tema é de tal importância, que hoje a legislação brasileira e internacional, nisto inserindo os Pactos e Tratados, tem como preocupação primordial, aliar à saúde, a liberdade e a dignidade humana.

Assim, estatuído na Cartilha dos direitos do paciente emitida pela Secretária de Saúde do Estado de São Paulo o item nº 2, sob o título Respeito e Dignidade, a obtenção de:

‘Um tratamento digno, atencioso e respeitoso por parte de todos os profissionais de saúde’

Já no item 6, denominado ‘informação’ temos:

‘Um tratamento digno, atencioso e respeitoso por parte de todos os profissionais de saúde’

‘.. a informações claras, simples e compreensivas, adaptadas à sua condição cultural, sobre as ações diagnósticas e terapêuticas, o que pode decorrer delas, a duração do tratamento, a localização de sua patologia, se existe necessidade de anestesia, qual o instrumental a ser utilizado e quais regiões do corpo serão afetadas pelos procedimentos”. (grifo nosso).

Similares exposições são trazidas na cartilha da União e em muitas Prefeituras.

Ou seja, minimamente, respeito. Existem vários meios para se garantir dignidade e respeito. Não se pede nem simpatia. Mas, apenas e simplesmente, respeito ao ser humano.

Através do Decreto 591 de 06/07/1992, o Brasil tornou-se signatário do Pacto Internacional sobre Di-

reitos Econômicos, Sociais e Culturais adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966.

Através dos princípios proclamados nesse Pacto das Nações Unidas, o relacionamento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

Mais. Reconhecido ficou que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana e que se não criadas condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos, não haverá o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria. Não pode ser realizado a menos que se criem medidas para garantir tais direitos.

Tanto assim, que a Carta das Nações Unidas impõe aos Estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades do homem. Destaca-se desse Tratado:

ARTIGO 4º

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem que, no exercício dos direitos assegurados em conformidade com presente Pacto pelo Estado, este poderá submeter tais direitos unicamente às limitações estabelecidas em lei, somente na medida compatível com a natureza desses direitos e exclusivamente com o objetivo de favorecer o bem-estar geral em uma sociedade democrática.

ARTIGO 12

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.

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E, através do artigo 2º do Decreto lei 592 de 06/07/1992, temos assegurado o acesso à prestação jurisdicional que:

3. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a:

a) Garantir que toda pessoa, cujos direitos e liberdades reconhecidos no presente Pacto tenham sido violados, possa de um recurso efetivo, mesmo que a violência tenha sido perpetra por pessoas que agiam no exercício de funções oficiais;

b) Garantir que toda pessoa que interpuser tal recurso terá seu direito determinado pela competente autoridade judicial, administrativa ou legislativa ou por qualquer outra autoridade competente prevista no ordenamento jurídico do Estado em questão; e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;

c) Garantir o cumprimento, pelas autoridades competentes, de qualquer decisão que julgar procedente tal recurso.

Ainda, a ser invocado, temos a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, subscrita pelo Brasil, através do decreto 678, em 06/11/1992.

Destacamos do referido Pacto:

Artigo 4. Direito à vida (digna)

Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Artigo 5. Direito à integridade pessoal

Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

Artigo 11. Proteção da honra e da dignida-

1.Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

Artigo 25. Proteção judicial

1.Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

2. Os Estados Partes comprometem-se:

a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;

a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e

c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

Impossível, ainda, não invocar a Declaração Universal de Direitos Humanos, em seus artigos:

Artigo 1º - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo 22 - Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais

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de

indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Artigo 28 – Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo 29, §2. - No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas por lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Pois bem, e tudo isso não pode deixar de levar em consideração as subjetividades de cada ser humano, pois em muitos casos, a decisão sobre a extensão de seu direito à saúde, passa, inclusive, pela crença religiosa, caso das transfusões de sangue em testemunhas de Jeová, onde de forma inerente está o direito à liberdade.

Como se pode ver, o direito à saúde tem causado muita polêmica, pois da forma como concebido, de acesso universal, garantido foi tudo o que a Medicina dispõe a favor do ser humano.

Mas, desde que a pessoa o queira e desde que inserido em suas crenças, citando de forma exemplificativo, tudo o que envolve a mulher e a procriação, desde a colocação de um ‘DIU’.

E, para engrossar esse caldo, pois não é o foco da matéria, levando em conta o ‘dever’ do médico de fornecer ao paciente toda a melhor medicina, com a judicialização da saúde, os orçamentos públicos (municipais e estaduais) sofrem sérios abalos, posto não haver previsão orçamentária para arcar com todas as despesas médicas prescritas.

Um exemplo elucidativo são os medicamentos (objeto de investimento maciço da indústria farmacêutica) que podem custar R$ 1.500.000,00 (hum milhão e quinhentos mil reais) por 4 aplicações, mensais sequenciais.

Mas, essa questão não é, como já dito, objeto desta discussão.

Agora, juntemos, direito à dignidade, à vida, ao livre arbítrio e à saúde.

5. Dignidade Humana da Vida e na Morte, da Liberdade e da Saúde

Entramos agora, na parte mais difícil da discussão, que é a seara subjetiva individual de cada ser humano, com a garantia esses direitos inalienáveis.

A morte assusta não pela possibilidade de ser o começo do nada, mas, principalmente, porque pode ser o fim de tudo.

A ideia que empregamos na noção de ‘morrer com dignidade’ revela como é importante que a vida termine em paz, ou seja, que a morte seja um reflexo do modo como pretendemos – ou pretenderíamos – viver.

Portanto, a tragédia da morte é o fim da vida. E aí reside o paradoxo. Falamos de que vida? A meramente física, com órgãos funcionando? Ou aquela que decorre de junção de ideias, vontades, pensamentos e sentimentos?

Quando uma pessoa está moribunda, sofrendo com dores desumanas ou em estado vegetativo, e nos perguntamos o que seria melhor para ela, não deveríamos considerar somente seu futuro.

A morte é a última etapa da vida. Se ela for lenta, sofrida e em contradição com tudo aquilo que a pes -

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soa entende como viver, todo o seu passado é contaminado pela rotina da angústia, por mais que esta possa encontrar-se inconsciente.

É crucial, assim, considerar o sentido que damos às nossas vidas. Antes de qualquer análise isolada sobre a morte, é preciso valorizar o que cada pessoa considera como vida digna e, por esse ideal, esforça-se para desenvolver suas potencialidades e obter a sua realização pessoal, respeitada sua convicção.

Deve-se analisar, na perspectiva dos direitos da personalidade, três dos principais direitos constitucionais e civis: (i) o direito à vida, (ii) o direito à liberdade e (iii) a dignidade da pessoa humana.

Juntos, estes direitos formam o núcleo essencial dos direitos de uma pessoa, e são amplamente defendidos pela Magna Carta e pelas legislações federais.

Mas estariam todos estes direitos essenciais no mesmo nível de hierarquia? Ou poder-se-ia dizer que algum deles é mais importante que outros?

Algumas outras indagações pertinentes: o que seria uma vida digna e qual a efetiva importância que as pessoas dão para a conjunção destes dois direitos (vida digna)? Poder-se-ia conceber uma vida indigna?

Se alguma pessoa entender que sua vida não é digna, teria ela o direito de colocar fim à sua própria existência mundana?

Se sim, o que legitimaria este seu direito? Ao contrário do senso-comum, seria o direito à liberdade fundamentalmente o maior direito de uma pessoa, em detrimento até do seu direito à vida?

Qual é o sentido da vida e como agir para obter uma vida satisfatória são questões que habitam cada pessoa, intrinsecamente.

Essas considerações sobre a satisfação da vida influenciam o que julgamos como viver com dignidade e nos faz encarar a hora da morte de forma distinta.

Para muitas pessoas2, passar semanas, meses ou anos sofrendo com dores e tratamentos torturantes, totalmente paralisadas ou em estado vegetativo permanente, representa uma morte que contradiz todos os parâmetros que nortearam suas vidas. Em outras palavras, uma morte lenta e torturante é o capítulo final trágico que viola toda a dignidade da pessoa.

O direito à vida não se resume à ideia superficial de manter alguém vivo até a última pulsação, mesmo que isso signifique sofrimento intenso por conta das condições físicas e mentais que o grave estado de saúde provoca ao paciente.

A correta interpretação do direito à vida deve considerar, de modo sistemático e harmônico, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Conforme já exposto, o direito à vida deve ser contextualizado para sua correta compreensão. Atualmente, o conteúdo do direito à vida não se esgota na defesa da integridade física dos indivíduos, como era a sua pretensão inicial após a Revolução Francesa.

Agora é preciso compreender a vida atrelada à dignidade, aos valores que conduzem e dão sentido ao estar vivo de cada pessoa.

2 No Brasil, conforme a pesquisa Datafolha citada, em 2007 por volta de 40% da população era favorável à eutanásia. Esse número tende a crescer.

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Indubitavelmente, o dever de proteção à vida continua sendo a tônica jurídica, mas a vida merece ser corretamente entendida, para que o fato de se estar respirando não vire uma tortura, uma violação à dignidade.

As concepções sobre como viver para obter a satisfação pessoal definem as convicções sobre quando morrer nos casos de graves problemas de saúde. Por tal motivo, quando vemos alguém em estado de sofrimento intenso, dizemos “isso, para mim, não é vida”.

A cessação do ‘tratamento médico fútil’, termo ora empregado de forma genérica para indicar a morte sem sofrimento, respeita a liberdade de escolha em relação aos limites do suportável. Diante de situações que impõem a alguém o sofrimento intenso e irremediável, a única maneira de respeitar a dignidade da vida é reconhecer a autodeterminação do paciente para definir o seu termo final.

A imposição de um modo específico de morrer, o qual deve passar pelo intenso sofrimento e angústia de um paciente já sem qualquer perspectiva de melhora, é um abuso do Estado que viola a liberdade fundamental de uma pessoa, impedindo-a de determinar, sem prejuízo para quem quer que seja, a sua própria forma de viver segundo seus juízos de valor.

A dignidade humana configura fundamento do República Federativa do Brasil, previsto logo no primeiro artigo da Constituição Federal. Desse modo, o princípio da dignidade humana deve orientar todo o ordenamento pátrio, inclusive a forma de interpretar e conceber o direito à vida.

A defesa da vida, em sintonia com a dignidade humana, será mantida como finalidade precípua do Estado. Contudo, não se trata simplesmente de de-

fender a manutenção da vida biológica a qualquer preço.

Qualquer ser humano que venha a se encontrar em um quadro de inconsciência irreversível, com forçosa manutenção de sua vida pode entender que essa situação é uma afronta a sua dignidade, porquanto um amplo período de inconsciência causará inequívoco sofrimento a seus familiares, tornando-se, possivelmente, um fechamento da vida em contradição com todos os parâmetros que sempre orientaram sua vida.

Por isso, pode-se pleitear o reconhecimento de seu direito à declarar a vontade de não iniciar o ‘tratamento médico fútil’ – nas situações e seguindo os procedimento previstos no tópico seguinte desta petição inicial – em um título judicial que, além de garantir a certeza de sua vontade manifesta, servirá para afastar as supostas restrições legais que frequentemente são invocadas para negar a legalidade da morte sem sofrimento.

Negar esse direito ao Reclamante é violar seu livre arbítrio de forma tirânica. Em outras palavras, impor a permanência da vida a qualquer custo quando viver já se tornou uma tortura sem sentido é uma supressão da liberdade e uma negação da dignidade humana imotivadamente.

Por tais razões, é licito ao indivíduo ingressar com procedimento de jurisdição voluntária, requerendo o provimento jurisdicional que reconheça o seu direito de optar pela eliminação da dor e do sofrimento e de morrer com dignidade, como expressão do próprio direito à vida em consonância com o princípio da dignidade humana.

Sim, pois cada ser humano tem seu conceito de vida, saúde, liberdade e dignidade humana.

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Juntando-se o direito à dignidade, ao livre arbítrio, à vida por obviedade, temos o inequívoco direito a uma morte digna.

Existe somente uma certeza: a de que nascemos para morrer; com data de vencimento (ainda que incerta), fazendo com que a vida, seja apenas um hiato entre o ‘vazio’ que precede o antes de nascermos e o ‘vazio’ que procede o depois da morte.

É certo que algumas pessoas têm mais facilidade de lidar (ou de fugir) com esta questão.

Por exemplo, os médicos lidam com a morte de uma forma menos fantasiosa e por isso ousam mais falar sobre o tema.

Já os religiosos, nem pensam a respeito, em reverência às suas crenças, o que, registre-se, está longe de ser uma crítica, visto que algo completamente imbuído no direito ao credo livre.

Pois bem.

Se a CF garante direito à vida e direito à dignidade, como princípio federativo, as pessoas deveriam pensar sobre o que é, dentro de sua história, uma morte digna.

O direito cujo reconhecimento se reclama diz respeito à vida, o que se entende apenas desde que, eivada, esta, com dignidade humana em toda sua plenitude.

A medicina evolui constantemente na busca de tecnologias e medicamentos que permitem manter vivas pessoas que já estão à beira da morte. Por outro lado, essa mesma medicina está se esquecendo do ser humano como um todo e, justamente por isso, impondo, para pessoas com incapacidade irreversível, dores físicas ou psíquicas atrozes e desumanas.

Falamos da manutenção por métodos fugazes de órgãos pincelados de um todo, independente da análise do ser humano. Essa realidade desrespeita as convicções, as crenças, enfim, a história de cada um.

Além da medicina moderna estar em constante evolução, desenvolvendo continuamente novos aparatos tecnológicos capazes de curar ou pelo menos prolongar o viver por longos períodos, o que pode parecer um capitalismo selvagem, temos que essa mesma medicina, em alguns casos, está distanciada da moralidade, pois serve somente para manter pessoas que estão à beira da morte e/ou ligadas a inúmeros aparelhos que induzem as funções vitais; ou que estão total e permanentemente paralisadas; assim como aquelas que enfrentam dores insuperáveis ou que estão semiconscientes de tão sedadas, ou mesmo mortas-vivas, pois privadas perpetuamente de sua volitividade.

Esse estado, para muitas pessoas, não pode ser considerado “vida digna”.

Agora é preciso compreender a vida atrelada à dignidade, aos valores que conduzem e dão sentido ao estar vivo de cada pessoa.

Indubitavelmente, o dever de proteção à vida continua sendo a tônica jurídica, mas a vida merece ser corretamente entendida, para que o fato de estar respirando não se torne uma tortura, uma violação à dignidade.

As concepções sobre como viver para obter a satisfação pessoal definem as convicções sobre quando morrer nos casos de graves problemas de saúde. Por isso que, quando vemos alguém em estado de sofrimento intenso, dizemos “isso para mim não é vida”.

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A defesa da vida, em sintonia com a dignidade humana, será mantida como finalidade precípua do Estado. Contudo, não se trata simplesmente de defender a manutenção da vida biológica a qualquer preço.

Para alguns que já pensaram a respeito, um quadro de inconsciência irreversível, a forçosa manutenção de sua vida é uma afronta a sua dignidade

Por isso, deveria o Estado, não no seu papel conservador paternalista, mas no seu papel de respeito absoluto ao ser humano e suas concepções subjetivas, reconhecer seu direito à declarar a vontade de não iniciar o ‘tratamento médico fútil’ – nas situações e seguindo os procedimentos médicos previstosalém de garantir a certeza de sua vontade manifesta, afastar as supostas restrições legais que frequentemente são invocadas para negar a legalidade da morte sem sofrimento.

Negar esse direito é violar o livre arbítrio de forma tirânica. Em outras palavras, impor a permanência da vida a qualquer custo quando viver já se tornou uma tortura sem sentido é uma supressão da liberdade e uma negação absoluta da dignidade humana sem motivação.

6. Da Ausência de Legislação e Práticas não Seguras

É fato que esse direito não está normatizado.

É fato que muitas pessoas já pensaram a respeito.

Com isso, alguém teve a ideia de que bastaria registrar sua vontade num documento lavrado em cartório, através de uma escritura de declaração, vulgarmente denominada de ‘testamento vital’.

Hospitais debateram e debatem a questão sob esse prisma, junto a pacientes que tenham interesse.

Esqueceram de um pequeno detalhe: o de que esse tipo de documento, como todo testamento, poderá ser questionado judicialmente, inclusive pelos familiares, seja por motivos próprios de crença religiosa, filosófica ou mesmo, patrimonial.

Exemplo? O moribundo ateu, com testamento vital, tem um filho extremamente religioso. Ou uma divergência de interesses entre um curador na administração dos bens do moribundo versus os demais herdeiros.

Claro que se o Estado legislar a respeito, declarando a fé pública do escrevente de cartório extrajudicial, para convolar a suposta avaliação de lucidez do testador, afirmar a validade do ‘testamento vital’ não teremos mais problemas com essa questão.

Mas estamos num vácuo perigoso.

E diante dessa ausência normativa, ajuizadas algumas lides, no formato de jurisdição voluntária, para obter esse mandamento de forma definitiva, reconhecendo o direito a uma morte digna, que certamente traz a segurança jurídica definitiva, algo inexistente no ‘testamento vital’ lavrado em Cartório.

No procedimento de jurisdição voluntária não há lide (por conseguinte, não há partes da forma que tradicionalmente concebemos como autor e réu) e não se busca, necessariamente, uma tutela jurisdicional apta a proteger um direito violado ou sob ameaça de violação.

Por essa razão, José Frederico Marques,3 dentre outros renomados processualistas que seguem a lição de Liebman, definia a jurisdição voluntária como administração pública de interesses privados, que tem, ao mesmo tempo, função de natureza administrativa

3 MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre a Jurisdição Voluntária. São Paulo: Saraiva, 2003.

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e caráter de ato jurídico do ponto de vista subjetivo e orgânico (emanado pelo Poder Judiciário).

O ínclito processualista José Ignácio Botelho de Mesquita, em lição esclarecedora e preventiva,4 ressaltando a proximidade do procedimento da jurisdição voluntária prevista no Código de Processo Civil pátrio com a doutrina alemã que concebe o direito como princípio vital da sociedade, revela que:

“A jurisdição voluntária tem sido considerada usualmente sob uma perspectiva extremamente acanhada, que não dá a conhecer, de modo algum, as suas reais dimensões, as suas verdadeiras proporções.”5

Lembrando Mauro Cappelletti, o Professor Mesquita ensina que a jurisdição voluntária não se limita aos procedimentos especiais previstos no Título II do Livro IV do Código de Processo Civil (artigos 1.113 a 1.210), mas, ao contrário, visa “fazer prevalecer a ordem política, econômico-financeira ou social”, pressupondo a existência de “lesão ou ameaça a interesses políticos, econômicos ou sociais” 6

Corroborando a posição do professor Mesquita, o Código de Processo Civil prevê em seus artigos 1.103 a 1.112 as disposições gerais sobre jurisdição voluntária, as quais norteiam os procedimentos sem expressa previsão. O artigo 1.103 estabelece que:

Art. 1.103. Quando este Código não estabelecer procedimento especial, regem a jurisdição voluntária as disposições constantes deste Capítulo.

4 MESQUITA, José Ignacio Botelho de. As novas tendências do direito processual: uma contribuição para o seu reexame. In: Revista Forense, vol. 361, p. 47-72.

5 Ibidem. P. 48.

6 Ibidem. P. 50.

Depreende-se, pois, que os procedimentos de jurisdição voluntária não estão restritos às hipóteses de procedimentos especiais que estão previstas no Código de Processo Civil.

Muito pelo contrário, há autorização legal à propositura de procedimentos voluntários não específicos.

A prestação jurisdicional almejada no procedimento de jurisdição voluntária coincide perfeitamente com a preservação da ordem social – destacada pelo Professor José Mesquita como função da jurisdição voluntária – por meio da tutela de um interesse relativo ao direito fundamental contido no princípio da dignidade humana.

Busca-se neste procedimento a obtenção de uma decisão que reconheça e ampare um direito fundamental do Requerente, qual seja: o direito à dignidade na hora da morte como forma de respeito a sua vida caso ela venha a enfrentar situações de condição física insuportável e irreparável ou de perda irreversível da consciência.

Em outras palavras, este procedimento procura o reconhecimento jurisdicional do direito ao veto de ‘tratamento médico fútil’ como forma de preservar a dignidade humana e o livre arbítrio do ser humano, em condições específicas que, eventualmente, tenha que enfrentar no fim da vida.

O reconhecimento do direito aqui discutido, por jurisdição voluntária, implica na constituição de uma situação juridicamente definida na qual esse direito possa ser regularmente exercido e NÃO QUESTIONADO.

A contemporaneidade da discussão é patente. Miguel Reale Júnior, assim se posicionou recentemen-

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te em artigo veicula pelo jornal “O Estado de São Paulo”7:

“Com efeito, mais facilmente estabelecemos disposições testamentárias patrimoniais, querendo abraçar a vida depois da morte, para comandar o destino e a fruição de nossos bens, estendendo nosso poder de decisão para após a entrada no reino dos mortos.

Mais difícil, porém, é enfrentarmos a possível realidade da desgraça em vida que nos leve a um estado de inconsciência. Para Sartre, a vida seria uma desconversa diante da morte inexorável. Viver a pensar na morte levaria a abdicar do gosto pela vida, razão por que fazemos de conta que não ocorrerá. Mas, mais do que a morte, afastamos com maior vigor de nossa mente a probabilidade da desgraça de doença terminal que nos prostrará inconscientes. Imaginar essa hipótese, todavia, passa a ser preciso, pois a arte médica consegue prolongar artificialmente a vida sem consciência, impondo-se a necessidade de anteciparmos decisões para fazer prevalecer nossa vontade quando incapacitados para expressá-la, nomeadamente no sentido de não querer uma vida vegetativa.

(...)

Para permanecer dono do próprio corpo mesmo inconsciente, sem riscos de conflitos éticos no exercício da medicina ou perante o Ministério Público, é de todo conveniente que a matéria seja objeto de lei (...) elaborando-se anteprojeto em discussão com os médicos, juristas e especialistas em bioética.” (grifo nosso)

Ante a falta de regulamentação legislativa, no Brasil, deste instrumento jurídico (living will), cabe ao Poder Judiciário atuar em uma de suas funções atípicas: de legislar positivamente, em consonância com o ar7 Testamento Vital, publicado em 04.05.2013.

tigo 4º da LINDB (princípio do non liquet) e de fazer justiça, como assevera Ruy Barbosa, em seu discurso de paraninfo na Universidade de São Paulo:

“Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação. Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis, em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça.

De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos; e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão. “Aí temos as leis”, dizia o Florentino.”8

Muitos aqui poderiam começar a questionar as condições desse procedimento.

7. Das Condições da Ação, Direito Material e Convicções Pessoais

7.1 O (Im)Provimento e as Condições da Ação: Distinção entre Direito Material e Possibilidade Jurídica do Pedido

Discute um direito que diz respeito a sua vida e a sua dignidade, o qual pretende ver reconhecido e tutelado pelo Poder Judiciário, não havendo que se falar em falta de interesse de agir, obviamente.

Poderia haver um eventual obstáculo à apreciação do direito apresentado neste tipo de procedimento, o qual, todavia, repousa sobre o equívoco corrente de reduzir a possibilidade jurídica do pedido a uma avaliação prévia de mérito.

8 Oração aos Moços.

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Vejamos: as condições da ação, incluindo a possibilidade jurídica do pedido, não se confundem com o mérito da causa, ainda que guardem certa proximidade,9 e isso fica ainda mais evidente ao constatar que o julgamento de carência da ação não produz os efeitos exclusivos de julgamento de mérito, tal qual define o Código de Processo Civil.

Segundo essa concepção das condições da ação, correta a nosso ver, pedido e fundamento jurídico (causa de pedir) não se confundem, sendo somente em relação ao primeiro (o pedido em si) que a carência da ação com base na impossibilidade jurídica do pedido poderia vir a incidir.

Se, portanto, a extinção da ação ocorre com base na relação pedido e causa de pedir, concluindo o juiz que o fundamento jurídico utilizado não sustenta o pedido formulado na petição inicial, não há impossibilidade jurídica do pedido, mas sim extinção com julgamento de mérito.

Nesse caso, o pedido só é juridicamente impossível se, independente da causa de pedir em que se ampara, a lei o veta expressamente.

Se, por outro lado, para extinguir a ação é preciso argumentar que a causa de pedir não está amparada no direito vigente, não haverá impossibilidade jurídica, mas de fato improcedência do pedido e, para tanto, o devido processo legal deve ser respeitado.

Na análise de um procedimento de jurisdição voluntária cujo objetivo seja a consecução da impossibilidade de prolongamento da vida do indivíduo, o pedido consiste em obter do Estado-juiz o reconhe-

9 José Roberto dos Santos Bedaque destaca a proximidade das condições da ação com o mérito, afirmando que“é inegável que as condições da ação têm conotações com o mérito, pois examiná-las significa conhecer de aspectos da pretensão, do objeto do processo, ainda que decisão a respeito nem sempre represente resposta ao pedido formulado.” (Efetividade do processo e técnica processual. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 248).

cimento de um direito, bem como o modo de efetivar sua tutela.

Trata-se, portanto, de pedido que pretende a declaração de um direito e, simultaneamente, a constituição de um documento (sentença) que o reconheça e defina as regras para sua efetivação, com força de coisa julgada material.

Desse modo, verifica-se de plano que o pedido discutido neste tipo de procedimento seria juridicamente possível, pois não há no ordenamento pátrio qualquer vedação ao pleito que pretende obter o reconhecimento de um direito e a definição dos meios de sua tutela efetiva, mesmo que tal pleito seja a cessação da vida indigna, no ver do pleiteante.

Não existe qualquer óbice legal ao pedido de declaração de um direito

Por isso, o pleito que visa o reconhecimento do direito à cessação do ‘tratamento médico fútil’(declaração), bem como a fixação da forma de tutelá-lo caso isso seja necessário no futuro, configura, em nosso entender, pedido inequivocamente possível na acepção jurídica.

7.2. O Interesse de Agir: a Constituição do Living Will

Outro aspecto processual que poderia ser apontado para julgar extinto este tipo de procedimento sem a análise de mérito, uma vez afastada a hipótese de impossibilidade jurídica do pedido, seria a falta de interesse de agir.

Uma das condições da ação, o interesse de agir, usualmente é compreendido como a exigência feita para análise de mérito, que se configura mediante a existência de necessidade e utilidade da via judicial para a satisfação da pretensão da Reclamante.10 10 MESQUITA, José Ignacio Botelho; e outros. O colapso das condições da ação?:um breve ensaio sobre os efeitos da carên-

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Alguém poderia alegar que a pretensão ora reclamada em procedimento de jurisdição voluntária deste jaez não possuiria interesse de agir, considerando para tal alegação que a Reclamante está requerendo o reconhecimento de um direito que seria aplicado em uma situação futura e hipotética (qual seja, a Reclamante perder de forma irreversível a consciência ou sofrer com doença insuportável e incurável), que pode nem vir a se concretizar.

Todavia, o interesse de agir, e de agir com antecedência e precaução, existe neste caso. Por essa razão, é crucial que a pessoa que não suporta a ideia de uma (sobre)vida completamente privada de consciência ou movimentos, ou mesmo repleta de dores intermináveis, possa manifestar com antecedência o seu desejo de não se sujeitar a tais condições, demonstrando, de forma inequívoca, e sob a chancela do Estado-juiz, a sua vontade de ter uma morte que considera digna.

É apenas antecedentemente que se pode conceber tal pleito, haja vista que no momento de inconsciência ou impossibilidade de expressar sua vontade, o indivíduo obviamente não poderá fazê-lo.

Outro ponto poderia consubstanciar-se na alegação de que o indivíduo teria outros meios para garantir sua vontade, através do registro de testamento vital em cartório de títulos e documentos, sendo desnecessária a tutela do Poder Judiciário para garantir tal direito. Entretanto, conforme já explicitado anteriormente, um testamento vital não tem e nunca terá força de coisa julgada, podendo ser contestado – naquele momento de mais necessidade do declarante – por membros da família, por motivos alheios ao do Pleiteante.

Desta forma, visando obter o reconhecimento da autenticidade dessa manifestação volitiva, é funcia de ação. In: Revista de Processo – RePro nº 152, 2007, p. 27.

damental que o Estado reconheça, por meio do exercício da jurisdição, a possibilidade de tutelar o direito à vida com dignidade e, ao mesmo tempo, acompanhe o procedimento em que a pessoa pede para ter direito de veto ao ‘tratamento médico fútil’, o que promove maior segurança ao procedimento, já que o documento que expressa a vontade é uma sentença.

Como consequência, a lide deve transcorrer na forma prevista pelo Código de Processo Civil (art. 1.103 a 1.112), com a manifestação dos interessados e com a dialética necessária para que o magistrado formule sua convicção fundamentada em argumentos jurídicos.

A pretensão reclamada seria obter, além do reconhecimento jurídico do direito de veto ao ‘tratamento médico fútil’, a constituição de um documento público (uma sentença) que afirme que a Recorrente quer e tem o direito a uma morte digna caso sua consciência seja perdida de forma irreversível, ou na hipótese de se encontrar sofrendo de uma doença incurável e torturante.

Diante dessa pretensão, está claro que há interesse de agir no presente caso, vez que o provimento judicial é necessário, útil e adequado para reconhecer o direito da Recorrente, bem como para dar a segurança necessária ao documento (coisa julgada material) que expressa o desejo dela de não ser mantida viva em condições que considera insuportáveis e/ou que atentariam sua dignidade humana.

7.3. O Limite das Convicções Pessoais na Prestação Jurisdicional

O reconhecimento jurídico da vontade manifestada pelo seu livre arbítrio quanto ao veto do ‘tratamento médico fútil’, como todo tema relativo à vida, desperta uma série de posições pessoais orientadas por

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convicções de ordem religiosa e moral. Convicções e opiniões estão sempre presentes na sociedade e no pensamento coletivo, e inevitavelmente afetam a apreciação de qualquer direito.

Mesmo em temas que possuem expressa previsão legislativa estabelecendo literalmente a forma de aplicar o direito, as mudanças interpretativas, decorrentes das transformações sociais que impactam sobre as convicções dominantes, acabam por alterar o modo de aplicar a norma jurídica. Nesses casos, fica nítido que a convicção do julgador influi no resultado.

Típico exemplo é o recente julgamento da união estável homoafetiva. O texto constitucional (artigo 226, § 3º, da Constituição Federal) prevê a união estável apenas “entre o homem e a mulher”, não deixando margem interpretativa para o reconhecimento jurídico de uma união entre pessoas do mesmo sexo.

O reconhecimento e a tutela jurídica da união estável homoafetiva, assim, só seria possível se fosse empregado um esforço argumentativo por meio de uma interpretação sistemática que, embora se coadune mais com o tempo presente do que o texto cru, não condiz com a estrita literalidade da norma constitucional.

Essa aplicação do direito em consonância com o tempo foi utilizada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4.277/DF) para reconhecer a união homoafetiva como um núcleo familiar, mesmo sob claro conflito com a gramática e literalidade da lei.

Tal decisão é um exemplo recente, dentre tantos outros, que evidencia, de forma inegável, que o magistrado possui/formula sua própria convicção e opinião sobre o tema a ser julgado e que essa posição pessoal influencia a forma como ele aplica o direito em suas decisões. Analisando essa problemática, o

constitucionalista Luiz Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, ressalta que:

(...) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, consequentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula. (...). Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento vigente.11

O mesmo jurista, contudo, pondera que:

Evidentemente, Direito não é política no sentido de admitir escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas. (...). Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz deverá buscar a que seja mais correta, mais justa, à luz dos elementos do caso concreto. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação.12

Percebe-se, pois, que, em que pese a nítida influência das convicções pessoais do magistrado, a decisão deve ser motivada com argumentos extraídos do direito positivado, os quais revelam o emprego da equidade e da justiça como justificativa para o decisum.

Nesse sentido, Mauro Cappelletti, um dos maiores estudiosos do Poder Judiciário do século passado, afirmava a relevância da motivação como traço distintivo de legitimidade das decisões judiciais, apontando que:

(...) tribunais superiores são normalmente

11 BARROSO, Luiz Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. P. 13. Disponível no site: http://www.oab. org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901. pdf. Acessado em: 10/04/2012.

12 Ibidem, p. 14.

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chamados a explicar por escrito e, assim, abertamente ao público, as razões das suas decisões, obrigação que assumiu a dignidade de garantia constitucional em alguns países, como a Itália. Essa praxe, (...), mantém o seu valor enquanto tentativa de assegurar ao público que as decisões dos tribunais não resultem de caprichos ou idiossincrasias e predileções subjetivas dos juízes, representado, sim, o seu empenho em se manterem fiéis “ao sentimento de equidade e justiça da comunidade”.13

8. A Primeira Decisão Judicial

A primeira decisão a respeito da cessação de tratamentos fúteis para sobrevida indigna se deu, infelizmente, após ter o Ministério Público declinado de participar, invocando o art. 221 do Manual de Atuação Funcional (Ato n° 675/2010 - PGJ - CGMP, de 28 de dezembro de 2010), sendo proferida pelo Magistrado Alexandre Coelho, que após muito analisar a questão, bem como ouvir a Autora da lide em audiência especialmente para tal fim, assim decidiu:

A advogada ROSANA CHIAVASSA, qualificada nos autos e atuando em causa própria, ajuizou pedido de jurisdição voluntária, em que pretende obter o reconhecimento de seu “direito de optar pelo não recebimento de tratamento médico fútil que sirva exclusivamente para prolongamento de sua vida assim definido temporalmente quando da prescrição médica” e de “não ser obrigada a viver sem dignidade prevista na C. F., nisso entendido caso de doença irreversível que comprometa sua cognitividade e/ou consciência, cessando o prolongamento dessa sub-vida, após entendimento de pelo menos três dos médicos” por ela indicados.

Em suma, argumentando com o princípio

13 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 98.

da dignidade, a requerente, em sã consciência e no gozo de sua saúde física e mental, alega que a medicina e os hospitais em geral vêm praticando o denominado ‘tratamento fútil’ naqueles casos em que já iniciado o processo de morte, o qual não busca curar a pessoa, mas sim prolongar sua vida a qualquer preço, de modo paliativo, muitas vezes com perda volitiva irreversível, o que seria incompatível com seu desejo de morte digna.

Alega que necessita de provimento jurisdicional em razão da possibilidade de vir a perder sua volitividade e por isso não poder mais expressar esta sua vontade de não receber referido tratamento fútil.

A requerente juntou documentos.

O Ministério Público não se interessou pelo caso.

A requerente foi ouvida em interrogatório.

É o relatório. Fundamento e decido.

Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, em que ausente qualquer conflito de interesses.

O que se constata no pedido deduzido na inicial, é que a requerente, em pleno gozo de sua saúde física e mental, conforme documentos médicos juntados, se apresenta em Juízo como pessoa humana dotada de intensa vontade de viver e de celebrar a vida, como sempre fez em sua vida pessoal, familiar e profissional, mas que não vê sentido algum em, no futuro e eventualmente, quando e se vier a se encontrar já privada de sua energia vital e com sua volitividade comprometida, quem sabe acamada em algum hospital, ter sua vida prolongada artificialmente, mediante o denominado “tratamento fútil”, que não objetivaria a cura, então impossível, mas apenas algum alívio temporário, atrasando o resultado morte

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inevitável.

E depois de muito refletir a respeito do tema, que foi discutido com seus familiares, amigos, advogados colegas e juristas, resolveu por bem a requerente pedir a chancela estatal para sua vontade de não receber o aludido tratamento, se observadas as circunstâncias de irreversibilidade do processo de morte iminente e de ausência de cura para o mal que vier a ter, o que deverá ser aferido ao menos por três médicos, dentre aqueles listados na inicial e que bem conhecem seu estado de saúde.

Na análise do pedido, cabe, de plano, afastar qualquer ideia relacionada à eutanásia, porquanto não se pretende a morte, obtida mediante intervenção humana, mas sim a vida, com toda a sua dignidade, evitando-se apenas a positivação de procedimentos médico-hospitalares que sabidamente nenhum resultado obterão quanto à recuperação da saúde e reversão do quadro mórbido.

Trata-se, na verdade, de ortotanásia, ou seja, permitir, por inação, que a morte sobrevenha no momento certo, em que nada mais poderia ser feito, do ponto de vista humano e da Medicina, para reverter o processo de extinção da pessoa, a não ser as medidas paliativas combatidas pela requerente. Em outros termos, é da vontade dela viver e, quando chegar a hora de morrer, que esta sobrevenha nem antes, nem depois (distanásia), mas no momento certo.

Considerando os aspectos legais e culturais envolvidos, inclusive o envolvimento de crenças, porquanto a medida tem a ver com o constante dualismo vida-morte, é forçoso reconhecer a presença das condições da ação, sobretudo do interesse processual, uma vez que a decisão de se ministrar o ‘tratamento fútil’ costuma ser tomada pelo médico junto com os familiares do paciente, sem consultar este, já privado de sua consciência. Com a presente medida, a reque-

rente pretende ser mais que um simples objeto do tratamento, mas sim pessoa humana ainda dotada de dignidade e com capacidade de ter manifestado sua vontade a respeito da questão, ainda que em momento anterior ao seu estado terminal.

E para que referida manifestação de vontade seja conhecida por todos e aceita como ato jurídico válido, não apenas em seu aspecto formal, mas também e especialmente com relação ao seu mérito, emerge o interesse processual em se obter a manifestação estatal ora exercitada.

O tema ortotanásia não é novo e já foi objeto de disputa judicial. O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1.805/2006, publicada no DOU em 28/11/06, disciplina os critérios para a prática da ortotanásia “na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis” e dá permissão ao médico para “limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente (...) respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.” O Ministério Público Federal impugnou a validade da resolução, em ação civil pública, mas a Justiça Federal reconheceu a legalidade da resolução e julgou improcedente a ação, ressaltando que o próprio Ministério Público, autor da ação, alterou seu entendimento e ao final se manifestou favoravelmente à resolução (autos nº 2007.34.00.014809-3, da 14ª Vara Federal, do Distrito Federal).

Deste modo, é certo que a comunidade médica aprova a prática da ortotanásia.

Em ocasião mais recente (2012), o mesmo Conselho Federal de Medicina foi mais adiante na questão ligada à autonomia da vontade do paciente e editou a Resolução CFM nº 1995/2012, que dispõe sobre diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, definidas como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que

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quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”

Consta em tal resolução que, “nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou se expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.”

Uma das justificativas constantes da exposição de motivos da resolução em análise menciona que “um aspecto relevante no contexto do final da vida do paciente, quando adotadas decisões médicas cruciais a seu respeito, consiste na incapacidade de comunicação que afeta 95% dos pacientes (D’Amico et al, 2009).”

A Lei nº 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece, como princípio, a “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral.”

Se o atual estágio da Medicina brasileira – e de vários outros países – é francamente favorável à manifestação prévia de vontade da pessoa com relação à ortotanásia, bem é se de ver que a requerente não deixou qualquer dúvida de que se trata de vontade refletida e discutida com seus próximos (família, amigos e profissionais da Medicina e do Direito) ao longo de dois anos. Os argumentos que ela mesma, como advogada, lançou na inicial reflete a maturidade de sua vontade, a qual foi pessoalmente constatada por este magistrado, durante o interrogatório.

Por fim, a respeito da legalidade da vontade por ela manifestada, não é difícil concluir-se, após a distinção entre eutanásia e ortotanásia, mais acima realizada, pela conformidade do ato aos princípios constitucionais que

regem nossa convivência.

Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana vem afirmado logo no artigo 1º, do texto constitucional, como fundamento da república. Significa isto que a vida humana, também tutelada pela Carta Magna, é direito a ser exercido com a dignidade proclamada. Aliás, outro direito fundamental é o de que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, III).

Destarte, a vontade da requerente, de viver com dignidade até seus últimos dias e de não receber tratamento “fútil”, que no mais das vezes não passam de gritantes agressões contra a pessoa, em inúteis terapias que nenhuma esperança trazem em termos de cura, em nenhum ponto conflita com o nosso ordenamento.

Interessante notar que dentre nós já há texto legal que aceita a ideia de “morte cerebral”, a partir da qual órgãos e tecidos podem ser removidos do corpo que ainda vive, para fins de transplante e tratamento, mediante autorização de quem de direito (Lei nº 9.434/97).

Por fim, cumpre mencionar que o segundo pedido deduzido na peça inicial (de não ser obrigada a viver sem dignidade) está expressamente relacionado ao primeiro (ortotanásia) e não pode, de modo algum, ser interpretado como autorização de suicídio ou de eutanásia, ambos vedados pela lei.

De tudo isso resulta que o pedido da requerente comporta integral acolhimento, sem qualquer ressalva, a fim de que a sentença valha como manifestação de sua vontade, até a sua morte, ressalvado o direito de ela própria alterar sua vontade a respeito, seja por via judicial ou não.

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido deduzido a fls. 42/71 para o fim de

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DECLARAR O DIREITO DE OPÇÃO DA

AUTORA de não receber “tratamento médico fútil” que sirva exclusivamente para prolongamento de sua vida, assim definido temporalmente quando da prescrição médica dos profissionais indicados no pedido e de não ser obrigada a viver sem a dignidade prevista na Constituição da República, nisso entendido caso de doença irreversível que comprometa sua cognitividade e/ou consciência, cessando o prolongamento dessa sub-vida após entendimento de pelo menos três médicos indicados no pedido.

Expeçam-se os alvarás pleiteados na inicial.

Custas, pela requerente.

PRIC.

São Paulo, 28 de junho de 2013.

Juiz de Direito Dr. Alexandre Coelho

Como se pode notar, o Magistrado, confrontado com decisão tão extremamente relevante, despiu-se de seus credos e convicções para, de maneira absolutamente imparcial, julgar procedente a lide proposta, possibilitando à Requerente a satisfação de sua vontade prévia.

De fato, superou questões importantíssimas já travadas neste artigo, como a suposta falta de interesse de agir e carência da ação, para verificar que tudo que a Requerente desejava era o cumprimento inequívoco de sua vontade, formada após anos de discussão e aprendizado, de forma intransponível, ou seja, acobertada por coisa julgada e impassível de combate ou revisão.

Trata-se, enfim, de uma superação do Paternalismo

Estatal e Judiciário, de maneira a se efetivar a volitividade absoluta do indivíduo, desde que este – tal qual o caso – não viole qualquer legislação.

Consagra-se, com acerto, a supremacia dos direitos de liberdade, vida digna e livre arbítrio acima de qualquer noção religiosa ou filosófica de qualquer sorte, garantindo-se a opção de escolha de cada um para decidir, desde que fundamentadamente, sobre sua vida – e, por que não, sobre sua morte.

9. Essa Questão Além Fronteira (Eutanásia e Morte Assistida)

Na Suíça desde 2001 é permitida a morte assistida, considerada lícita pela compaixão e desse que haja ciência e autorização diante de uma doença terminal. E de forma, extremamente avançada, até casos de portadores de doenças mentais, que tenham volitividade, podem praticar.

A Belgica e Holanda legalizaram a questão, em 2002, sendo a exigência sofrimento físico ou psicológico. A Holanda inclusive autoriza de menores de 12 anos, com autorização dos pais.

Luxemburgo permite, da mesma forma, desde 2009, sempre havendo necessidade de manifestação consciente e sofrimento incurável.

Observem que há uma timidez para aceitar a volitividade humana, sempre numa arrogância incrível do Estado sobre a pessoa.

Reino Unido, em 2015.

Canadá desde 2016, de forma mais liberal, exigindo somente a expressão da vontade e em casos de sofrimento físico e mental.

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Hoje, nos EUA, 5 Estados permitem, Oregon, Washington, Vermont, Montana e Califórnia.

O Estado de Vitoria da Austrália, desde 2019.

Na América do Sul, temos a Colômbia, desde 2022 a autorização, para suicídio assistido.

10. CONCLUSÃO

Conhecemos a dificuldade que o tema traz na intimidade de cada indivíduo. Por outro lado, conhecemos o drama das famílias que passam por isso, tendo que lidar com um ser humano nessas condições.

E, independentemente do grau de parentesco do ser humano que encontra-se em tal condição, filha(o), esposa ou marido, tia(o), prima(o), o drama persistirá até a morte natural, se não houver, no mínimo, conversa prévia.

Assistimos os familiares conscientes terem de lidar com a miséria humana, no sentido de ter – infelizmente – (i) condições materiais para suprir a(o) doente, (ii) dar assistência aos cuidados básicos de alimentação e/ou higiene, (iii) da perda da memória emocional da história daquele ser humano, pois não há mais interatividade, conexão.

E, inevitavelmente, a manifestação, naquele momento, de que não desejaria isso para sua própria vida.

Tudo por conta de um egoísmo emocional de não querer pensar no assunto e nem prevenir aqueles que, provavelmente e sem poder de recusa – ante a inequívoca responsabilidade pelo incapaz previsto na legislação cível – terão de cuidar desse assunto, que pela intimidade deveria ser cuidado por cada um.

Que pai ou mãe em sã consciência quer ser motivo impeditivo da vida do descendente por ficar ele atrelada a isso e não poder decolar ou cumprir seu papel da maneira como gostaria?

Obviamente que mesmo sabedor disso, cada qual é livre para tomar sua decisão, que deve ser respeitada inequivocamente. Mas que esta tem que ser pensada, comunicada e planejada é fato inconteste, não podendo se aceitar como automático o desejo de prolongar inutilmente sua vida.

Tudo o que se deseja é que todas as pessoas, com o conhecimento e esclarecimento necessários, e imbuídas de inequívoca certeza após o conhecimento de todos os fatos – inclusive da possibilidade de poder interromper este tratamento fútil – tome a decisão que mais lhe aprouver.

Boa sorte a todos em suas decisões.

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Edição 43 Ano 2023
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