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AO VENCEDOR, AS BATATAS? MACHADO DE ASSIS EM SALA DE AULA.................................................................... Francisco Hemerson Sampaio de Sousa

AO VENCEDOR, AS BATATAS? MACHADO DE ASSIS EM SALA DE AULA

Francisco Hermeson Sampaio de Sousa 1

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RESUMO

Este texto consiste no relato de uma experiência pedagógica desenvolvida na Escola Estadual de Ensino Médio Irmã Dulce, escola localizada em Parauapebas no sudeste paraense que atende alunos do Ensino Médio Regular. As atividades foram desenvolvidas na disciplina Língua Portuguesa no ano letivo de 2019, através de um projeto de leitura desenvolvido pelo professor com turmas do primeiro ano do Ensino Médio, que consistia na leitura integral da obra Quincas Borba do escritor brasileiro Machado de Assis. Na coleção didática escolhida para ser trabalhado as opções de leitura para as turmas de primeiro ano eram reduzidas, por isso montou-se o projeto que culminaria na apresentação de um seminário da obra. O trabalho oportunizou a leitura atenta e a compreensão de uma obra clássica da literatura brasileira, que expõem dilemas éticos e sociais. Palavras-chave: Língua portuguesa. Leitura. Literatura.

1.

INTRODUÇÃO

Vivemos em uma sociedade pautada pelo imediatismo, rapidez das informações, digitalizada, informatizada, célere e visual, cenário que inviabiliza, na maioria das vezes, a formação leitora proficiente. Observei que o prazer da fruição da leitura literária não está nos planos dos alunos da era digital; para desmistificar esse paradigma escolhemos a obra Quincas Borba de Machado de Assis para analisarmos como a literatura apresenta os comportamentos e as relações sociais estabelecidas na sociedade imperial e que, não obstante, pode ser observada também na atualidade.

O livro é de domínio público, a maioria dos alunos optou por baixa-lo em PDF, outros decidiram comprar o livro físico. A aceitação positiva do projeto foi fator decisivo para compreendermos o déficit de projetos de leituras literárias e como a escola e toda a sua estrutura deve promover práticas de incentivo à leitura, o professor, como mediador deve suscitar a curiosidade sobre a obra e contextualizá-la à realidade histórica e social dos alunos. A ausência da experiência estética que a literatura promove e a necessidade de formar leitores literários e autônomos foram os elementos que impulsionaram este projeto. Uma vez que

para Cândido (2004) a Literatura é um direito humano que todos têm, mas avalio que poucos o utilizam por falta, possivelmente, de mediação e promoções de atividades e projetos. Possibilitar o acesso esse direito aos meus alunos foi fator determinante na escolha da temática, do autor e da obra.

Professor da disciplina Língua Portuguesa na Escola Estadual de Ensino Médio Irmã Dulce, primeiro e segundo anos do Ensino Médio. Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa. E-mail: h.sampaio2@gmail.com

O produto final do projeto foi a de apresentação de um seminário, onde os alunos expressaram oralmente, em grupos, as percepções interpretativas dos capítulos para o público escolar, isso permitiu desenvolver habilidades de oratória pública, alguns alunos, com dificuldades nesse ponto apresentaram muito bem, transpondo barreiras como a timidez, dicção, expressões e entonação. A Escola Estadual Irmã Dulce, localizada no município de Parauapebas no Sudeste do Estado do Pará, atende alunos no Ensino Médio Regular em três turnos: manhã, tarde e noite. O projeto foi desenvolvido no turno da manhã com as turmas da Primeira Série do Ensino Médio. Os alunos deste turno caracterizam-se pela faixa etária entre 15 e 17 anos, oriundos de famílias de classe média e classe média baixa. Pela sua localização em uma área central e urbana, atende a comunidade de vários bairros em seu entorno. Ao todo são 1.345 matrículas ativas, destas 549 apenas no turno da manhã distribuídos em 32 salas de aulas. Dispõe de recursos tecnológi

cos como projetores e equipamentos de som, além de uma biblioteca com bons acervos de livros da literatura nacional e internacional. A maioria dos alunos vem de escolas públicas municipais, porém, há os provenientes de escolas da rede particular de ensino, tive a possibilidade de conversar com alguns pais ou responsáveis por alunos que participaram do projeto, teceram elogios à escola, responsáveis por alunos que, inclusive moram distantes da unidade de ensino, mas que se deslocam diariamente, mesmo havendo outras escolas mais próximas.

2. TEMA DO RELATO DE EXPERIÊNCIA

Quincas Borba como objeto de estudo promove o desenvolvimento de competências que ajudam a compreender a língua como fenômeno geopolítico, histórico e social na medida em que o aluno-leitor é exposto a uma realidade em que ainda havia o regime escravagista no Brasil, conhecendo um lado negativo de nossa história e a utilização de termos da língua portuguesa contextuais em uso da época. Promover a prática de leitura de uma obra clássica, redigida com elementos narrativos do Brasil Império, contextualizando-a com dilemas sociais atuais, enfrentados, inclusive, pelos alunos que estão conhecendo seus papeis sociais, a amizade, e as consequências danosas do jogo de interesse, objetificação e coisificação do homem e das relações.

Buscou-se, com o projeto, promover o gosto pela leitura literária com fruição estética, mediando pedagogicamente para que, com a recepção estética da obra, os alunos desenvolvessem autonomia e percebessem os contextos atuais presentes na interpretação de uma obra produzida em um outro contexto histórico e social. A maioria só tinha lido ou ouvido informações superficiais sobre Machado de Assis, avaliei esse fator negativo quando se trata do maior representante do Realismo brasileiro e fundador da Academia Brasileira de Letras, o projeto possibilitou,

também, um (re) conhecimento mais aprofundado de um dos maiores e mais consagrado escritor brasileiro. Quincas Borba foi, nesse projeto, o rito iniciático de leituras de Machado de Assis, promovendo uma compreensão da complexa tarefa de classificar a escola literária de um escritor tão diversificado e com enredos psicológico-realistas.

3.

Objetivo Geral:

Promover o contato com a obra Quincas Borba de Machado de Assis estimulando a apreciação e fruição estética

Específicos:

Compreender as relações entre a obra literária e o contexto social do momento de sua produção, situando, também, aspectos atuais. Reconhecer os valores intrínsecos e extrínsecos de uma obra literária. Conhecer o escritor e fundador da Academia Brasileira de Letras Machado de Assis e suas produções. Interpretar as nuances do realismo psicológico machadiano. Apresentar um seminário sobre a obra lida.

4. JUSTIFICATIVA

A partir de uma pesquisa qualitativa em que os alunos responderam sobre as práticas de leituras, e o resultado demonstrou que poucos tinham alguma relação com o hábito de ler, a fim de minimizar esse dado, e com o intuito de oportunizar aos alunos a experiência com o texto literário para além de leituras pautadas em fichas avaliativas ou periodizações sobre a história da literatura, apresentei a proposta em abril de 2019 por meio de apresentações em formato de slides sobre o autor, a obra, personagens, elementos do enredo, data da publicação do primeiro original. Conforme pontua a competência específica 4 da BNCC:

Compreender as línguas como fenômeno (geo)político, histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como respeitando as variedades linguísticas e agindo no enfrentamento de preconceitos de qualquer natureza. (Base Nacional Comum Curricular, Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017. p. 490) A contextualização histórica contou com a participação do professor de História para explanar o período histórico da narrativa, nesse contexto os alunos conheceram o período histórico de produção da obra e as especificidades da linguagem da época.

METODOLOGIA

A idealização da implementação de um projeto de leitura partiu após uma análise do li

vro didático de Língua Portuguesa Novas Palavras da Editora FTD. Na reunião de acolhida dos novos professores do concurso C-173, nos quais eu me incluía, ao analisar o suporte didático que me acompanharia, junto aos alunos durante o ano letivo de 2019. A avaliação inicial foi a de que o livro continha um arcabouço teórico interessante, com explicações referentes aos gêneros e estruturas textuais e literárias, porém avaliei que a parte literária não contemplava propriamente um projeto de estímulo à leitura, pois havia apenas fragmentos sem uma contextualização mais abrangente do autor. O material também trazia à tona excertos de obras literárias, que sempre fora alvo de críticas relacionadas à maneira descontextualizadas que os trechos são apresentados no material didáticos. Na prosa literária, entre os excertos de obras, havia Dom Casmurro e as explicitações

sobre a natureza comportamental de Capitu, a personagem central do romance, mas não havia orientações específicas sobre um projeto de leitura da obra completa, pensei, então, em utilizar outra obra. Compreendi que para analisarmos a obra à luz de uma contextualização atual mais adequada à faixa etária e à primeira série do Ensino Médio, julguei junto à coordenação pedagógica que Quincas Borba seria mais compreensível trazendo os conflitos da sociedade burguesa, e os jogos de interesse travestidos de amizade, a ruína social, o desprezo e marginalização do louco, e como Rubião, teoricamente, enlouqueceu na trama. Todas as questões relevantes foram levantadas e apresentadas às seis turmas da primeira série do Ensino Médio, tendo como objetivo aguçar a curiosidade dos alunos em relação à obra e às questões que seriam levantadas durante a leitura. Foi feita, também, uma explanação da filosofia do humanitismo criada por Quincas Borba. Solicitei a confecção de uma camisa para uso pessoal, na frente o rosto de Machado de Assis, atrás a frase “ao vencedor, as batatas”. Quando eu estava de costas para os alunos meu objetivo fora alcançado: começaram os questionamentos sobre o significado da frase. Em todas as ocasiões informava que para a compreensão global dessa frase filosófica, que muito tinha a ver com os dilemas éticos da sociedade de consumo capitalista, seria necessário a leitura e estudo integral de uma obra clássica da literatura brasileira chamada Quincas Borba. Houve resistências a princípio e as desculpas repetitivas de sempre como a falta de tem

po, de hábito de leitura no livro impresso, outros já não gostavam do livro digital. A primeira foi superada com o trabalho de apresentação da obra, a segunda não foi difícil no sentido de que a obra está em domínio público, muitos baixaram, para mitigar a terceira dificuldade, o grupo que não se habitua a lê em telas virtuais, compraram o livro físico em livrarias pela cidade, convém ressaltar uma feliz coincidência: no período do projeto uma livraria estava dispondo obras cujos valores variavam entre dez a vinte reais, entre eles estava Quincas Borba.

Todas as aulas de Língua Portuguesa, de abril até até setembro, foram voltadas para as atividades de compreensão e interpretação de capítulos do livro, rodas de conversas a respeito de dúvidas relacionadas à leitura. Trechos e capítulos foram utilizados para as aulas de análise linguística e figuras de linguagem, além do peculiar estilo realista machadiano. Em agosto, foram formados grupos de até, no máximo, 5 alunos, cada grupo recebeu um capítulo, ou até três, dependendo da extensão dos capítulos que são, em sua maioria, breves em Quincas Borba. Os grupos deveriam estudar esses capítulos de forma aprofundada para extrair as interpretações sociais, históricas, filosóficas e, no seminário em setembro, final do projeto, apresentar ao público escolar. A um grupo específico coube a tarefa de fazer uma apresentação global da obra em forma de resumo e resenha. Usou-se, a pedido dos próprios alunos, como suporte visual, cartazes por eles confeccionados, que contavam com gravuras desenhadas por alguns alunos desenhistas, que retratavam

cenas imaginadas por eles naquele capítulo.

6. RESULTADOS ALCANÇADOS

Aos alunos da primeira série do Ensino Médio estava a difícil tarefa de compreender que o ato de ler não é mais apenas um exercício de decodificação de palavras, eles como leitores proficientes, deveriam lançar-se além das margens do livro, interpretando o significado da leitura, saindo do lugar-comum. Para mim, a leitura dos capítulos iniciais seriam determinantes para o sucesso do projeto, isso passaria pelo exercício de compreensão da filosofia do humanitismo, criada por Quincas Borba e repassada a Rubião. O capítulo VI onde Quincas Borba conta de for

ma tragicômica a morte de sua avó arrancou alguns risos e expressões de reflexão. A leitura desse capítulo trouxe a primeira de muitas reflexões relacionadas à frase “ao vencedor, às batatas”, como se pode observar no trecho explicativo:

Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (ASSIS,1994, p.6)

Aqui, a maioria percebeu o caráter frio e realista de uma sociedade materialista e consumista, a criatura é deixada de lado, suas aspirações, seus objetivos são utilizados para justificar conflitos, ou seja, a supressão de uma vida ou de várias seria justificável quando do ponto vista da conservação de outros. O humanitismo traz à tona uma reflexão atual da selvageria competitiva da atualidade. Questionários foram feitos sobre a opinião dos alunos a esta tese, que demonstrou, qualitativamente, que é um dilema ético difícil de ser encarado, mas existente na sociedade atual, como nos concursos públicos, nas entrevistas de seleção de emprego, em processos seletivos variados como o ENEM, vestibulares. Ao vencedor, quem consegue passar, as batatas. Acompanhamos assim, durante cinco meses, a história que começou com dois homens e terminou apenas com um: Rubião. A esta personagem pedi total atenção em relação aos seus diálogos e, principalmente, ações. O objetivo principal era analisar à luz dos contextos atuais, se

o fim de Rubião não seria o mesmo. Com o passar do tempo, já no segundo mês, os alunos foram percebendo que Rubião era um homem ingênuo e de fraco caráter passional. Mas, muitos não precisaram de tanto tempo para percebê-lo. Rubião, que era uma espécie de enfermeiro do já moribundo Quincas Borba, após a morte deste, torna-se herdeiro universal. Herda uma fortuna tão grande em fazendas, apólices, escravos, casas na Corte (Rio de Janeiro), investimentos, que o narrador não estipula o valor ao certo. Depois de alguns questionamentos de ordem pessoal (a única cláusula era cuidar do cachorro do falecido como se gente fosse), Rubião recebe o testamento e abandona a pequena cidade de Barbacena. A cena do diálogo do trem foi a que causou maior perplexidade entre os nossos alunos

leitores. Rubião confessa a um casal de desconhecidos recém-apresentados dentro do trem que recebera uma herança incalculável. Essa confissão “brilhou os olhos de Cristiano Palha”. O desenvolvimento do enredo apresenta aos alunos, e os prepara para a série seguinte, uma das principais características de Machado de Assis: o realismo psicológico. Ao criticar a hipocrisia e os costumes sociais vigentes na sociedade carioca ainda sob o Regime Imperial, Machado revela ações que colocam o ser humano, e aqui podemos incluir os nossos alunos leitores, em situações de reflexões éticas e morais. Moralmente o comportamento de Cristiano ao fazer com que Sofia finja um romance é um escândalo hoje, como teria sido a recepção crítica naquele momento da sociedade conservadora? As falsas amizades que se aproximam para tirar vantagem social, moral, prestigiosa e financeira de alguém? O refúgio no misterioso submundo da loucura? A internação de pessoas em manicômios, o desprezo dos “amigos” depois de terem feito Rubião perder tudo, a morte mendicante de Rubião e do cachorro.

Chegamos ao final do projeto de leitura com muitos questionamentos do comportamento social apresentado por Machado de Assis em Quincas Borba. Dividimos as turmas em grupos, cada grupo recebeu a um capítulo do livro para apresentar um seminário onde deveriam explicar

as suas interpretações a respeito de cada capítulo isolado. Aos desenhistas solicitamos que desenhassem gravuras a respeito da leitura. A avaliação consistiu na apresentação em um seminário sobre a obra, como culminância do projeto, com o qual avaliei o desempenho interpretativo dos alunos, a expressividade oral, as gesticulações, entonações, para isso, o professor de Artes e expressões corporais ajudou de maneira significativa. Foi um projeto literário em que, a convite, integrei dois colegas de componentes e áreas diferentes: História e Artes. Os alunos puderam, também, compreender o processo interdisciplinar na escola, que os componente não estão isolados, mas se comunicam entre si. Abaixo alguns registros do seminário.

Imagem 1 –Aluna apresenta sobre as características de Sofia Palha

Fonte: Acervo do projeto

Imagem 2-

Aluno apresenta sobre Rubião

Fonte: Acervo do projeto

Alunos explanam sobre a frase que batizou o projeto.

Fonte: Acervo do projeto

Imagem 4-

Grupo de alunos discorrendo sobre os dilemas de se confiar demais nas pessoas.

Fonte: Acervo do projeto

Imagem 5-

Aluno apresenta sobe Quincas Borba

Fonte: Acervo do projeto

Grupo de alunos que encerrou as apresentações.

Fonte: Acervo do projeto

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Ed. Nova Aguillar. Rio de Janeiro, 1994. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/ UNDIME, 2017. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul., 2004. p. 174. Novas Palavras 1º ano. Emília Amaral et. al. 3ª Ed. São Paulo: FTD, 2016 (Coleção Novas Palavras). Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Língua Portuguesa. Ensino Fundamental. Terceiro e quarto ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998.

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