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Obras selecionadas com Menção Honrosa Conselho Editorial
1º lugar | Robinson Silva Alves Anônimo | Coaraci-BA
Sou filho das ruas Amante da madrugada A estrada meu caminho O verso minha jornada
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Nas palavras Descubro mundos A intensa imaginação Descobrindo universos A infinita inspiração
Combato dragões Enfrento a maldade Sou príncipe dos sonhos Pássaro da liberdade
Sou também um menino Um nobre sonhador Buscando a musa O eterno amor
Enfrentando espinhos Os mares da dor A procura da rosa Eterna flor Navegando nas ondas Furiosas da paixão Meu coração é bussola Rumando a emoção
Vivendo a vida Anônima e incerta Sou todos Sendo um só Sou poeta.
2º lugar | Paulo Roberto de Oliveira Caruso Os Pilatos da Sarjeta | Niterói-RJ
Ergueram pontas rijas de concreto em rica capital cá no Sudeste em busca de um levante, o mais completo em face do mendigo: a podre peste!
É tido como peste... o mal abjeto! O pobre ser humano e o que lhe reste –seus trapos! – são um signo indiscreto de tudo que nas ruas não nos preste!
Assim pensam alguns ditos cristãos, que lavam suas mãos como Pilatos o fez covardemente ante Jesus!
Mas é numa sarjeta que essas mãos se lavam – e se sujam... – podres atos que matam todo o tato e toda a luz...
3º lugar | Gisela Peçanha |Sara Poesia | Niterói-RJ
Havia, o mundo dolorido As rugas da minha face, o pranto escondido; Por isso, me tornei poeta: A acalmar as correntezas fundas Blindando o caos do coração ferido... E, no desague dessas perdas tantas Fui montando (letra a letra) Um livre mundo, longe das sombras.
Palavras, linhas, estrofes... Rimas, devaneios, pontos... Floradas de mim mesmo, brotando. Pérolas cultivadas, meu âmago.
Hoje não me açoito nem me encerro: Sou nascitura, Sou fecunda, Pétala desnuda.
Pena que tem vida e me revela
— Eu continuo... Pois, esta é a dor de um parto escrito Sangue que amamenta o meu delírio Placenta das lágrimas comovidas. Berço do embrião (de vida viva!) Nascendo do meu ventre trágico, grávido.
4º lugar - Sandra Mónica dos Santos Ramos Maldita Luxúria...! – Charneca da Caparica, Portugal
Dizem por aí…. Tanto que se escreve, se sente e se diz … uma comoção inclemente e inusitada. Apelidam-me de egoísta, de indolente, presa a uma “vadia” soberania, à liberdade sorrateira que no frenesim, quase se escapuliu por entre os dedos da minha mão.
As oferendas e recordações, metamorfoseei-as em pó, que nem tão pouco se insinuam no meu presente. Cada momento meu, anuncia o caminho que devo percorrer, sem embargo das circunstâncias. Como é glorioso experimentar a conjuntura livre dos meus dias!
Vivo de sonhos, sim! Mas não de contos de fadas, porque esses só existem na índole dos demais, sem guarida no meu leito. Estranha esta minha conduta, vislumbre amargo e descrente que chega a ser horripilante. Há quem viva no encalço de um “amor”, de dois, de tantos outros, meros “entulhos” disformes, que não passam de “estupefacientes” para egos adulterados. Perdoem-me, mas não sinto medo da solitude, sinto sim repulsa da morte da minha liberdade. Na fundura do meu carácter, quiçá, desconheço “aquele” que – dizem – rasga a pele, arranca a alma e deixa-nos sem chão. Não, recuso o desígnio do equilíbrio da minha verticalidade.
Não sei como viver sem o meu mar e sem a areia da praia. Denego o pulsar de um relógio que me dite regras… Generoso o sentir da frescura do soalho, o voo descendente no meu amparo, o soluçar das notas musicais e a musicalidade das minhas estrofes poéticas. Alberguei “sem-abrigos”, mas sem estacionamento privado. Passagens efémeras, todas elas, “compelidas” para fora do meu batel. E… aqui cheguei… isenta de infortúnios, crente devota da hilariante liberdade, solta de correntes e da opressão do meu “Eu”. Apenas concebo e aceito que o “deixar” ir, é seguir, é atentar quando o coração deixa de se fazer ouvir.
E dizem por aí... “AMAR é deixar ir…”
5º lugar - Fernando Manuel Bunga As Estações do Ano - Uíge, Angola
Dia de São Francisco –O gato afagado na nuca fecha os seus olhos
Mosquito que zumbe –Esmagado com um tapa na cara de alguém
A sombra do rapaz que apanha o figo no chão –Sol da manhã
Ventinho de inverno –Barco de papel rodopia antes do naufrágio
6º lugar - Carlos Eugenio Vilarinho Fortes Palavra - Palmeira das Missões - RS
passar da palavra à poesia
frágil poesia a fremir
em raras letras desavisadas
rápida se vai
a poesia se esvai
junto gravetos
secos
para começar o fogo
quase não uso adjetivos quase não uso conceitos mas achas
fogueira fogo cinza
poeira
poeira da palavra
7º lugar - Geraldo Ramiere Oliveira Silva Suicidadores – Planaltina-DF
Na primeira vez que tentei me matar Eu era apenas um adolescente ainda Tomei uma mistura de remédios
Florbela Espanca então surgiu Dos meus lábios sugou o veneno E faleceu em meu lugar
Na segunda vez que tentei me matar Tinha pouco mais de vinte anos E decidi abrir o gás antes de dormir Foi quando Torquato Neto apareceu Retirando-me de lá rapidamente Morrendo ao me resgatar
E atualmente em poesia sobrevivo Não pensando mais em me matar Contudo, tenho a total consciência Que chegará o dia em que eu precise Salvando algum poeta desconhecido A minha própria vida arriscar Na terceira vez que tentei me matar Era meu trigésimo aniversário Subi na janela do alto de um prédio E quando estava prestes a pular Ana Cristina César puxou-me pela mão Caindo sem que eu nada pudesse fazer
Na quarta vez que tentei me matar Não recordo qual era a minha idade Apontei uma arma para meu peito E ao disparar, não vi Maiakovski Jogando-se na hora bem na frente Agonizando até o fim em meus braços
8º lugar - José Alberto Mar Ponta D´Areia – Porto, Portugal
Estou na Ponta d’Areia (1). Deitado ou sentado à sombra, aí uns 30 e tal graus. O guarda-sol é cor de mangas maduras e eis à minha frente o mar vivo e aceso. Do céu vários azuis luminosos descem naturalmente sobre tudo o que é vida.
À minha volta, o povo espraia-se finalmente no seu domingo.
As crianças vivem à solta por aqui, onde o mar deslaça dia; noite as suas ondas e elas, as crianças, dão cambalhotas e correm chapinhando a água dócil, entre pequenos saltos de quem está mesmo felizmente feliz e quer continuar assim, sem precisar de o querer. Há gazelas morenas, umas a seguir às outras, é difícil acompanhar com a merecida atenção tantos ritmos ondulantes e belos, sob este sol de Deus. Passa uma caipira (2) com o peso dos anos no rosto grudado pelo sal que vagueia pela aragem e com uma caixa transparente no braço leva ovos de codorniz, camarão cozido, umas comidas que outros irão comprar, com certeza.
Olhando para trás, vejo 2 candeeiros públicos ainda acesos, o que não me espanta (pois em Portugal também acontecem estes descuidos) a despontarem entre as cabeleiras verdes das árvores sossegadas e claramente alheadas do assunto. É de lá - dessas bandas - que chegam até aqui aquelas músicas populares, sempre a tocarem as esferas do coração. Muitas pessoas cantam-nas em grupos e alegram-se simplesmente assim.
Um papagaio caiu, tombou mesmo agora a meus pés e reparo que é feito de plástico, que já foi saco de supermercado + uns pauzinhos de coqueiro aliados, e ainda mais agora, o menino já o ergueu no ar e aquela coisinha frágil como Tudo, dá curvas sozinho com a cauda louca sem tino e esburaca o espaço, rodopia veloz e depois cai outra vez no chão aparentemente sólido do mundo e a criança continua a ser criança a brincar e já é muito, tomara eu.
A menina do bar, mini-saia de ganga boa perna, camiseta vermelha desabotoada, bandeja prateada na mão esquerda, já aviou mais umas garrafas de Sol (3) a uns jovens que estão pr’ali num forrobodó evidente e regressa ao balcão, esvoaçando um olhar geral pelas mesas dos seus clientes.
Um bandozinho de sabiás-da-praia passa à frente do meu olhar a rasarem o grande areal, com cadeiras e mesas azuis, vermelhas e brancas e desaparecem numa curva uníssona do tempo, o que é feito deles? pensei, enquanto uma outra parte de mim se regala a misturar as cores do cenário em jogos infindáveis.
Lá adiante, lá mesmo ao fundo, onde o céu se afunda numa tira horizontal de água mais cintilante no brilho, faz-me lembrar que amanhã irei a Stº António de Alcântara, por onde um touro (4) passeia a sua estrela de cinco pontas na testa carimbada, em noites de lua cheia.
(1) Praia localizada a cerca de 4 km do centro da cidade de São Luís, muito movimentada principalmente aos fins de semana, pela população local. (2) Pessoa humilde do campo, da roça, do interior do Estado. (3) Marca de cerveja brasileira. (4) Segundo uma interpretação livre de lendas populares brasileiras, na ilha dos Lençóis, D. Sebastião mora num palácio de cristal que se ergue no fundo do mar próximo à ilha considerada encantada. Consta que o rei vagueia pela praia, durante a noite, na forma de um touro com uma estrela de ouro (ou de prata), na testa. Se alguém conseguir atingir a estrela e ferir o touro, o seu reino será desencantado e D. Sebastião poderá regressar a Portugal. - Há quem relacione estas lendas, com a possibilidade do “5º Império”. (São Luís. Estado do Maranhão. Brasil)
9º lugar - Ayrla Victória G. da Silva A Noite me pingou no olho – Teresina-PI
Hoje bebi da escuridão torpe de uma noite quente qualquer do mês de agosto. Inebriante. Sozinha, andava como que sem norte pelas ruas desertas e poeirentas. Liberdade, a chave, o centro do furacão que instalava sem permissão no meu interior – ele mesmo. Bagunçado e sem rumos e destinos.
Mas nessa noite eu não queria saber de rotas mesmo. Elas não me levam mais a lugar algum senão a minha solidão mais escura que a noite quente qualquer do mês de agosto. E eu fui andando cada vez mais sedenta pelo liquido da liberdade guardada no corpo das estrelas que pendiam como luzinhas de natal a me cegar. Tão delicioso, eu pertencia à rua como o vento que cortava meus braços pertencia à terra; vento, vento, vento. Leve e pesado que me carregava com ele. E a noite era tão gostosa que eu bebi até mesmo o céu preto. Abria os braços, respirava fundo, comia cada segundo com a fome de quem está em jejum desde a manhã do dia anterior. Fome funda, grossa, sem alarde. E foi sem alarde que eu me respirei tão fundo a ponto de sentir as costelas saírem de mim. E tirei os óculos também para que eu pudesse, quem sabe, por desvio natural das coisas, respirar aquele ar tão bom com os olhos mesmo.
Quando finalmente alcancei minha rua, de súbito, pessoas. Não me esquivei, continuei sentindo-me uma parte do mundo como os bigodes fazem parte de um gato ou de um homem de meia idade. Abri, mais uma vez, os braços na intenção de me sentir. Sentir viva? Quem sabe se já não estou mais uma filha de Brás Cubas? Ai aconteceu: oi, coração! Como você cresceu!
Quem era? Não acredito. A mãe daquele menino encapetado que estudou comigo no sexto ano do ensino fundamental. Que saudade dela, como ainda lembrava-se de mim? Oi, tia, que saudade, como você está? Ainda se lembra de mim? Eu estou bem sim, obrigada. Que bom, tia, que legal te ver. Sim, tia, eu moro aqui mesmo. Sim, tia, sou professora mesmo, pois é. Sim, tia. Que Deus te abençoe também, um abraço! Com certeza a memória do dia em que eu bebi o céu e senti o vento dentro das costelas vai perdurar porque isso ainda é reflexo das refeições que não foram feitas porque a adrenalina não permitia, já que, mais cedo, eu fui à fonte da juventude, banhei-me nela e lavei o rosto me restituindo a jovialidade, vontade de sorrir e de viver que há meses não experimentara. Mas, quem sabe, outro dia narro. Não se morda na espera. É a história do dia em que fui feliz. A noite me pingou no olho. Consegui respirar, ver a mim mesma no espelho do céu e cantarolar as melodias entaladas pelo medo. Vivi!
10º lugar - A Patologização da velhice. OMS quer colocar mosca na nossa sopa Arnaldo Toni Sousa das Chagas – Santa Maria-RS
Pasmem! Mas a Organização Mundial da Saúde decidiu incluir o termo "velhice" como doença no CID (Classificação Internacional de Doenças). Com essa designação, que passa a valer a partir de janeiro de 2022 - de velhice como doença -, todo e qualquer idoso passará a ser enfermo. Ao se olhar no espelho e perceber que os cabelos começam a ficar grisalhos, não terá mais sentido afirmar: “estou entrando na velhice”, mas sim, “estou ficando doente”. Assim, a casa dos 60 não será mais a casa da velhice, mas da "doença”.
Ora, a velhice não tem álibi, é um fenômeno natural, contínuo, e se designada como “doença”, será similar ao alcoolismo, uma patologia grave, progressiva e fatal. Contudo, no alcoolismo, quando o paciente para de beber, a doença estaciona, na velhice, ao contrário, não. Ninguém consegue parar de envelhecer, no máximo, seguindo certos cuidados e orientações, é possível retardar o envelhecimento. A pessoa senil quando considerada doente tem que lidar não apenas com a velhice e finitude, mas com o estado de doença, de anormalidade. Ser idoso portanto, não será mais um processo natural da vida, pois a doença é um fenômeno anômalo, antinatural.
Estar doente não significa ser doente. Precisamos aceitar ou tolerar a velhice, a doença não. Afinal, será a idade o principal critério para o diagnóstico “dessa doença”? Isso não sabemos, mas o que está claro é que este diagnóstico é pessimista, cruel e ameaçador, além de ser, no mínimo, ética e moralmente equivocado. A OMS está querendo dar uma rasteira nos idosos, certamente. Mas afinal, porque estragar essa fase importante da vida do ser humano, transformando-a em doença? Com essa mudança entendemos que o normal, o saudável, será não envelhecer, e nos esforçar para permanecermos eternamente jovem.
A fabricação dessa doença certamente envolve interesses espúrios, econômicos, justamente porque esse mundo, do “deus mercado” e de consumo exorbitante, seres humanos se transformam em coisas, objetos de uso e de consumo, logo, como muitos idosos não são mais tão produtivos, como o referido sistema demanda e impõe, acabam taxados de doentes, que precisam de tratamento. Acredito que quem está estabelecendo a patologização
da velhice não seja um cordeirinho. Por trás dessa ideia estúpida, preconceituosa, estigmatizante e desumana, há sempre uma indústria bilionária (farmacêutica, por exemplo) sedenta por oferecer recursos ou artifícios para a sempre sonhada, mas jamais alcançada, “eterna juventude”.
Se essa ideia absurda for acatada, a velhice se apresentará como castigo, uma punição ao ser humano. De um envelhecimento ativo, alegre e feliz, considerando sobretudo aqueles que esbanjam independência, vitalidade e lucidez após os 60, nos transformaremos em doentes tristes, abatidos e fragilizados. Passaremos a enfrentar uma jornada de enfermidade imposta. A palavra “doença” tem origem latina, em que dolentia significa “dor, padecimento”. Será que na velhice seremos obrigados a viver com esse pesadelo? Ora, o que me deixa doente não é ser idoso, mas é ver crianças famintas, famílias inteiras passando por todo o tipo de necessidade, pessoas excluídas, desprezadas, abandonadas, desrespeitadas, violentadas de seus direitos, justamente como agora, com os idosos.
O idoso que pode usufruir da aposentadoria, que está relativamente bem de saúde, tem uma vida ótima, desde que respeite seus limites físicos e psicológicos e não sacrifique o espírito, mantendo a paz de uma vida serena. Na velhice não há mais pressões do chefe, dos colegas, nem as rígidas obrigações que cumpria quando trabalhava. Com o ócio a seu favor esse idoso é capaz de viver muitos momentos prazerosos simplesmente não fazendo “nada”, apenas apreciando a vida, a natureza, a convivência com quem ama. Sobram-lhe muito mais tempo e horário livres. Não precisará constantemente dar satisfações como antes, a ninguém. Pode aprender a dizer não, sem culpa e a enfrentar suas inseguranças, vulnerabilidades e dúvidas com mais tranquilidade. Milhares de idosos que tanto trabalharam, se sacrificaram e ajudaram no desenvolvimento e funcionamento de seu país, a partir dos 60 não são mais úteis para o sistema, porque não produzem como antes. Num mundo perverso onde pessoas são convertidas em peças de uma grande engrenagem, os idosos são estigmatizados, e agora, com essa mudança da OMS, além do peso de se sentirem onerosos para o sistema de saúde, lhes atribuem a categoria de doentes!
Os preconceitos que povoam a população nessa faixa etária são diversos, e por essa razão acredito que tenha faltado cautela e principalmente sensibilidade ao ministro da economia, Paulo Guedes, que considerou um fardo o aumento da expectativa de vida e o
avanço da medicina, apontando-os como a causa da situação precária da saúde hoje no Brasil. “Todo mundo quer viver 100, 120, 130 anos… não há capacidade de investimento para que o estado consiga acompanhar a busca por atendimento médico crescente…”. Afirmações estúpidas e preconceituosas, que ao meu ver decepciona ainda mais quando pronunciada por um ministro, que acredita tanto no Brasil, que tem conta bilionária no exterior, em paraíso fiscal. Fardo é envelhecer num país com pessoas que mantêm esse tipo mentalidade, que não respeitam os idosos, e não desenvolvem políticas públicas decentes para amparar a imensa população que está envelhecendo ano a ano cada vez mais rápido. Como diz o velho provérbio chinês: “Enquanto uns choram, outros vendem lenço”.
Em 25 de novembro eu vou completar 60 anos, portanto “adentrando na minha fase de enfermidade”. Vejam só que interessante! Serei um homem doente. Um doente que malha quatro vezes por semana, que corre de oito a dez km, duas vezes na semana, que dirige há mais de 40 anos, que faz sexo cinco vezes por semana (claro: trata-se de uma mentirinha “machista” para os amigos “machistas”, na verdade são de três a quatro vezes –risos!). Continuando, serei um doente que sempre viaja de motocicleta por todo Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Uruguai, Argentina, que escreve livros de contos, crônicas, romances sobre amor e paixão, e mais outros cinco livros acadêmicos, que toca piano e violão popular e às vezes canta para espantar a saudade e a solidão. Serei o mais novo “doente” que produz roteiro e vídeo para um canal de YouTube, que lê praticamente todos os dias, de duas a quatro horas, que deita às 22h30 e acorda 5h45. Também converso diariamente com a família, amigos e conhecidos, faço análise pessoal há mais de 20 anos, possuo formação psicanalítica, e leio Freud e Lacan, lecionei em quatro universidades, por 20 anos, concluí mestrado e doutorado, me aposentei como auxiliar de enfermagem de hospital público, em unidade psiquiátrica, criei dois filhos, viajo para visitar amigos em outras cidades e regiões do estado, assisto jogos de futebol, e também varro a casa, lavo a louça, arrumo as camas, etc, etc, etc.
Sim, a partir de janeiro poderei ser tratado como um doente e muito do que relatei acima, que já faço, será indicado ou aconselhado para mim. Ora, espero ser um doente saudável, ativo, alegre, esperto. Desejo viver esses últimos anos de minha vida de forma digna. Talvez o sintoma da minha enfermidade seja o gosto que tenho pela vida, o prazer de saborear as delícias que a vida pode
oferecer, mesmo ciente da dor da existência, das perdas pelas quais todos passamos, nossas limitações, fragilidades, fracassos, medos e tristezas. Mas não vou me deixar abalar por isso, nem pelo meu mais novo fardo de ser agora um doente. Lutarei até o fim de meus dias, ou enquanto eu tiver forças, para viver com minha enfermidade, minhas loucuras do jeito que sempre fiz e com a consciência tranquila que não prejudico ninguém, muito pelo contrário, desejo viver cada vez mais com amor e com o coração cheio de afeto. Não será a OMS, com essa ignomínia, que vai colocar mosca na minha sopa, há isso não vai mesmo!
11º lugar - Ediane Brito Andrade Schettini Dezembro – Salvador-BA
Sempre que dezembro se aproxima, se achega em meu peito recordações infindas. Saudade de minha casinha simples, na roça! Saudade da infância, despreocupada! Saudade dos afagos de minha mãe! Saudade de quando o natal era um momento de celebração: na igreja, em casa... (sem TV, eu sequer sabia que no Natal davam presentes).
Dezembro traz-me saudades e esperanças. Saudade de tempos idos. De momentos que foram bem vividos e aquecem, ainda hoje, o coração. Esperança de dias melhores, de saúde para todos, de comida no prato e alegria no peito. Dezembro faz-me pensar nas certezas e nas inconstâncias. Certeza de que Deus existe e de que, em todo o tempo, Ele age em meu viver. Mas, o que há de mais certo na vida é a imprevisibilidade e, consequentemente, as inconstâncias. Podemos (e devemos) fazer planos. Todavia, de coração aberto para aceitar o inimaginável — porque o que imaginamos pode estar muito distante.
Esse ano, quero um dezembro chuvoso. Que seja uma chuva fina. Que lave e purifique cidades, ruas, pessoas, corações. Que carregue o que houver de medo, de insegurança, de infortúnio!
Que dezembro, mês tão querido, seja de celebração, como nos tempos em que minha mãe sorria a me dizer: meu aniversário é bem perto do de Jesus! Que dezembro seja verdadeiro e leve, como o sorriso dos meus filhos; que seja intenso como o amor “do meu amor”! Que dezembro seja portal para fechar esse ano, permitindo-se morrer, para que outro ano nasça: com novas saudades, novas (in)certezas, novas (in)consistências... Novo ser!
12º lugar - Sigridi Borges Aço – São Paulo-SP
Aço
não sou de aço sou vento e cansaço em nuvens me faço num laço sou um pedaço
gosto de abraço danço tal qual bailarina num breve compasso me viro do avesso
torço o braço me expresso num traço
tornei-me um bagaço num real descompasso quebrei-me em prantos virei estilhaço
num lento desembaraço com lágrimas de alegria entrego-me a Ele num sopro me refaço no laço no abraço na fé.
13º lugar - Sanda Armando Sebastião Aprendi – Cazenga, Luanda, Angola
Aprendi... Aprendi com a vida, o tempo inspira-me, momentos fazem-me reflectir, cada alto e baixo, lições, em cada queda, superação,
em cada conquista, o desejo de vencer mais...
Aprendi com a vida, a arte de ser feliz, a arte da aceitação e confiança, a confiança na força motivadora, um olhar à natureza fortalecedora, no comprazer da fé, na esperança e no amor.
Aprendi com a vida... ainda e continuo aprendendo, aprendi e aprendo, as instruções chegam, estou pronto para o que vier, um eterno aprendiz nessa arte, com o Maio não será diferente, nesse trem na sala debrucei-me, confiantemente estou...
a vida é incrível demais pra ser desperdiçada.
14º lugar - Mayara Lopes da Costa Pela lei natural dos encontros- Santos-SP
Nunca entendi uma vida efêmera, que oras está, oras não, um dia é, e no outro já não é mais. Aqui, onde tudo se perde entre o tempo e o espaço. Onde ainda temos que acompanhar e enfrentar esse emaranhado de idas e vindas, porque tudo é passageiro.
Nunca entendi por que existem os finais e as despedidas, as quais demoro a digerir e mal consigo suportar. Se eu pudesse apenas compreender, acho que já seria meio caminho andado. Mas, nunca compreendi como são feitas as contas dos ganhos e das perdas, nem como é cronometrado o relógio dos encontros fracassados e dos acasos.
Quando alguém fosse embora, deveríamos ter a opção salvadora de apertar um botão que fizesse com que nos esquecêssemos da dureza de sua partida. Que nos esquecêssemos como nos sentimos quando nos deixou. Que nos esquecêssemos da ansiedade pela sua demora. E da angústia do brotar da dúvida que corroeria as almas aturdidas que foram abandonadas, eis que ainda indagaríamos se algum dia esse alguém chegaria novamente às nossas vidas. Que nos esquecêssemos da razão pela qual tanto gostaríamos que jamais escolhesse partir.
A não ser que, de repente, já exista esse botão. Talvez já o conheçam, inclusive, e por essa razão parece tão fácil partir sem olhar para trás ou não reviver as doces memórias. Eu queria ter acesso ao botão. Mas, também é bem provável que não teria coragem de apertar, porque talvez seja por esse exato sentimento que valha a pena estar viva. Isso porque, quando sinto essa vulnerabilidade, é quando me sinto humana.
Não sei quais são as leis que regem tudo isso. Mas se eu conhecesse quem comanda todas essas coisas, eu indagaria por que razão ninguém jamais determinara que as relações deveriam ser eternas, nem por que jamais privara qualquer ser humano de estar suscetível aos terríveis erros e enganos que os conduzem aos seus abismos. Perguntaria se ainda que pela lei natural dos encontros, aquela em que ninguém nunca pensou e que eu gostaria de criar, por qual a razão, com base em qual penosa crença, não poderia ser possível priorizar a eternidade dos olhares perdidos, nem a sensação dos abraços tardios, que sempre se tornam meros fragmentos desconexos. Por que razão, por que, por que e por que, nem que pela lei natural dos encontros, nem para teste, nem por tédio, nem para um sonho lindo congelar, nem assim essas pessoas poderiam ser obrigadas a ficar.
15º lugar - Eliel Ferreira de Andrade Eu Te(Ti)Nh@ Inveja de tu que abraça (V@) - També-PE
Não pode abraçar as pessoas
É muita exposição
Tanto sentimento quando dois corpos se acolhem, é um descarrego em conjunto
É muita exposição
É permitido abraçar em ocasiões especiais e os corações não podem se aproximar tanto
É muita exposição
Não pode se expor através dos abraços
Eles dizem
Expor que sente?
Homem não sente
É proibido
Expor vulnerabilidade e sentimentalismo
Afeto interditado
Marcado como aquele menino que sente, aquele menino que faz coisa de menina
Aquele menino que abraça
Eu tenho inveja de tu que acolhe
Eu tinha inveja de tu que abraçava
16º lugar - André Eitti Ogawa Sazões – Florianópolis-SC
Já era meio da estação e os ipês rutilavam vistosos. A brisa que circulava fresca flamejava os guardanapos sobre a mesa.
De um poleirinho baixo um pardal cantarolava sem parar
Duas andorinhas rodopiavam pelo ar.
No banco velho de uma praça trocavam carícias um casal
Ao longe, as roupas balançavam num varal.
No jardim da prefeitura os raios de sol refletiam quentes.
As palmeiras farfalhavam imponentes.
Um velhinho teve um salto em sua quimera: Eis que arrebenta a primavera!
As pessoas, as plantas, os bichos.
Todos carregam as estações dentro de si.
17º lugar - Adilson Roberto Gonçalves Úmido & Humilde - Campinas-SP
A subversão das palavras dita regras
vesgas mesclas
de heterodoxias
(e reescreve pensamentos que na vã mente simples crê, não lê e pouco vê)
Úmido o dizer de uma boca
angustiada e já quase louca de silêncios...
Simplicidade de um verso solto portanto se opõe à humildade de uma humanidade
inexistente.
18º lugar - Margarida Correia Ciclos – Lisboa, Portugal
se da lua me nascem faces, elaboro pinturas de guerra nas mãos cheias de flores por me saber mais do que um sonho
vou tecendo os lençóis onde embalo o sangue derramado ateando o sentir nas chamas ardentes da ferida
que trago no corpo cansado.
no entanto, não me sei mais do que uma letra, um ter de haver mais que a vida
- isso é querer fazê-la grande (e não o serão todas elas?) -
se me descubro no tatear dos outros, cheirando-lhes os ocasos perdidos na pele, é porque (me) encontro (em) sinais ocultos na ventura de uma caravela, um rosto sem âncoras
que traz a promessa de um novo mundo
e a lua (re)volta (n)a face.
19º lugar - Hevelyn Sabrina (Sumaré-SP) e Márcio José (Campinas-SP) Abebé
A feiura do ser humano é não ser humano É esquecer de ver o outro Olhar a ilusão e crer ser verdade.
A feiura do ser humano é querer resolver no grito o que lhe falta em espírito Na ausência de diplomacia, arminha direita revólver
A feiura do mundo é dar um peso excessivo às titulações Apontar o dedo impor um destino errático para cada caminho.
A feiura está em não sentir o sabor do seu caminho
Sabor de mel, canela e café... Sabor de Minas e o que lhe prouver…
A minha feiura está em não saborear o meu momento
Em querer correr no tempo que se quer, sem saber quanto tempo é.
Assim, rogo eu que o Abebé da deusa em minha frente se posicione Para que em beleza, a minha feiura se torne.
20º lugar - Alex Alexandre da Rosa Os Pingos de chuva que antecedem a Tempestade - Jundiaí-SP
Quando pequena, Lola tinha pavor de trovões. O medo continuou por toda sua vida, mas somente agora ela compreende que o medo maior não era do trovão em si, era não ter ninguém por perto quando eles começassem. O tempo está nebuloso hoje.
Lola está velha, descartável. A idade é apenas um número. Uma insignificância na linha do tempo, tanto quanto, inerente à existência de cada um, de quem a carrega. Se ainda na juventude ela soa leve, pesa quando somos idosos. As cobranças das estações são implacáveis.
Quando chega o momento em que o corpo já não obedece ao cérebro, a utilidade se perde e, com ela, toda uma vida de entrega. Tudo o que era “pra sempre” se torna passado. As promessas são esquecidas. Com isso, os mais jovens se esquecem de que, embora a submissão de quem sustenta a carga dos anos nas costas seja maior, o sentimento é o mesmo; esquecem-se de que o brilho nos olhos – por debaixo de toda opacidade aparente – continua aceso e que a dor é ainda maior quando dependemos de cuidados, de carinho. A morte não vem por diagnósticos físicos; a falta de esperança é que manuseia a foice.
Não há dúvidas de que a solidão preconiza os pelos brancos. A velhice é ingrata. Quando velhos, somos iguais a uma blusa em uma manhã quente de inverno, que, depois de aquecer por toda a noite fria, incomoda. Nem sempre fora assim, nem sempre foi abandono. Lola viveu uma vida plena, intensa e, paradoxalmente, calma. Como um sono leve desdenhando de sonhos agitados. Ela era a alegria de Ricardo, era seu sorriso. Sabia que tudo tem um fim, mas não imaginava, nem em seus medos mais audíveis, que seria assim.
Por anos, sofria a cada despedida, era feliz em cada reencontro. Esperava, por horas e horas, o momento em que Ricardo abriria a porta. Na época em que reconhecia em suas mãos apenas o carinho. Buscava sua alegria. Dar um motivo a mais pelo qual a amasse. Algumas vezes, extrapolava, admitia. Entretanto, não é a expressão máxima do amor, extrapolar? Como se não fosse o suficiente ser apenas apreço. Queria mais do que colo, queria ser pacto. Lealdade. Queria todos os momentos.
Lola costumava ser incansável. A felicidade de Ricardo a sustentava. Era o bastante. Ela o idolatrava. Seus gritos; sempre perdoou. Faz parte de seu instinto não guardar ressentimentos.
No entanto, não sabia que a reciprocidade poderia depender de coisas finitas. A juventude do espírito e os sorrisos são eternos, mas o físico, esse tem data de validade. O tempo não ignora. O amor de Lola é o mesmo, seus passos que estão cansados, abandonaram-na. Contudo, nenhuma dor é maior que o descaso. Assim sentia a cada silêncio; a cada mão repousada sobre o novo; sobre a indiferença; a cada brincadeira ignorada longe de qualquer demonstração de afeto e de saudade. Ricardo buscava novas aspirações. Passava o dia em frente ao computador, escrevendo.
Assim, longe das lembranças felizes, há tempos se despediram. Cresceram juntos, mas quando se mudaram para o deslumbramento da cidade grande; quando as coisas na vida de Ricardo “deram certo”, ele perdeu algo dentro de si. Lola ainda esperava que ele encontrasse novamente – ainda espera –, nem que seja na juventude de outro ser, distante de seu ciúme irracional.
Ricardo haveria de entendê-la, quando o peso dos anos também o descobrisse. Ela só queria continuar sendo a sua companheira. Ele não entendia em seu egoísmo que, enquanto ele desfrutava de outras relações, ela só precisava de sua companhia.
Lola conhecia a dor da perda, talvez não disponha da vã inteligência de Ricardo e nem mais de energia, mas pertence a uma sensibilidade sem fronteiras. Aos poucos, ela percebia as trocas que eram feitas, a essência a se perder lentamente, dando espaço às coisas tecnológicas, das quais, sinceramente, ela não entendia o valor. Talvez, se fosse igual a Ricardo, faria o mesmo. Porém, sendo o que é, comportava-se diferente.
Hoje, quando Ricardo a chamou para passear, ascendeu em si uma alegria sem precedentes, há muito esquecida. Estagnada pelo tempo de ausência –ainda que estivesse presente – e afeto inatingível, que em outros tempos fora excesso. Lola explodiu em jovialidade. No fundo, ela guardava esperanças de que Ricardo ainda fosse o mesmo de outrora, já tinha aceitado sua condição, mas renasceu a chama em seu coração. Não cabia em si tamanha felicidade.
Ela estranhou o caminho, mas nada a abalava. Talvez uma surpresa? Um fim de semana longe do barulho dos carros. Talvez no lugar em que passaram os melhores anos de suas vidas. Foi lá
que Ricardo aprendeu a admirar o céu noturno. Quando os dois eram mais do que horas… quando eram momentos. A seriedade no olhar de Ricardo começava a assustar Lola, dava indícios de outro desfecho. Acreditou ter visto uma lágrima na face de seu afeto. Não importava. Qualquer preocupação era abandonada pelo júbilo do convite, eles estavam juntos novamente. Isso sim era o que valia a pena em um mundo passageiro.
O carro parou, Lola desceu. Estava eufórica.
Ricardo tirou a coleira de seu pescoço. Como nos velhos tempos, fez um carinho triste em sua cabeça e jogou a bolinha para que ela buscasse. Lola correu, correu como nunca havia corrido –entre as árvores de um lugar remoto e desconhecido. Sua alegria era muito maior do que seus pulmões cansados. Sua felicidade era seu combustível. Tudo isso era representado no frenético balançar de rabo. Lola pegou a bolinha como quem pega o maior prêmio, a amizade. A cumplicidade é a maior virtude de um cão e seu amigo. Ela foi feliz novamente…nem que tenha sido pela última vez.
Lola ouviu o barulho do motor do carro, um ronco inconfundível, que, por muitas vezes, ressoou alegria. Olhou para trás, desesperada. Desiludida.
O automóvel se foi, sem receios. Levando consigo toda confiança e deixando uma dor irreparável na alma. De Ricardo, nem sequer um olhar de despedida pelo retrovisor.
Quantos momentos juntos? Passeios? Quantas fotos de momentos únicos? Quantas curtidas valem um afago sincero? Aquele aparelho luminoso sobressaiu aos latidos. Lola nunca foi aparência. Sempre foi paixão, euforia, verdadeira. Agora esse sentimento que rasga em seu peito é insuportável, vai além de qualquer desespero.
Um latido, sem objetivo e triste, ecoa pelas árvores. O tempo está nublado. Nos olhos, as primeiras gotas de chuva. O rabo se embrenha entre as pernas. Ricardo ignora os trovões a caminho da casa vazia.
21º lugar - Jorge Roxo Nunes Ferreira Liberdade sem cor - Casal de Cambra, Portugal
Aqui. Entre quatro paredes Vejo entre grades A minha liberdade Que não consegui pagar Agora pago aqui Com a riqueza que já não tenho.
Sonho deitado
Nos raios de sol.
Num filme que não vejo A vida que não tive Passa a preto e branco Sem legendas nem som
Os erros são luxos Um sonho sem luz
A luz que entra Não me ilumina a alma
Choro escondido
Sem cor nem emoção Vida perdida Por tamanha injustiça
Meu País amado
Muito tem de mudar
A vida do povo Não pode perder a cor
Aqui
Nestas paredes O sol entra e banha o meu rosto
Espírito sem dúvida De que um dia A justiça a cor devolve à alma A liberdade, as lembranças e a vida Que nunca mais terei.
22º lugar - Maurício da Silva Régis Visivelmente – Camassandi-BA
É de verdade o mesmo sonho, O sonho que se vive por viver. À noite deita o despudor que flutua Para onde o tão lugar teme a morrer. Sonhar é que trouxe à vida real A realidade do visível a despejar. Se desprezasse o alívio calado à toa, Desprenderia uma atitude simplesmente; E, saudável, bem próximo, ficaria o bem-estar. Muito embora, o fiel destino é uma zona de perigo, Porque sufocante está afora a considerável senhora: Tonta, neurótica mesmo a este corpo inteiro.
23º lugar - Fabiana Sica da Costa Poetsch Família 2021 - Pelotas-RS
Cheguei na minha família Já um pouco crescido, Sofrido
Mas com muita vontade de ser feliz.
E assim de repente Ganhei de presente Duas mães de uma só vez.
Uma família completa Cheia de amor e carinho
De um estranho no ninho
Passei a fazer parte de um mundo Uma família que é puro amor Não tem espaço pra isso não! Então
Aproveito E te chamo pra lutar comigo Contra todo o preconceito! Que parecia perfeito Mas aprendi que respeito Muitas vezes não acontece.
Cedo conheci o preconceito.
O amor que eu recebia A felicidade que eu vivia Era tão natural que eu até esquecia Que existe sim homofobia
Racismo, desrespeito. Mas tive que aprender A matar no osso do peito.
24º lugar - Anderson Almeida Nogueira Água Limpa - Cachoeiras de Macacu-RJ
Nasceu em noite de lua cheia, redonda tal qual queijo branco e brilhante; mas queijo por aqui só se conhece de ouvir falar pois nem as cabras dão mais leite pra fazê-los, tal a secura do pasto nesse estio que teima em não cessar. O céu, estrelado antes parecia revoada de tanto vaga-lume que nunca se vira um tantão assim por essas bandas; de tempos pra cá o calor anda tanto que nem vaga-lume tem dado as caras, só se vê vôo de mariposa asa de bruxa e de formiga arará. O cenário que emoldurava a chegada do rebento, mais um na prole numerosa, tinha tudo pra ser poético, mas o calor extremo, a secura do chão, a chuva que teimava em não cair tornavam qualquer ternura em tormento, poesia em agonia, alento em sofrimento.
Nasceu. E como todo recém-nascido, sujo de sangue, sebento. Limparam-no com um pano quase branco – já tinha sido branco há tempos, quando aqui chovia e tinha água pra lavar... Não pode ser banhado pela parteira, água não havia quase, não se carecia desperdiçar, ia faltar pra beber. Quando tinha água pra beber...
A vida é dura por aqui, o chão é duro por aqui – não chove água pra molhar a terra, pra afofar o chão daqui. Nunca se vê lama por aqui – nem se sabe o que isso é nas bandas daqui... A mãe do recém-nascido quase parece vó de tão enrugada, rosto envelhecido muito antes do tempo certo, a pele da cara é o espelho do solo do lugar: rachado, quebradiço, poeirento. Sem expressão. Sem alento. O suor que escorre marca a poeira grudada no rosto. Não chora lágrimas da dor do parto, nem da alegria da maternidade; as lágrimas secaram, seja pela dor que já se acostumou – “nasceu rápido, tem boa passagem”, disse a parteira; seja pelo tamanho da prole já numerosa, “é o nono filho! Seis vivos”, disse o marido acendendo um cigarro de palha. As lágrimas devem ter evaporado tal qual o açude da Vila, que nem o riacho que descia do morro marrom do qual sobrou só o leito, tal é o calor que faz aqui. Se tivesse lágrimas chorava muito só pra ver se juntava água, ainda que salgada.
O último rebento cresceu, “como o tempo passa rápido igual carreira de bode”, assim se diz por aqui. Já tem sombra de bigode e tanta espinha na cara que parece mandacaru de janeiro, que não fulora na seca. Quase nunca viu chuva, nem se lembra quantas vezes. Não conhece enchente, temporal nem sabe o que é. Água limpa nunca viu. Nem bebeu, não sabe do sem-gosto da água limpa: “água tem gosto de terra”. A pouca água que por vezes cai do céu –de quando em vez São José abençoa, cai na terra e evapora. A que sobra vai pro raso açude barrento, pisado de gado magro, remexido de lata d’água e cuia de cabaça. É raso, mas não se vê o fundo, tem pouca água, quase nada, rasa e turva que nem vista cansada.
“Ouvi dizer que água era limpa, clara e cristalina que nem vidro de janela.” Nunca viu assim não, quando cai do céu é tão
pouca que não junta, quando tá na terra mistura e ganha cor. Pra beber não presta não, mas se não beber não sobrevive.
Dizem que na cidade grande tem de tudo: trabalho, mar, moça pra casar – e água limpa. “Vou pra lá, minha mãezinha”. Juntou as tralhas, bem pouquinha, fez sinal pra carona no caminhão que vai pra cidade, lá bem longe. “Diz que lá tem muita água, tem até uma tal de inundação de tanta água que chove. Sei dizer o que é não, ninguém voltou de lá pra contar. Deve ser bom”. Saltou da carona na cidade perto da estação central de trem. Falatório, correria, confusão. Nunca vira tanta gente junta, “parece até enxame de formiga carregadeira, meu Deus!” Largou no chão o bornal com as poucas tralhas que carregava de tonto que ficou. “Perdeu, mané!” Ouviu o grito e lá se foi a pouca bagagem que tinha, sumida dentre a multidão.
Sem a pouca bagagem, sem paradeiro pra onde ir, se deu conta do tamanho do problema que tinha naquele lugar desconhecido. Vagou sem saber pra onde ir, adormeceu na marquise acompanhado d’outros tantos como ele, sem pouso certo pra ficar. Puxou conversa, “onde tem água limpa por aqui? Rio que se vê peixe nadar, que se vê pedra no fundo?” “Água até tem, logo depois no viaduto pra lá do sinal; já água limpa é ruim, hein. O rio daqui é o canal do mangue, quase dá pra andar por cima d’água; e nem precisa ser homem santo. Peixe? Tá de sacanagem, né.” Foi lá pra conferir: corre uma vala de água cinza, fedorenta, grossa que gruda nas pedras. As pedras ficam ensebadas e nem se tivesse mil panos quase brancos, daqueles com que a parteira o limpou conseguiria descobrir a cor das pedras. Ouvira dizer que água era cristaliza, sem cheiro, sem cor. Sem gosto de nada, o que não entendia muito bem: “como pode ser boa se nem gosto tem.” Escreveu carta pra mãe: “Não creia, que nem eu, que água é coisa limpa que nem céu sem nuvem, clara como vidro de janela – isso não existe! Deve ser fruto de contação de história de cigana. Água é cinza, sebenta, tem cheiro ruim, tentei até beber – vomitei. É ruim por demais. Acho que água boa só tem aquela que cai por aí de quando em vez, cada vez menos. Pelos menos se bebe.” A carta, guardou no bolso de trás da calça desbotada, não tinha dinheiro pra mandar. E se tivesse, ainda assim ele chegaria antes em casa. “Vou voltar pra casa na primeira carona de volta”, falou com seu pensamento – “daqui já vou rezando pra São José pra chuva de quando em vez cair no sertão. Água boa por aqui, cidade grande, não existe não.” Uma noite, outra depois, mais uma também depois de cada dia de sol. No quarto dia o tempo fechou em nuvens cinzentas, clarão de raio e barulho de trovão lhe chamaram a atenção. “Hoje a chuva vem, vamos ver se é boa mesmo, se dá inundação. Vou tomar banho de água limpa, vou beber água limpa também.” A chuva caiu forte, nunca vira tanta assim. De repente correria, tumulto, gritaria. Tinha mais barulho além do som de trovão: “corre!” “pega!” “para!” A correria foi seguida de barulho de tiros. A chuva caiu forte, as trovoadas aumentaram o volume, os clarões dos relâmpagos confundiam-se com os clarões das rajadas de balas do tiroteio.
“Tá chovendo, meu Deus!” gritou sem ser ouvido em meio ao tumulto na multidão. “Água limpa!” Nunca vira tanta, em tamanha quantidade. Estava tão extasiado com a profusão de pingos grossos na face lavada que nem deu importância para o baque forte no ventre –porrada ardida que doeu qual ferro em brasa. Hipnotizado pela água farta que nunca tinha visto, olhou em volta – de cima caía limpa, no chão, aos seus pés a água estava tingida de carmim – vermelho que nem pena de passarinho tiê. Alvejado pela bala perdida morreu na poça d’água limpa com que sempre sonhara. Água ainda quase limpa, manchada com seu sangue...
25º lugar - Joaquim Saraiva Cesário de Melo Insular
Naquela rua encoberta de asfalto crianças florescem lambuzadas de barros lodos e lamas
libertas dos limites das calçadas Por aquela vereda úmida e descalça adultos germinam-se jogando futebol e bolas de gude sombreados pelos oiteiros sob o sol ardente de verão
de meio-dia
Do alto do meu castelo
observo da janela infâncias correndo no ralar dos joelhos e dos cotovelos e eu aqui crescendo como uma ilha cercado de livros por todos os lados Os livros não lidos
justificam os adultos edificados
26º lugar - Valéria de Cássia Pisauro Lima Destino Singular – Campinas-SP
Não pegue caminho cego, Siga o clarão do céu, O tempo é galope bravo E às vezes traz consigo o seu fel. Corre corisco na esteira
E o futuro convoca a andar, Sonhos não são bobeiras
Num destino singular.
A vida se assemelha, é banco de areia, Saudoso corre em contramão.
Espalhe as sementes, plante de grão em grão, A sede do amanhã, Esperança em vários tons.
A vida é travessia, passagem, é margem Do eterno caminhar
E o resto não, é só escuridão O rio humano sonha em desaguar, Num destino singular.
27º lugar - Ana Maria Antunes Oliveira Superação - Braga, Portugal Margarida fazia parte de um grupo de casais, cujo fundamento residia no aprofundamento da fé cristã e no enriquecimento da vida em casal. Esse grupo com o nome: “As Equipas de Nossa Senhora” reunia uma vez por mês, ao qual presidia um sacerdote jesuíta que auxiliava na reflexão.
Um dia numa reunião ele contou-lhes que em tempos, tinha feito os caminhos de Santiago, com jovens. Estava lançada a semente.
Durante um mês, foram conversando sobre a possibilidade de fazerem essa peregrinação e o que preparar para a sua concretização.
Decidiram a data e os locais onde pernoitar. O entusiasmo era muito.
No dia da partida reuniram-se à porta da igreja da Sé de Braga. Caía uma chuva miudinha, um pouco desagradável, para quem ia iniciar uma caminhada de seis dias.
Margarida, sem experiência, tinha comprado umas sapatilhas novas para a viagem. Um amigo que foi ter com o grupo no dia da partida, ao despedir-se olhou para a Margarida e disse: Sapatilhas novas!!! Num tom um pouco cínico. Só durante a caminhada ela percebeu. Primeiro porque a sua preparação física era muito pouca. Na altura a profissão e os filhos pequenos ocupavam todo o seu tempo, por isso com exceção de andar a pé, não praticava qualquer tipo de desporto. Depois porque não imaginava o que “as sapatilhas novas” lhe iriam fazer…
No primeiro dia fizeram o percurso de Braga até Ponte de Lima. Foram mais ou menos quarenta quilómetros, entre campos e povoações, entre trilhos de terra e empedrados, entre mato e aldeias, rios, serranias, pontes, fontes e cruzeiros, unindo a via espiritual à cultural, a fé ao património.
Como não podia deixar de ser, a Margarida fez uma bolha num dos pés, logo no primeiro dia. Começou aí o seu sofrimento, porque caminhar largos quilómetros e com os pés magoados era uma verdadeira prova de resiliência.
Após uma noite de descanso, havia que retomar a peregrinação. À saída de Ponte de Lima começou a subida da Serra da Labruja, primeiro duma forma relativamente suave para depois, subir por um trilho quase impraticável.
De Valença até Redondela foi sem dúvida um dos troços mais tranquilos do Caminho, quase todo plano, fechando com uma subida e consequente descida até Redondela. De seguida até Pontevedra foi um troço que não apresentou grandes dificuldades uma vez que os desníveis não ultrapassaram nunca os oitenta metros de altitude. De Pontevedra até Calsas de Reis não apresentou dificuldades, com uma subida longa mas muito suave.
Depois até Padrón as subidas foram um pouco mais intensas que as anteriores, todavia, não foi dos percursos mais difíceis.
Por fim surgiu a última etapa da peregrinação. Começou suave, mas só terminou após duas boas subidas, exigindo um último esforço até à chegada, em apoteose, a Santiago de Compostela.
Nas horas de calor paravam para almoçar, descansar e o sacerdote celebrava a Eucaristia. Aquelas Eucaristias eram momentos únicos de fé e de carregar de baterias. O sacerdote nas homilias lembrava que a peregrinação era comparada à vida. Tinha momentos de alegria, de tristeza, de convívio, de solidão, de dor, de êxtase. Um verdadeiro redescobrir do sentido da vida.
Margarida, com os pés magoados, chegou a pensar desistir, mas com a sua força mental e muita fé, continuou dia após dia. Sentia que os seus pés eram ajudados a seguir caminho, como se alguém caminhasse ao seu lado transmitindo-lhe misteriosamente força, acolhimento e proteção.
Apesar da dor, ela sentia uma profunda paz ao perceber que as pedras, as flores e os mistérios de Santiago haviam revitalizado a sua fé e a gratidão pela vida.
Sentiu um desapegar de tanta coisa sem importância e passou a compreender que só precisava do essencial para seguir viagem na peregrinação e principalmente na vida. Essa é uma das lições do caminhante: descartar aquilo que pesa na alma e no coração.
Como ela dizia: - Mais leves, aproximamo-nos da nossa verdadeira essência e tomamos consciência de que somos pequeninos e solitários, mesmo quando caminhamos acompanhados.
Muitas vezes ela sentiu uma força superior a dar-lhe a mão. De que forma vinha essa mão? Numa palavra amiga dos companheiros de viagem, na oração, na observação da beleza da natureza, que em muitas alturas, lhe era oferecida, como se de um presente maravilhoso se tratasse e até sobre a forma de uma anedota, dita por alguém, na hora certa.
Como não podia deixar de ser, em muitos momentos surgia a pergunta: Ainda falta muito para chegarmos?
E logo a resposta: - É já ali! Um já ali que tardava em chegar.
Quando vislumbrou ao longe o Santuário, Margarida sentiu uma alegria inexplicável. Apetecia-lhe correr, para chegar mais depressa, mas as pernas não lhe obedeciam.
Por fim, quando pisou o solo sagrado a emoção foi tanta, que grossas lágrimas lhe correram pelas faces. Era o impossível conquistado, tal como na vida, tantos impossíveis se vão alcançando, numa luta diária.
Olhou para o alto e agradeceu, agradeceu, agradeceu.
Margarida percebeu que o ser Humano, com a ajuda de Deus, tem uma capacidade de superação que vai para além do explicável.
28º lugar - Francisco Sinval Farias de Sousa O Bordado pelo avesso - Fortaleza-CE
A viagem prossegue abafada, e o tempo se estira na janela do ônibus. Uma aflição desmedida. A paisagem estorricada, a sequidão nos riachos, os animais esquálidos da vermelhidão. As poucas poltronas ocupadas mantêm-se alheias. Quinze anos distante. Sem intento de como lhe alcançaram paradeiro, uma mensagem inesperada deu ciência do passamento da mãe. Ela sabia. Sempre soube. Era momento de regressar ao antigo sítio e engolir em seco os rancores e as culpas. Perdera as contas de quantas vezes havia tentado se aprumar em posição mais confortável. Do tecido gasto da poltrona, exala um cheiro de bicho molhado. Entre revolver os cabelos repetidas vezes por pura impaciência, a que lhe perseguia desde as veredas da infância, e entrecruzar as pernas com aspecto de solenidade, o mistério das antigas promessas encalacrava-lhe o espírito. Essas horas sem cabimento viciam a dignidade de qualquer cristão. Por razões há muito desbotadas, a modorra recupera a figura retorcida do pai: homem de idade avançada, vistas ressabiadas, sobrancelhas insultuosas e hábitos agrosseirados. No dia em que decidiu trocar os afazeres da roça pelo penteado improvisado na espiga de milho, o velho cuspiu fogo. A sova arrancou sangue. Mas o pai não durou o que se previa. Quando flagrou a indecência dos primos na cacimba, amofinou de desgosto. Nada valeu arrepiar o couro da cria com cipó de tamarineira. Se é de se soltar, não tem credo que amarre. Artimanhas do demônio. Pouco depois, esmoreceu sem retorno e desencarnou no abril da invernia. O calor infirma a maquiagem, recuperada de instante em instante. No raso da mocidade, percebeu a pequenez da comunidade em que vivia e resolveu sair de casa. Sede de mundo. Dona Felícia, a mãe, embora contrariada, assentiu na escolha, indo se plantar no terreiro por horas a fio, como de costume, sob pretexto de alimentar as galinhas ou tirar o terço na hora dos anjos. Ela queria mesmo era se perder daquela vida. A exemplo das incontáveis almas baldias de sua época, sobrevivia do silêncio, às expensas do marido. Largou a família e a miséria da taipa em troca de atravessar as estiagens como serviçal, aferrada aos caprichos do dono. À noite, o velho se achegava, fétido dos bichos. Contraíra
crias que não vingaram: três sequer desceram, duas despencaram cedo e tornaram ao céu. Uma resistiu. O estirão da rodagem vigia o remorso que lhe sobe à face. Como planejado, abandonara as brenhas dos Inhamuns em busca das terras do Sul, ancorada na esperança de vida nova, distante do palavreado inquiridor das gentes roceiras. Para se sustentar, alugava o corpo em banheiros de postos de gasolina. Nessa pedagogia de sobrevivência, engendrou disfarces e artimanhas. Até São Paulo, onde começou se ajeitando como manicure, acudiu com desafetação homens e mulheres de toda espécie. A vaidade era a virtude em que se amparava. Cabelos na cintura, unhas vermelho-sangue, lentes cor de fumo. Cada palmo ostentava a grandeza de quem decidira não sucumbir, a lembrar as protagonistas dos livros de antigamente. - Passagem da onça! Quem fica? O salto e o olhar perplexo dos passantes desacentuam os movimentos. Não existe bagagem, somente uma bolsa tiracolo. Sem firmeza sobre as trilhas de antigamente, solicita o auxílio de um mototaxista. - O senhor sabe onde fica o sítio de dona Felícia? Morreu recentemente... - Sei demais. Pode subir. As vistas demoram no tracejado sinuoso do caminho. Por intimidar o disseme-disse dos curiosos, repuxa o vestido até o limite das nádegas em um movimento desaforado, enquanto se endireita na garupa da moto. Palmo a palmo, a trilha vai se reconduzindo à memória. O açude do Poço Verde, a cancela da fazenda dos Mota, a cacimba, agora desativada. - Dona Felícia era mulher de bem. - Com certeza. No sítio, as coisas se firmam definitivamente. O piso em cimento queimado, o forno de tijolos, os quadros em feitio oval. E a janela virada para o vazio que a mãe tanto cultivava. A penteadeira devolve um odor afável de jasmins. Os enormes frascos de perfumes e o terço de dona Felícia silenciam o cenário. Viver é esse teatro de sensações. Nada mais por resgatar, revigora a maquiagem pela derradeira vez. Antes de partir, apanha o terço. O vestido aperta e o salto atola na piçarra. Descalçar é melhor: um arroubo de liberdade no caos. Àquela hora, ninguém se atreve ao sol. O campo-santo do povoado não fica longe. Um vivente desabrolha à sombra da cajazeira. - Para que lado fica o cemitério, moço? - Mais na frente, depois do Matadouro.
O braseiro insuportável acabrunha a locomoção. Na entrada do cemitério, um senhor acobertado pelo chapéu aponta onde está dona Felícia e desaparece. Felícia Neves de Araújo. Como premeditasse, aperta o terço da mãe contra o peito, comprimindo os olhos e movendo os lábios suavemente, em uma súplica penosa e necessária. Respira fundo. Ninguém no cemitério, à exceção dos que nada testemunham. E duas galinhas ciscando o terreiro. Em tempo, a liturgia tem início. Limpa o batom com violência. Saca os cílios, as unhas postiças e enfia a mão no bojo do vestido, arrebatando-lhe o enchimento. Por fim, arremessa a peruca nos vãos do esquecimento. Da bolsa tiracolo, um revólver. O cano na boca. O disparo. O silêncio. E as galinhas tornam a bicar a terra.
29º lugar - Guilherme Brasil Carrinhos de Ferro – São Paulo-SP
Nasci em 84, em São Paulo, numa madrugada confusa e sem gasolina, que por pouco não me faz nascer em Brasília (o carro, não a cidade). Como disse, confusa e sem gasolina. Garoei na cidade até os dois anos, época em que minhas lembranças só interessariam a Freud, quando veio o chamado para minha grande aventura de menino: a Amazônia.
Meus pais eram médicos recém formados, começando a vida e os bolsos, e receberam uma oferta irrecusável— trabalhar numa cidade particular (da Vale) prestando serviços de saúde à uma mineradora de bauxita, no meio da floresta. O salário era bom, não pagariam aluguel, luz, água nem a escola do filho, tudo seria fornecido pela companhia. Então partimos.
A cidade aninhava-se a noroeste do Pará, acessível apenas por barco ou avião. O nome era Porto Trombetas mas também poderia ser chamada de “Tudo Um”, pois só havia um clube, um cinema, uma escola, etc. Era tão miúda que não havia ônibus, nem moradores de rua, nem polícia, nem assaltante. Dormíamos de portas abertas para ventilar, todos se conheciam e nas noites quentes os vizinhos botavam a cadeira na porta de casa, enquanto as crianças tomavam banho de mangueira na rua. As casas eram quase iguais, sem muros, ladeadas por grandes terrenos, enormes castanholeiras, coqueiros, marias-semvergonha, hibiscos e um sem número de árvores de comer. Quando era tempo, coisa mais comum era ver moleques descamisados, com vara de bambu para catar goiabas, cajus, ingás, mangas, murucis e o que mais pudessem carregar. Sacolas cheias, beiços melados e pés de barro, eis um bocado da minha infância.
De vez em quando aconteciam umas brigas, tínhamos nossas “gangues”, coisa de garoto. Como todo mundo estudava na mesma escola, as turmas seguiam a mesma lógica, uma certa divisão por idade e não por status social, e cada bando tinha seus hábitos e suas brincadeiras (como o assustador “futporrada” dos meninos mais velhos). Mas havia um ponto de convergência entre toda a molecada, uma brincadeira simples e bonita: carrinhos de ferro, daqueles pequenininhos, que a gente comprava de cartela no Bazar da Dona Gilda ou em Manaus, quando o avião parava lá no caminho pra qualquer outro lugar. Geralmente o encontro acontecia de tarde. Os moleques
peregrinávamos pelos quintais uns dos outros, mal batendo palma e já entrando (e quando as tias davam conta a gente já estava no sofá, esperando o amigo). Seja pela miudeza da cidade ou pela similaridade entre nossas casas, parecia que morávamos todos juntos, especialmente nessa hora, onde os rapazes mais caneludos esqueciam das mocinhas cheirosas e ajoelhavam na terra pra construir brinquedo conosco, os meiaporção. Era uma comunhão bonita, crianças com um e dois dígitos de idade brincando juntas, despreocupadas, desseparadas.
Como um bom ritual, havia um templo, que era o canto detrás da trave de cá do campinho, porque as árvores e as terras de lá eram mais generosas. Então acontecia a divisão de carrinhos, emprestados/ trocados/ surrupiados de acordo com a profissão naquela vez ( e todos queriam ser “polícia” porque poderiam correr pela cidade e prender alguém). Aí começava a construção, ruas e avenidas feitas com taquinhos sulcando a areia fofa daquele chão, cada qual querendo fazer a casa mais vistosa, com garagem e porteira. Valia tudo, de túneis à arranjos com tufos de capim. Depois chafurdávamos em nossos papéis e a interação era bem realista: tinha menino bombeiro, dono do supermercado, ladrão e menino que botava banca braba de autoridade, de modos que às vezes a realidade transpunha as fronteiras de nossa metrópole de areia e os socos eram de verdade. Mas a beleza dessa época é justamente essa, saber que emoções são pó, não pedra, e de pouco já construíamos de novo, amalgamados. Hoje, há milhares de quilômetros e anos de Trombetas, me pergunto se as crianças de lá ainda brincam de carrinhos de ferro ou se a pobreza da infância asséptica e virtual de hoje devorou mais esta tradição. Que histórias contarão este pequenos? Que História?
30º lugar - Ana Isabel Fernandes Faísca Pinheiro Fome – Almancil, Portugal
Todos os dias. Um atrás do outro.
Há muito me conformo com o prato de esparguete com atum que a pobre mãe consegue colocar na mesa. Ao menos uma vez por dia. Nem sei se o meu estômago não estranhava se o atulhasse com um bife de vaca. E batatas fritas. E ovo a cavalo.
Condeno-me pelos pensamentos de grandeza que me invadem. Sonhar com um bife enquanto o bucho ronca como um trator atascado é duro. Nem sei se me dói mais o corpo ou a alma. Não posso, não quero, não consigo. Não é justo condenar a mãezinha, que faz o que pode (e o que não pode) para nos colocar comida na mesa.
Desde a morte do pai que a nossa situação descambou. As dívidas acumulam-se, e a mãe, que nunca tinha sentido no corpo o peso do trabalho fora de casa, hoje chega derreada. Acumula dois empregos e mais umas limpezas nas folgas. Quase não a vemos, senão no momento da refeição, que faz questão de tomar connosco enquanto oramos, de mãos erguidas a Deus, agradecendo o esparguete e o atum que nos consola a barriga. O pai morreu. Há seis meses. E de lá para cá, o carteiro não tem mãos a medir com as cartas que chegam a esta família. E nenhuma delas traz uma herança choruda. Não posso, não quero, não consigo. A ele não. Nunca poderei aceitar como pôde entregar tudo por um vício e no fim, sem saída, saiu como um cobarde, pela porta das traseiras. Os cobradores é vê-los passar, sem dó nem piedade. Valha-nos Deus e a casinha dos avós, pois o mais certo era dormimos ao relento.
Quando olho para trás, relembro a vida que há seis meses nos foi roubada. Nunca fomos ricos, é certo, mas os negócios (e negociatas) do pai sustentavam-nos comodamente. Do alto dos meus catorze anos, agora consigo discernir (e compreender) a dor da mãezinha. Ela bem que disfarça, com cantorias e sorrisos. Mas quando, à noite, a almofada é a sua companhia, eu ouço a lágrimas gotejantes que ela tão bem camufla.
— Miguel! Miguel! — As vozinhas infantis dos gémeos despertam-me do rol de pensamentos em que mergulho esporadicamente, enquanto fuga mal calculada.
Os dois pequenos seres endiabrados invadem-me aquilo a que chamo quarto,
outrora arrecadação dos meus avós. Levanto os olhos do papel onde calco estas linhas, a tempo de receber das mãos da Maria o que me parece ser uma taça de sobremesa.
— Mano, a mãe hoje trouxe mousse de chocolate. Há quanto tempo não comemos mousse de chocolate! Toma, esta é para ti! — Estende-me a pequena mão rosada.
— Obrigada Maria! Que sorte que temos… — respondo-lhe enquanto afago as mechas de cabelos dourados, caídas sobre os ombros.
O argumento “assim já vamos de barriga cheia e não temos muito espaço para o esparguete com atum, estamos fartos daquilo” atinge-me duramente e não consigo convencê-los a deixar a mousse para sobremesa do jantar. Olho para eles que, regalados com o doce, raspam a taça com afinco. Deixo rolar uma lágrima confrangedora, imediatamente disfarçada (aprendi com a mãe), enquanto o pensamento volta ao pai e à sua sacanice. E à mãe. E aos manos.
— Maria, Martim! — Há minha chamada, voltam rapidamente a cabeça — Prometo que no vosso aniversário vão ter muita mousse de chocolate. E pipocas. E gomas. Vamos festejar os vossos oito anos com “pompa e circunstância” Saltam-me ao pescoço, inebriados de alegria. Lambuzam-me com beijos salpicados de chocolate. Reparo na figura da mãe, entrecortada na penumbra. Olhanos com a doçura de mãe, protetora, agradecida. Não sei o que me deu para lhes prometer uma festa, nem como raio vou conseguir cumprir. Só sei que o pai, lá no outro mundo, não se vai ficar a rir.
A mãe chama-nos para jantar. De novo de mãos postas a Deus agradecemos o esparguete com atum que, a muito custo, engolimos. Terminamos a refeição e arrumo a cozinha em silêncio, enquanto a mãe deita os manos. Passo no quarto, afago-lhes a beira do lençol e beijo a testa da mãe.
Já no meu quarto, repouso a cabeça na almofada, conquanto ouço os lençóis arranharem-me a barriga vazia. O jantar, esse já o digeri e agora contento-me com duas bolachas, pategas e sensaboronas, que mastigo molemente. Canto baixinho, para esquecer, enquanto sinto nos olhos o peso de gordas lágrimas que se avolumam. Quando começam a cair, são em catadupa.
Mas quando esse momento chegar, já estarei a dormir e amanhã começa tudo de novo…

RELAÇÃO DOS TEXTOS SELECIONADOS COM MENÇÃO HONROSA
Alberto Arecchi - O Diabo da Numídia Pávia, Itália
Estou disposto a apostar que nenhum de vocês já conheceu o diabo na Numídia. Acredito que eu vi, há muitos anos, durante uma viagem de carro para atravessar as montanhas da Medjerda, entre a Tunísia e a Argélia. Fora uma noite muito chuvosa. O caminho, estreito e com curvas fechadas, não estava equipado com proteções adequadas para garantir que o viajante não voe para a direita na próxima ravina. Eu havia embarcado em Gênova, na chuva. Após o desembarque na Goulette, estava chovendo. Vinte e quatro horas de água por cima do ombro, a água dos lagos em Tunis de um lado e do outro, a água do céu. Realmente demasiado: tentem vocês dizer isto àqueles que estão convencidos de que na África nunca chove. Eu abandonei a intenção original de passar um dia em Tunis e decidi não parar. Ao longo da estrada costeira eu podia chegar em volta da noite em Annaba, mas a cidade era famosa por seus ladrões, capazes de cortar vossos pneus nos cruzamentos para forçá-los a ir para baixo e roubar tudo... Então, aventurei-me na outra estrada, que no papel não parecia muito desconfortável, a convicção de chegar antes de escurecer em Souk Ahras, a antiga Tagaste, o lugar natal de Santo Agostinho, hoje tranqüila cidade de montanha, do outro lado da fronteira argelina. A chuva e as terríveis curvas daquela estrada de montanha me dariam uma noite de horda.
Em essas montanhas, anos antes, tinham lutado os fellagha (rebeldes argelinos em revolta contra a França). As tropas coloniais tentaram construir uma linha “impenetrável” de fortes e arame farpado, para impedir o fornecimento dos rebeldes. Os sinais eram escassos, ao longo do caminho, mas eu não estava com medo de me perder: a estrada de asfalto estreita, toda de voltas e reviravoltas, continuava subindo para o céu, sem desvios, embora invisível na noite negra.
Nas curvas fechadas mais expostas, a chuva parecia abrir o caminho sob as rodas. Eu tentava não pensar sobre o que eu poderia esperar após a próxima curva, cantarolando entre os dentes alguma canção esquecida. Após cerca de dez minutos, no entanto, a tensão renovavase. Além das chuvas, das curvas, da escuridão, dos relâmpagos repentinos que iluminavam a noite, eu tinha medo
que uns animais selvagens atravessassem de repente o meu caminho: um javali, um macaco, um cão vadio, uma raposa ou qualquer outro ser vivo. Na noite escura o carro poderia ter sido parado e não encaminhar-se mais.
Isto pode explicar por que eu não parei, mesmo hesitando um momento, quando, no meio de uma curva, na escuridão diante de mim, uma silhueta branca apareceu de repente. Uma grande sombra pálida, com as asas abertas: tinha de ser uma ave de rapina noturna na caça, talvez uma coruja de celeiro. Parou por um momento no ar, na luz amarela dos faróis, e desapareceu, em quanto meus olhos tentavam reconhecer a estrada.
Um instante - ou um século - mais tarde, retorno a mim de um breve desmaio, a testa coberta de suor frio. Apito de morteiros. Eu estou sempre na estrada, na noite de tempestade, mas estou conduzindo um veículo blindado. De dois miradouros, colocados em penhascos com vista para o caminho, os raios de luz passam na montanha em busca dos rebeldes. Rajadas longas de metralhadora cortam a noite. Como sombras que desaparecem na escuridão, os fellagha não se vêem. Meu carro passa no fogo cruzado de balas traçadoras e vejo diante de mim, claramente, uma máscara sorridente: uma espécie de harpia, empoleirada sobre o capô do meu caminhão. Como se fosse de fósforo, a larva brilha de luz própria e paira e mexe, aqui e ali.
Sinto-me em perigo imediato, o fantasma bailarino me assusta mais que as rajadas e a tempestade. Tenho que me forçar a ficar firme, os olhos bem abertos na noite, tenho que tentar não distrair. Sei instintivamente que, se seguir com os olhos os movimentos da aparição, escaparia para fora da estrada, descendo a ravina íngreme. O vento traz rajadas violentas de chuva. O confronto parece ter acabado, mas alguns tiroteios isolados ainda ecoam na escuridão. Os olhos correm entre as sombras de tuias e carvalhos, procurando o brilho de uma arma ou o movimento das capas dos rebeldes. Em vez disso, vejo só redemoinhos e ramos, balançando nas rajadas do vento; mas no jogo de luz e sombras, às vezes, até mesmo transparece o sorriso atroz da visão. A máscara me convida para acompanhá-la. Vira e vem descansar em uma clareira, a cerca de cinqüenta metros da estrada.
Então, a face do sorriso satânico explode em mil fragmentos: estilhaços de luz, madeira, metal e terra úmida. Um morteiro atingiu uma barraca, um pequeno depósito de munições. Longos minutos de fogos de artifício. Eu paro, saio do veículo e me aproximo cautelosamente à clareira. Deitado em seu próprio sangue, um jovem
soldado camuflado, com o rosto desfigurado pela explosão, engasga e morre em meus braços. Eu nunca vou saber se era um francês, um mercenário da Legião ou um rebelde. Nenhum sinal o identifica, e face da morte os jovens são todos iguais. Ao longo dos últimos suspiros, ele tira do bolso o retrato de uma menina e aperta convulsivamente na mão, como se estivesse tentando se agarrar a essa última esperança, a última memória. Deixou-o lá, na chuva, na escuridão e no silêncio que se tornaram absoluta. Na estrada, com os faróis acesos, meu carro está esperando para mim.
Durante essa viagem, eu cheguei em Souk Ahras que já era noite avançada e encontrei dificuldades para achar um quarto para descansar. Tive a sorte de ver nas ruas desertas um funcionário público, que se ofereceu para chamar os poucos hotéis na cidade, e me arranjar uma cama. Ainda me lembro da estalagem esquálida, cujos lenços tinham definitivamente perdido sua inocência e foram tão endurecidos para ficar contra a parede, na posição vertical, sem cair. Eu estava completamente vestido na cama, grato à noite fria. Dormi pouco, ainda abalado pela viagem na tempestade, pela visão, os tiros, a imagem daquele jovem morrendo. Acordei e retomei o sono, pelo menos, quatro ou cinco vezes: a noite nunca passava. No dia seguinte, a tempestade se acalmara e o céu estava se abrindo, o vento não trazia mais nuvens. Assim como não havia luz suficiente, eu continuei a viagem para Argel.
Na minha longa estadia nesses países fui capaz de descobrir, a partir de livros e conversas, as lendas que são contadas, sobre aparências semelhantes ao fantasma que eu tinha visto naquela noite.
O “diabo da Numídia” materializa-se como uma larva ou um fantasma, em ocasiões especiais, para prever - ou evocar - eventos desfavoráveis, em certos vales as montanhas entre a Tunísia e a Argélia. A gente diz que o diabo aparece na Numídia quando alguém tem que morrer de uma morte violenta, mas também para abrir brechas temporais, aberturas que permitem conhecer o passado ou o futuro.
Nessa noite de tempestade, a larva não tinha vindo para me levar, ou talvez... Quem sabe? O que é certo, é que a morte tomou uma vida naquele lugar, naquela hora - mas em que ano, em qual dos muitos mundos paralelos?
O diabo da Numídia lá estava.
Ana Maria Carneiro Pereira de Souza - Vamos Seu Guarda! Rio de Janeiro-RJ (CARPESO)
César olhava pela janela. Na rua, o movimento de todos os dias. Pedestres apressados entre os carros, buzinas estridentes, o entre e sai nas lojas. Um dia comum se não fosse o arrastão que desceu o morro para fazer um ganho. O pânico espalhado pela violência, as ameaças aos motoristas que aguardavam o sinal verde com os vidros do carro abertos, e a preocupação dos lojistas em baixarem as portas a fim de proteger as vitrines. Cenas que se tornaram banais na cidade, e que já não o surpreendia foram sentidas por ele de forma diferente. Num gesto inesperado, arreganhou a janela, debruçou sobre o parapeito do prédio e dali pulou na marquise onde deslizou pelo poste de luz até o chão. Correu até a banca de jornal onde um dos invasores agarrara um gato pelo rabo e o rodava no alto da cabeça para lançá-lo sobre a “muvuca”. O gato desesperado miava indefeso. César como um raio caiu em cima do marmanjo libertando o felino. Descontrolado, socava a cabeça do agressor com tamanha fúria, somente contida por um dos policiais de uma viatura que se escondia na esquina. Liberto da agressão, o “meliante” fugiu, enquanto César era inquirido pelo policial. - O senhor está preso! Cesar ainda com os punhos cerrados perguntou; - Cadê o gato? Eu quero ver se o gato está bem. O policial o empurrou para dentro da viatura. César, olhando em volta preocupado, procurava pelo gato. Finalmente o viu fugindo pelo beco. Então, relaxado, sorrindo, deu a ordem: - Vamos seu guarda!
André Luiz Greboge – Programação Jaraguá do Sul-SC
Ou zero ou um
Leio pausas naturais Programo, ergo sum
Bianca Pereira de Oliveira – Papo de varanda Curitiba-PR
Chego com dificuldade à sacada, pessoas me parando para conversar, perguntando sobre como estou, sobretudo como estou resolvendo os problemas. “O carro tinha seguro?”, “Se precisar saiba que estou aqui”, “Você está bem?”. O simples fato de interagir com as pessoas já é cansativo o bastante, a situação só piorou tudo. - Grande festa? - uma voz feminina pergunta ao meu lado. Meu coração salta e se aquece ao som de sua voz, um sentimento que não sinto a muito tempo, mas que quando estou com ela está sempre presente. Contudo, não era isso que eu queria agora. Me viro e vejo Rosa ao meu lado na varanda.
- Não é minha.
- Claro que não, você não gosta de pessoas. - constata soltando uma baforada do cigarro que fumava. Torço o nariz, ela sabe que não gosto do fumo. - Algum problema? - pergunta se virando distraída, quase como se não soubesse o que há de errado ali.
- Não esperava vê-la aqui. - solto, evitando seu olhar enquanto observo o horizonte.
Ela me fita por um segundo antes de repetir o gesto. - Você queria que eu viesse, não ? - fala, soltando outra baforada. Balanço a cabeça incomodado. - Você não deveria ter partido. - digo enfim.
- Isso não era decisão sua. Era minha e sabe disso. - ela se vira apoiando as costas na
sacada e batendo o cigarro. - Claro, - ironizo - todo mundo diz isso. - Deve ser porque é verdade. Bufo, antes de continuar. Não precisava ouvir isso dela.
- Por que foi embora? - Queria um tempo, conhecer novos lugares, fugir? - ela franze o cenho, logo dando de ombros - Quem sabe? Talvez só queria sair. Sabe que nunca gostei de ficar parada. Aperto o parapeito em frustração. Não sei porque esperei uma resposta decente. - Você... Você não tinha o direito de fazer isso! De sair assim! Você deveria...
- Lembra de quando saímos a primeira vez? - ela interrompe - Foi em uma festa e você estava todo deslocado. - riu, como se lembrando da cena - Depois nós fugimos para tomarmos um ar, olhando a lua, bebendo... Ficando só nós dois. Me viro em sua direção recebendo um olhar caloroso e assinto.
- Fizemos isso em todas as festas. balanço a cabeça ao lembrar - Você era a melhor
companhia, sempre foi. Para qualquer coisa.
- Sei disso. - diz pretensiosa - Não é à toa que colocou um anel no meu dedo. ela dá
uma pausa colocando a mão sobre a minha. Os dedos finos dela envolvendo os meus – Mas você nunca teve só a mim, há várias pessoas que também querem estar com você. - ela aponta o cigarro em direção a porta - Lá dentro está cheio delas.
- Você sempre foi muito otimista. - Marcos! - me viro com o som do anfitrião e amigo me chamando - Estava te procurando, vamos. - Falando deles. - Rosa sussurra, retirando a mão da minha e tragando o cigarro – Vá lá, eu vou ficar bem. incentiva com um sorriso.
A observo rapidamente, logo concordando e o seguindo. Contudo, antes de passar dou uma última olhada para trás apenas para ver aquela varanda vazia. - Você está bem? - pergunta o homem ao meu lado.
- Sim, Rosa amaria a festa.
Brendda dos Santos Neves Gotelip – Jardim de Felicidade Vila Velha-ES
Jardim de felicidade
No jardim de minha mãe atenciosa, varanda de teus olhos-manga! Fortaleza branca, verde e silenciosa! Havia um pé de pitanga...
Esperava a fruta ficar madura alegre, linda e pura! Enquanto a verde-impura era triste, dura e abandonada!
No jardim de felicidade de minha mãe amada, as folhas de um verde tão escuro se sobressaíam na mata verde-puro!
Sempre tive um teto próprio e obscuro... Um jardim de alegria na eternidade! E da tristeza fez-se a felicidade!
Bruno Oggione – As palavras Rio de Janeiro-RJ
as palavras, no branco, declinam. a mão, sobre tudo, pondera o seu fim. suspendamos o golpe. Pararíamos, no gesto, o fim dos poemas. pararíamos? as palavras estão fartas de seus adornos e de suas proposições! as palavras, consumidas, sujaram-se no barro de viverem aptas para o nada. de nada. (de tudo já feito com elas, haroldo)
a mão não pondera. lapida no escuro: sua tinta flui o além das linhas.
Cristian Canto Feijó – Quem manda aqui? Porto Alegre-RS
— Ei, amigo! — Quem está me chamando?
— Sou eu, aqui na mesa. — Quem? Na mesa só tem um celular!
— Achou? Aqui, o teu melhor amigo. — Como assim? Meu melhor amigo é o Pedrin... Ops! Telefone não fala, com quem estou falando? — Como assim não falo? Estou sempre contigo. — Não! Celular não fala.
— Na verdade, não sou tão teu amigo assim, estou mais para controle remoto. — Mas o que você controla? — Você!
— Eu?
— Sim, você mesmo, tenho minhas artimanhas, meus métodos para você ficar sempre comigo, massageando minha tela, fazendo que eu seja o centro de tuas atenções. — Não pode ser, estou sonhando. — Sonhando? Você nem dorme mais, fica a noite toda comigo. — Mas...
— E, além disso, estive pensando que você poderia deixar minha bateria carregar completamente antes de me tirar da tomada, do contrário terei problemas com meu sistema e me perderá. — Mas meu pai compra outro... Aff! Estou falando com um telefone celular? — Na verdade, eu é que estou falando com você, e se você trocar de celular eu voltarei para seguir te controlando com meus joguinhos, sites, facebook, wathsapp, twitter e tudo mais que você baixar em mim.
Mas como assim? Você é tipo um espírito de celular?
— Não, você é que parece um espírito nessa casa. Lembra qual foi a última vez que jantou com seus pais na mesa da sala? Lembra quando foi jogar bola com seus amigos? E eu não estou falando de jogar online, é na rua mesmo, sujar a roupa, ralar o joelho, fazer novos amigos. — Mas eu tenho muitos amigos. — Você está falando desses que conhece só pelo monitor do computador? Eu estou falando em aperto de mão, abraço depois da vitória em campinhos com as goleiras feitas de chinelos no pátio de casa ou na calçada, Jogar bolinha de gude, taco, brincar de esconde-esconde... Ora! Coisas normais.
— Mas todos meus amigos jogam no celular, com quem eu vou jogar na rua? — Pergunte a seu pai o que ele fazia na sua idade, com certeza tinha mais emoção, convide ele para passear, pescar, lhe mostrar lugares onde ele passou a infância. — Mas ele está sempre ocupado, não tem tempo. — Você já tentou convidá-lo? — Não, mas eu já sei que a resposta sempre é não. — Vou te ajudar então. Use-me agora para o que eu fui inventado e ligue para ele.
— Não vou não, eu já sei a resposta. — Liga agora, deixa de ser uma criancinha mimada, se fosse para pedir algo, você já teria ligado com voz de doente e a cara do gato de botas do Shrek . — Está bem, eu ligo. — É isso aí! Mas me pega com carinho. — Alô! Pai? Eu, eu... Eu quero te convidar para irmos ao estádio no sábado. O tricolor joga contra o flamengo e vai ser um jogão. Vai começar às onze da manhã, e a tarde podemos ir à praça bater uma bolinha... Mas tudo bem se não puder, eu sei que és muito ocupado e... — Está certo filho, vamos sim. Faz tempo que quero sair contigo, mas quando te convido você parece que não escuta, fica colado nesse celular. Sairei mais cedo hoje eu vou à bilheteria do estádio para comprar nossos ingressos para o jogo. Depois vou te levar num campinho onde eu brincava e jogava bola com meus amigos quando tinha a sua idade. — Legal pai, te amo. — Também te amo filho, nos falamos em casa. Beijo. — Tchau, pai. — Muito bem! Não doeu nada, não é? Agora posso voltar a ser apenas um telefone. Eu fiz minha parte, faça a sua também. Não há problema de me usar, mas tente se conectar um pouco mais com a realidade, preste mais atenção nas coisas lindas que existem lá fora. — É eu sei, e obrigado por me ajudar... Você seguirá falando comigo? Ei celular... Celular... Celulaaaaaarrrrrr! Mas o que eu estava fazendo? Falando com um telefone celular? Acho que estava sonhando mesmo. Mas enfim, vou deixar minha camiseta e a bandeira pronta para o jogo, e jogar um pouquinho no meu celular. — EI MENINOOOOOO!
— Brincadeirinha! Hehehehe
Daniela de Queiroz Picchiai – Será esse o destino? São Paulo-SP
Reviver sentimentos já vividos dão a sensação de que perdemos o aviso… Angústia. Erro.
Onde? Quando? Como? Quem? Será que poderia ter visto o tão misterioso aviso? Ou será que tudo vai ser sempre tão repetido?
Na escola diziam… O repetido é aquele que não aprendeu direitinho. Erro. Mas, é possível aprender o sentido?
Aqui, Dizem… Quem repete… Erra
Como erro e repito, repito e erro, erro e repito, Nunca saberei qual o sentido? E então, assim, estarei sempre perdido? Errar, perder e repetir…
Será esse o destino?
David Ehrlich – O mesmo Curitiba-PR
Havia bastante gente no parque. Com a bola de basquete embaixo do braço, Cruz olhava para o celular enquanto digitava uma mensagem carinhosa. Ao lado dele, sua irmã fazia careta, mas o jovem pouco se importou. Estava surpreso que tinha conseguido manter conversa por tanto tempo com a menina que conheceu no aplicativo de relacionamento, e amanhã seria o grande dia em que eles se conheceriam pessoalmente. Mas não hoje. Hoje era outro grande dia. Reconheceu Jedi à distância: apesar do parque cheio, não era difícil reconhecer um poste de mais de 2 metros de altura. Vendo-o de perto, porém, começou a se perguntar se aquele realmente era o mesmo Jedi com quem vinha jogando basquete há tanto tempo: estava extremamente pálido, e o jovem, que já era naturalmente magro, estava quase só osso. Se ele estava assim agora, Cruz não queria nem imaginar o estado no qual ele saiu do hospital após todo aquele tempo entubado na UTI. - Vai mesmo jogar? – Perguntou
Cruz.
- Nunca arreguei um jogo na minha vida, vou arregar agora? – Respondeu Jedi, com um leve tom ofendido na voz. Cruz encolheu os ombros e entregou a bola para sua irmã. Ela não desgrudava os olhos de Jedi. Cruz conseguia entender: jamais contaria para ela, mas a tinha ouvido chorar sozinha no banheiro quando veio a notícia de que Jedi fora internado. Os três se posicionaram no centro da quadra, e a irmã jogou a bola, começando a partida. Cruz pegou a bola, porém manteve-se afastado de Jedi, demorando-se para correr até a cesta. Queria ver se seu rival continuava o mesmo. Vinte e uma vezes eles se confrontaram naquela quadra. E vinte e uma vezes Jedi venceu. Não que Cruz fosse um mal jogador: ele foi o líder do time da sua escola, e agora na faculdade estava representando muito bem a atlética do seu curso. Mas Jedi era de outro nível. Poderia estar jogando profissionalmente. Se ele não jogava porque não queria ou porque não aparecia oportunidade, Cruz não sabia. Talvez sua irmã soubesse. Mas de uma forma ou de outra, Jedi era o único jogador de basquete que Cruz nunca havia conseguido vencer. Isso, porém, foi antes da quarentena. Antes de Jedi ficar doente e quase morrer. Jovem, histórico de atleta, fora do grupo de risco, nada disso
importou. Até agora Cruz não havia criado coragem de perguntar como havia sido: qualquer resposta com certeza seria pior do que ele gostaria de imaginar. Enquanto divagava, Jedi avançou e conseguiu roubar-lhe a bola. Alguns passos largos e estava fazendo uma cesta. Com um pedaço de giz, a irmã de Cruz começou a marcar pontos no bloco de concreto sobre o qual estava sentada. O jogo recomeçou, e agora Cruz não se deixou distrair: correu, se esquivou, arremessou a bola e... Cesta! Comemorou com um soco no ar, mas uma única cesta não significava nada: sempre fazia cestas ao jogar contra Jedi, e ao final Jedi sempre ganhava. Notou, porém, que este estava jogando diferente. Jedi era muito rápido e dava passos bem mais largos que Cruz, saltando como uma gazela de um lado ao outro da quadra. Agora, porém, ele não estava se movimentando tanto. Limitava seus movimentos, e após algumas cestas Cruz percebeu que Jedi estava ofegante bem antes do normal. Mas o que Jedi perdeu em agilidade e condicionamento durante a quarentena, agora compensava com movimentos extremamente calculados. Cruz podia quase ver as engrenagens em sua cabeça funcionando, avaliando como ter o máximo de eficiência com o mínimo de movimentos possíveis. Se antes ele sempre corria atrás de Cruz com esperança de roubar a bola, agora Jedi o deixava fazer a cesta quando percebia que não conseguiria evitar isso. O jogo agora estava mais equilibrado do que antes da quarentena... Mas não mais fácil. Pelos riscos de giz no bloco de concreto, via-se que Jedi ainda mantinha uma pequena vantagem de dois pontos. O corpo de Cruz estava inteiramente coberto de suor, e com o tempo esfriando antes do por do sol aproximava-se a hora de terminar com a partida. Cruz resolveu arriscar: ao invés de avançar em direção à cesta, correu na direção oposta e, do outro lado da quadra, atirou a bola, acertando o alvo. - Três pontos! – Cruz gritou, vitorioso. - Que três pontos?! – Jedi gritou de volta, indignado – Você pisou fora da quadra, que eu vi! Foi falta isso aí! - Pisei dentro! Oh, mana, pisei dentro ou fora?! - Hã... – A irmã de Cruz estava em dúvida – Daqui não deu pra ver. - Exatamente! Pô, Cruz, a gente não tinha combinado de não fazer três pontos desse canto, que ela não consegue ver direito sentada ali?! - Afe, isso foi lá no primeiro jogo! A gente nunca mais falou nisso! - Porque a gente nunca mais conseguiu fazer três pontos dali! Qual é,
Cruz, tava vindo aqui escondido durante a quarentena pra treinar e não me contou?! Dizendo isso, Jedi avançou contra Cruz, caindo em cima dele para dar-lhe um soco. Cruz revidou. Não podia haver um jogo de basquete entre eles sem que em algum momento partissem para a porrada um contra o outro. E foi nesse momento que Cruz percebeu uma coisa: - Caraca, maluco, você estava se poupando o jogo inteiro só pra me bater?! Jedi não disse nada, mas o olhar dele foi toda a resposta. - Ah, eu te mato, seu desgraçado! –E rolaram pela quadra, esganando e puxando os cabelos um do outro. E então riram. Começaram a rir ao mesmo tempo. Até a irmã de Cruz riu. Jedi podia ter passado por tudo que passou, mas continuava o mesmo. - Muito bem, vamos acabar com isso! – Gritou a irmã de Cruz após todo mundo se acalmar – Quem fizer cesta agora ganha o jogo! Estão prontos?! Cruz e Jedi se levantaram e ficaram a postos no centro da quadra. Sorriam um para o outro, com fogo nos olhos. - Vai! – A irmã de Cruz soltou a
bola.
Eduardo Luiz Silveira – A melhor idade Itapevi-SP
I Quarenta anos vividos Com impulsividade, Em busca de sonhos Que podem ou não ser realidade.
O céu é o limite Sem medo de aventura, Todo caminho seguido Exige coragem e bravura.
Muito mais que crescer, Crescer e aprender, Tentar a todo custo Sem nunca retroceder.
Amar a quem se ama E não pensar em ser rejeitado, O amor puro e verdadeiro Pode estar do meu lado.
Se para muito o momento em que nascemos É o momento em que aos poucos morremos, penso que a vida aos quarenta E a idade em que, de fato, vivemos.
Olho para o passado, E valoroso tempo que vivi. Em mio a idas e vindas Quão bom chegar até aqui. II Quarenta anos vividos Que me fazem chorar e sofrer Contudo, a fé e a esperança De não e deixar abater.
A maturidade que nos permite Agir com total lucidez, Abrir mão de toda arrogância, Presunção e altivez.
Amor aos quarenta anos Já não é ilusão nem fantasia E nem por isso é desprovido De libido, intensidde e energia.
Se sou jovem aos quarenta, Se a minha vida cedo ou tarde cessará, Sei bem que não estou perto do fim, Vivo dia a dia, o que virá.
Por mais que o tempo passe, Não posso deixar de perseverar. Passado de lembrança, nostalgia, Presente e futuro de bem-estar.
E quando eu estiver a beira da morte, Não me arrependerei do que vivi. Com a mesma ternura e sensibilidade, Quão bom para chegar até aqui.
Elísio Vieira de Faria – Retrato Brasil São José do Rio Preto–São Paulo
Velho país sem juízo, Teus muitos anos Muitos de teus danos, Desvelam-te: - Madrasta pátria!
Terra fria, chão duro, Sob o mesmo chão da escravatura, Ainda marcham cabisbaixos Descamisados, teus enteados esfomeados!
Teu progresso, pátria vil, Rubras cascatas destruídas, O sangue mulato pariu!
Ah, mátria cruel, Teu manto longo, enodoado, Defraudado tecido bordado, Salpicado com pretas lágrimas, Reluzente do escalpo indígena, Em cruz do morticínio feminino! Não tens a sensibilidade romântica! Discurso há muito extraviado, Do que perdeste e nunca o tiveste: Véu rasgado, em manto adernado, Oh, gleba cruel, rude mãe de Vidas pequenas, vidas ilhargas!
Noutros quinhentos, oh, mátria, Tudo igual: desflorestamento, Desbrios e a romântica misoginia!
Capitão do mato em triste extermínio, Retrocesso educacional, mordaça. O avanço da cultura do estupro, A exclusão da inclusão!
Tuas doidivanas, mátria infeliz, Tuas insanidades, teus desvarios, Confederam-me a Drummond: - É preciso esquecer o Brasil!
Evandro Nunes - Um rei ameaçado de extinção São Luís-MA
O rei dos animais está desaparecendo Culpa do homem com seu instinto cruel A indústria do turismo, a caça por troféu O felino de cabelos longos vai perecendo
Mas enquanto a matança está crescendo Os covardes com as suas mentes insanas Farão se calar os urros nas terras africanas Pois com o tempo leões não mais existirão. Porque no mundo há mais estátuas de leão Do que leões vivos nas extensas savanas!
Ameaçado em seu reino, eu nunca pensei Essa fera vai se extinguir em pouco tempo Devido ao descontrole do desmatamento Vulnerável à extinção, o leão ainda é rei?
Daqui a anos esse felino não mais verei Porque o homem tem atitudes levianas Os rugidos da fera nas matas africanas A violência dos homens os extinguirão. Porque no mundo há mais estátuas de leão Do que leões vivos nas extensas savanas!
Evandro Valentim de Melo – O último pedaço Brasília-DF
Não apenas uma ou duas, mas várias vezes e dissimuladamente, Fabiano prestava atenção à conversa de três colegas de trabalho. O trio sempre abordava o tema relacionamento de casais.
Verônica, já casada, compartilhava exemplos diversos, ora a favor, ora contra o matrimônio; Maíra, cujo namoro se avizinhava de completar um ano, a ouvia atentamente e, vez ou outra, contava, ela própria, maravilhas da relação com o parceiro, como se em lua de mel estivesse; Rejane, a tudo observava e absorvia como esponja imersa em água. Ela, cultivava, com incrível intensidade, o secreto desejo de se casar, porém, há tempos não engatava quaisquer namoros ou sinônimos que se queira dar a relacionamentos mais duradouros entre duas pessoas. Ela sentia verdadeiro pavor de “ficar pra titia”. O medo se agigantou, ainda mais, quando percebeu a aproximação dos quarenta anos de vida. Amigos, Rejane tinha-os aos montes, mas nenhum deles, nenhum mesmo, jamais arriscava avançar para além da fronteira da amizade. Às quatro e meia da tarde daquele dia, seria comemorado o aniversário do chefe da equipe. Todos se cotizaram para que fossem adquiridos salgadinhos, uma torta, sucos e refrigerantes. Singela celebração, para não passar em brancas nuvens o apreço para com o aniversariante. Ocorreu como sempre se dá nessas ocasiões: canta-se ‘parabéns pra você, nesta data querida...’; todos felicitam o protagonista do dia; a pedidos, ele faz breve discurso; entrega a primeira fatia do bolo a alguém que lhe é merecedor etc. Os mais famintos, com sofreguidão, comem e bebem o que conseguirem alcançar antes dos demais. A torta, especialmente escolhida, em deferência ao chefe, dado o fato de ele não gostar de chocolate, foi uma com recheio de nozes. A opção agradou geral. A maioria se fartou.
Caso alguém se atentasse a todos os pormenores, perceberia os olhares de duas pessoas à mesma direção. Sob o prato com resquícios do enfeite que cercava a torta, restava apenas a última fatia. Equidistante a posição deles em relação à guloseima. Fabiano e Rejane, assim como gatunos concentrados em capturar a presa desejada para refeição, aproximaram-se da torta. Lentamente. Apesar de focados, ambos perceberam o mútuo interesse pelo mesmo objeto de desejo. Rejane cultivava a esperança de que o cavalheirismo, raro, mas ainda presente em alguns homens, para com as mulheres prevaleceria, e Fabiano abriria mão do derradeiro pedaço de torta. Fabiano supunha que a compreensão feminina para com o maior apetite masculino prevaleceria e Rejane cederia a vez a ele, colega sempre tão prestativo. Suspense. Chegaram ao mesmo tempo à mesa em que estava o sedutor pedaço de torta. Estabeleceu-se o diálogo transbordante de segundas intenções. — Esta foi a melhor torta já servida nas comemorações – disse Fabiano. — Concordo, deliciosa. Excelente escolha. – Complementou Rejane.
Fabiano pegou dois daqueles famigerados copinhos descartáveis, tão odiados pelos ambientalistas, com refrigerante. Ofereceu um deles a Rejane e comentou:
— Minha avó, que Deus a tenha, era um figuraça. Ela contava, no jeito simples, mas sábio dos sertanejos, que quando uma pessoa solteira, homem ou mulher, come a última porção ou o último pedaço, ou a última unidade de alguma iguaria, tal pessoa ficará para sempre encalhada. Será o titio ou a titia; a madrinha ou o padrinho dos filhos dos irmãos, dos amigos... Você já ouviu essa crendice alguma vez, Rejane? — Sinceramente, não. Deve ser mais uma dessas invenções que as pessoas da roça contam. Com licença, Fabiano, acho que a Maíra me chamou, creio que ela precisa falar comigo. — Não vai querer a torta? Perguntou Fabiano, gentilmente. — Não, obrigada. Estou satisfeita. Preciso ver o que a minha amiga quer. Ingerido o último pedaço, findava a comemoração. Trabalhadoras e trabalhadores retornaram ao labor. Havia muito o que produzir até às dezoito horas.
Flávio Rubens Machado de Queiroz – Prosaicos 1 Cabo Frio-RJ
armadilhas, ardis, alma rasgada coluna armada no meio do bombardeio a manhã suspira, agoniza, negar-se três vezes cicatrizes profundas
a realidade nos atravessa flechas envenenadas julgamentos, marginais crucificados cortejo de homens mortos provisória eternidade resistiremos? resistirão?
obrigaram-nos a sonhar abateram-nos com pesadas mãos francos atiradores posicionados tomando de assalto os castelos de areia sob a força dos fuzis alvos móveis, medo sobreposto pesadelos oferecidos nas prateleiras dos supermercados
explorar o atlântico da morte calvário esculpido em pedra sabão inquisição, fogueiras, tiros vender o sangue em leilões baratos santos e demônios povoam os nossos enganos
quem nos assassinou?
Gardel Dias da Assunção – Interior Fortaleza-CE
Eu me lembro da serração do interior que vejo tão rápida quando ali passo na estrada lisa e azulada. É o pé da serra feito uma espessa listra esverdeada que passa suspensa bem em cima de minha cabeça. É a reta longa, é na curva perigosa das cidades do interior e que não é tão interior assim.
Uma boa lembrança – o sino da igreja, da cantiga na radiadora pela manhã cedo. Era pela manhã que ouvia, como despertador, a música da igreja, religiosamente todas as manhãs. É morada antiga, são lembranças da década passada nessas cidades do Maciço de Baturité, da linha de ferro, do trem que demorava, do tempo quente num sol de meio dia e do banho no rio.
Ficávamos à toa no meio do dia, o sol fervendo nossas cabeças, ali víamos o trem cargueiro passar, caminhávamos na trilha em busca do trem. Era o pé da Serra e o vento frio, são boas as memórias da infância quando ainda nem sabia pensar. Era o verde da serra em período curto de neblina, era uma curva perigosa que fazia vítima alguém descuidado. Era o ônibus que passava, a gente o notava vindo à curva da Casa Branca –que não existi mais, era o horário e a partida. Era uma leitura musical e instrumentos, caminhada da igreja, depois os dobrados e depois o lanche. Era a biblioteca pouco visitada – os livros pouco lidos e que um dia tomei um pra mim, era o horário da escola numa carona qualquer. Era de tudo um pouco, a tv na praça e com notícias de mortes, era o futebol na praça, era uma conversa na praça, quase tudo sabíamos na praça: coisa de cidade pequena.
Gedeane Joás Costa – Tempo de Criança Recife-PE
Brincadeira de roda, queimado, barra-bandeira, o balanço da praça, pular corda, empinar papagaio, tudo é brincadeira do meu tempo de criança. Andar de bicicleta nas ruas, ainda esburacadas, cair na lama, sem ser notada, e tomar banho de mangueira, parece ser besteira, mas meu tempo de criança, guardo boas lembranças. até se molhar assim completamente. Tudo isso são lembranças do meu tempo de criança e que se foi assim, tão de repente... Apostar corrida, cabra-cega, esconde-esconde, pega-varetas, pega-pega, Emília e Visconde,
concurso de beleza, bolinhas de sabão, tudo isso são lembranças do meu tempo de criança. Pegar goma de mascar e soprar lentamente até a bola estourar, andar na chuva,
Gilliard Santos da Silva – Vaso Quebrado
Fortaleza-CE
Deixei cair, mas sem querer – é claro! O que farei, então? Nem acredito... Eu derrubei o vaso mais bonito
E agora, olhando os tantos cacos, paro.
Estou com muito medo... estou aflito!
Era algo valioso, artigo caro; Não posso mais sequer fazer reparo... Desesperado, aqui, sozinho, grito.
E tomo um choque de realidade Ao me despir da nítida vaidade E planejar as próximas ações...
Levanto e saio em vagarosos passos, Deixando para trás os estilhaços Das minhas velhas, doces ilusões...
Porto Velho-RO
O mundo me apavora, todavia, Um mensageiro surge e, assim, perante O facho carregado em seu semblante, Renovo sentimento que dormia.
O brilho imaculado me garante Suporte ao sonho cheio de euforia E pousa na esperança que, arredia, Estava no meu peito, relutante.
Pincelo as maravilhas do futuro
Nascido deste encontro alentador
E nele os pensamentos enclausuro.
Infindas cores posso decompor Nos olhos da criança, jorro puro Do impulso desta vida: a luz do amor!
José Manuel da Silva – Diário da Pós-Morte Rio de Janeiro-RJ
1
viajante do tempo da memória
nu, exposto, intenso, profundo, nua, exposta, intensa, profunda
viagem tosca, pessoal, infundada
a não procura do que se não pode encontrar
um começo sem fim, um meio no esteio
rimas de vida e de morte
a chuva e o sol, o peixe e o anzol
o descanso no meio do nada
a vida é o diário do existir
pré-morte sabida
a morte é a certeza da vida
pós-vida anunciada
o ser, caixão do existir
amor, um tédio previsto
ódio, um mal necessário
a vida começa sem querer
prossegue conduzida, impelida, levada
a vida é imitação, frio e quente, tepidez ocasional
urina e fezes, máscara perfumada
é o balbucio da existência, grunhido de sobrevivência
a morte latente, a pré-morte
tudo é perto
o sonho é a própria realidade
a sensibilidade é toda possibilidade
prazer a esmo
pegar, largar, repegar, fugacidade do desejo
a vida que surge, emerge, brota do não ser
2
A cúpula, a cópula, o crápula, a célula
normas, a vida regulada, prazos, a desumanidade sancionada
sexo, tesão, amor quando dá, emoção, paixão, o tudo do nada
mediocridade, crueldade majoritária, ser humano convencional
essência, vida em si, parte ínfima do ser, destino improvável do pensamento
Vida que passa, intensa, ardente, absoluta
preparação, procriação, abnegação, idolatria
suor e sêmen, líquidos e odores
o devaneio surdo de alguns, o desvario alucinado dos demais
querer o impossível da impossibilidade
fascínio intido e incontido
intensidade onírica que perpassa o consciente invivido
o abalar das estruturas, o explodir das rupturas
o afã, o açodado da incoerência
roupa e corpo, maquiagem da morte prevista
A morte pairando, a vida pulsando
amar, desamar, procurar, fantasiar, desejar, despejar o ser em outro ser
A vida que tateia, prepara, enaltece o não ser
É na dor que nos encontramos todos: sofrimento, mazelas, traumas
Somente a dor ensina, só a angústia liberta
Do dia a dia inefável, incansável da repetição modorrenta do viver comum
Vida a dois, vida a três, vida a mil
Solidão acompanhada, divertida, bebida e comida nos botecos e cômodos do anoitecer
Procura incessante por comezinhos prazeres da carne
Satisfação iludida e adiada das necessidades do espírito
Dúvidas insolúveis da existência, de onde, para onde, por quê, para quê
Perguntas indiscretas do corpo e da alma
A tensão do não saber, a ilusão do prever, a frustração do irreceber, do desmerecer
A dor do corpo, o desgosto da mente, o padecimento da alma
Felicidade distante, imprevisível pausa no contínuo desvelar obscuro do vir a ser
O presente é pesado, carregado, pleno de privações
O passado é um tênue recordar o que poderia ter sido
O futuro é cheio de ilusões, amontoado de desejos obscenos
Viver é dizer adeus a um trem que parte eternamente, estações diáfanas e estadias fugazes
Sedução e assédio, corrupção e desapreço, sons e imagens
A vida que se faz pré-morte
Avaliar, repensar, planejar, abdicar do prazer
O tédio, a alegria, a fobia, o médico, a musa, a demasia
O saber que consolida a dor da realidade, da pobreza, da política
A cidade, o estado, o país e o mundo – dimensões do mesmo fracasso humano
A vida que oprime, labuta, amortece o ser
a religião segrega. a política estraga. a escola deforma. a família deturpa. o dinheiro vicia. o trabalho desanima. o sexo aproxima. o amor ilumina. tudo é nada. nada é muito. medo e lamentação. a vida se esvai. lentamente. claramente. assiduamente. vida que é pré-morte morte sentida pré-anunciada. a dor de saber. a dor de não saber. a identidade perdida. a velhice instalada. ignomínia. tudo é longe. longo. desapego e frustração. frio e calor. desfaçatez. desonra. masmorra. cair do precipício. perceber as marcas da existência. sentir as verdadeiras agruras da indolência. ruborizar-se com as vergonhas perpetradas. experimentar a dificuldade de um sopro mais longo do falar. constatar. declinar. queimar a última chama do ser. a vida que declina, conspira, destrói o ser
5
A alma eufórica, eufórica alma, incontida alma em vida
Alma apocalíptica, elíptica, explodindo de desejo
O incontido no contido ou vice-versa
O apocalipse é aqui, agora, no corpo, na mente, na alma, na vida
O terror é a vida torta, insossa, cabisbaixa
A droga, a bebida, a religião, o amor, a devoção
Sinônimos cruéis, indizíveis, proibidos, reprimidos
O apocalipse é produto, infame, nefando, a morte em vida
Vida-suplício, fuga, medo, inveja, aflição, sexo e amor
Metades de moedas diferentes
Escola, trabalho, incoerência imunológica, bem-estar, edredom, alma marrom
Sexo e amor, incoerência original, pecado, prazer, livre associação
O apocalipse é o querer sem poder, em vida
Satisfação viável na morte, luzes e sombras
O poema é um resumo da vida, sofrida, ardida, aturdida, contrita, feliz e desfeliz
Conformada e desapegada
Morte morrida
Morte matada
Morte autoinfligida
Toda vida acaba na morte
Fato
A vida é o prenúncio da morte, inegável
A vida é o diário da pré-morte
A morte é o diário irreversível e previsível do pós-vida.
Iraci José Marin – Sonho Caxias Do Sul – RS
Ali, no espaço de terra umedecida pela água do rio, que balança em ondas, estão as borboletas multicores. Às vezes, muitas delas, ou todas, revoam, colorindo o ar vazio. As crianças também se divertem na beira do rio. Umas atiram pedras para ver a água se movimentar em círculos, outras correm com os braços abertos para ver o voo impreciso das borboletas que fogem para voar sobre o rio. Alfredo é o mais atrevido de todos. Decide levar uma borboleta para a mãe. Ele foca a amarela e corre. Todas alçam voo rápido e ele não consegue apanhá-la. No chão úmido fica apenas a preta. Alfredo olha para ela e a imagina igual à noite. Mamãe não vai gostar desta, ele pensa. Ela sempre fala que borboleta preta vira bruxa. Desiste. Quando anoitece, e ele jantou polenta com leite, Alfredo sai da casa e fica a olhar para a extensa noite que encobre o pasto, o galpão, as plantações e a mataria. Nisto, vê uma borboleta bem perto de si. Olha melhor e ... é uma borboleta preta. Ele a espanta com a mão e ela voa alto, entrando na noite. Não dá qualquer atenção para aquilo e vai para a cama. Adormece logo. No meio do sono, ela aparece e lhe diz: - Você não quis me pegar, na barranca do rio, e me trazer de presente pra tua mãe. Quando anoiteceu, voei até tua casa e, de novo, você não me quis. Mas eu voltei... - Eu não quero você. Não gosto de você. - Mas eu sou tão inofensiva como qualquer outra. - Você é feia. E vira bruxa! Ela suspira e retruca, com leve sorriso: - Eu não me transformo em bruxa. - Não quero saber... - Você precisa descobrir a minha beleza. - Você é feia! Passa-se um instante. - Eu vou ficar no teu quarto pra cuidar de você. - Não precisa cuidar de mim. A borboleta não lhe dá ouvidos, voa para fora do alcance do olhar dele e pousa na cômoda.
No instante seguinte, ele vê borboletas que ora se transformam em peixes, ora em minhocas, em peixes outra vez, e ele de repente fica tonto e se agarra num galho de árvore do barranco para não cair no rio, mas o rio aumenta de volume sem explicação, então começa a nadar, nadar e nadar pelo rio sem fim. Aquela visão apaga-se aos poucos, mas aí é uma névoa que enche o quarto e ele não vê coisa alguma. Ouve um barulho forte e estranho e logo está em frente à janela. Abre-a e, com espanto, vê a borboleta preta ali, pairando no ar, como que suspensa por um fio invisível, desde as nuvens. Ele fecha a janela rapidamente e respira fundo. Não é possível que esta borboleta vá me perseguir o tempo todo. Se aparecer de novo, vou pegá-la e acabar com ela de vez. Volta para a cama e deita sobre o rio, sentindo a brancura da água acarinhar suas costas. Navega calmamente, parece que está numa jangada, depois numa balsa feita de toras de árvores, o rio fica enorme e o sol enche de claridade os seus olhos dormidos. Passa por ele a figura de uma bruxa e ele se lembra da borboleta incômoda. Ela não me abandona, falou para si e balançou a cabeça como para se livrar daquela visão medonha. Sente novamente o lento balanço da navegação. Num momento de susto, se levanta e divisa, lá na barranca do rio, a borboleta preta voando solitária. Fica observandoa enquanto ela voa e revoa, até que vem pousar sobre a água, bem perto dele. Leva um pequeno susto vendo-a esvair-se, coloridamente, e seu olhar nada no
ar.
A mãe o chama uma, duas vezes. Afinal acorda, esfrega as mãos no rosto para se certificar de que está realmente acordado, olha ao redor e então encontra uma borboleta preta pousada sobre a cômoda.
Juliana Moroni – Schadenfreude Ibaté-SP
Contam dinheiro, sorriem das lágrimas alheias, satisfazem-se nas espoliações de miseráveis, cercados por grades de exclusão, abandonados em bolsões de indigência,
sem água, sem comida, nem dignidade.
Calculam seus lucros em bolsas de valores,
corpos sem faces, identificados por números, sobe ou desce, despacho para o paraíso ou delibero para o inferno, na terra dos suplícios, mortes são iguais a dólares, avaliam o sorriso do rentista e a penúria dos abandonados pelo Estado, a balança pende a favor dos endinheirados.
“Só mais um infeliz”, afirma sarcasticamente o milionário com sorriso de ouro, metal nos dentes, vazio no peito
e uma ganância que beira ao desespero.
Coroa de espinhos pelo corpo, mais um pobre imolado pelo neoliberalismo que o apresenta como mártir,
apregoando a crença de que os sacrifícios dos humildes
salvam a humanidade.
Os velhos endinheirados riem da situação caótica, afundados em poltranas de couro, fumando charutos, quanto maior a quantidade de pobres, mais dólares nas suas contas bancárias. As madames escolhem as jóias mais caras para enfeitarem seus corpos em cima de cadáveres.
É a lógica do capital, os poucos têm muito, os muitos pouco tem, na perversidade diária camuflada pelos jornais, a culpa é da humanidade e dos sete pecados capitais, atribuídos somente aos pobres,
pois os ricos são perdoados nos seus paraísos fiscais.
Schadenfreude, regozijamo-nos na tua desgraça, cotidianamente estampada na lida diária, nos jornais escritos e falados, esfregada todos os dias nas nossas caras,
através da putrefação da moralidade dos endinheirados, na neblina que cobre a alma das senhoras abastadas, encarceradas em suas futilidades,
preocupadas com as roupas e os jantares pseudobeneficientes,
caridade ao invés de solidariedade.
Schadenfreude, alegramo-nos com a tua tristeza, beneficiamo-nos da tua pobreza
em bazares de caridade, vendendo obras de arte, as quais não entendemos o significado, para alimentar os desvalidos, desprovidos de dignidade.
Schadenfreude,
deleitamo-nos com os golpes que a “vida” te desferiu,
causamos a tua miséria material através de nossa mendicância espiritual, abrindo espaço para o golpe final, tua morte física, nossa falência moral.
Júlio Ernesto Bahr – Um certo domingo infernal Londrina-PR
Aquele domingo ficou na minha memória. Assim como faço todos os meses, saí de casa pontualmente para ir à a reunião na Academia de Letras. Mas, diferentemente das outras vezes, já saí vestido com a pelerine (a capa vermelha com fios bordados a ouro que nós, acadêmicos, usamos formalmente nas reuniões). Para quê?! Três quarteirões adiante, fui parado por uma viatura policial. Estavam em três. Provavelmente ficaram curiosos ao me ver vestindo uma capa vermelha, de cor berrante. Delicadamente solicitaram-me que saísse do carro e entregasse meus documentos. Intrigados, pediram-me explicações. Comecei a falar da Academia. De como nos reuníamos para falar e discutir sobre literatura, ciências, artes, figuras históricas... mas senti que para os policiais eu estava falando grego. Começaram a cochichar entre eles. – Seu nome é Jurandir? – Sim, isso mesmo! Jurandir Costa. – De qual seita secreta o senhor faz
parte?
– Seita secreta? Do que estão falando? – perguntei com educação. – Sim, seita. Grupo. Gangue. Estamos carecas de parar pessoas mal intencionadas. Vestem capas, camisas com desenhos, transportam fetiches e objetos estranhos, são todos mal intencionados. – Não pertenço a seita nenhuma –retorqui. – Nós vamos revistar o senhor! Tire a capa! Fizeram-me encostar de frente para a viatura policial e começaram a me apalpar. – O senhor está transportando drogas enroladas na cintura!!! – Mas como assim? – perguntei, já assustado. Levei uns dez minutos para explicar que eu estava trajando uma cinta elástica receitada pelo meu médico, para conter a hérnia inguinal pós-operatória. Fui obrigado a soltar a cinta, abanei-a para que se certificassem de que nada havia de ilegal na cinta. – Por favor, cidadão, tire os sapatos – pediu-me um dos policiais, já com voz que demonstrava irritação. Tirei os sapatos. Outro dos policiais os chacoalhou, apalpou e – obviamente –não encontrou nada de ilegal. A estas alturas, já havia um grupo de curiosos nos circundando. Não estavam entendendo nada! – O senhor sente-se na parte de trás da nossa viatura. Vamos checar seus antecedentes – ordenou-me o policial que comandava o trio. – Jurandir Costa. Você tem um mandado de prisão em aberto! (Notei que o respeitoso “senhor” já fora substituído por “você”). A informação é da nossa Central. – Deve ser um engano. Eu não tenho mandado de prisão nenhum. Provavelmente será um homônimo. E vou ligar para o meu advogado agora mesmo! – Você não vai ligar para ninguém. Seu celular está aprendido. Vamos resolver esta pendência lá na delegacia.
Na viatura, já rumando para a delegacia, o policial que estava ao meu lado, ironizou: – Então, Jurandir, pensou que ficaria em liberdade para sempre? Mandado é mandado, quem tem mandado pendente vai pro xilindró. Chegamos à delegacia. Colocaram-me em uma sala e ouvi o trinco sendo acionado quando fecharam a porta. Era o que poderia se chamar de “précela”. Lá esperei por um longo tempo, até ser levado à presença do delegado. Já se passara metade do dia. – Quero meu advogado – foi a primeira coisa que falei, ao chegar na frente da “otoridade”. - E quero meu celular de volta. O delegado pediu-me calma. Devolveu-me o celular, com mãos trêmulas consegui ligar para Itamar, meu amigo advogado. Aguardei que ele chegasse à delegacia. – Quero também meus documentos, que o policial confiscou –falei para o delegado. E a pelerine, digo, a capa!
– Seus documentos não estão em nosso poder – disse o delegado. - Devem ter sido perdidos pelo senhor... e conferimos o mandado de prisão, referese a um homônimo. Nada consta contra o senhor. O senhor está livre para sair. – Onde está meu carro? –perguntei. – Nós também não sabemos do seu carro... – Como assim? Meu advogado deu-me um safanão e arrastou-me para fora da delegacia. Disse-me que resolveria os problemas judicialmente. Deu-me uma carona para casa.
Não descreverei a discussão que tive com minha mulher. Gritou na minha cara que eu era um mentiroso, que vestira a pelerine para “fazer de conta” que iria à reunião da Academia... mas como eu demorara para o almoço, ela ligara para amigas, esposas de acadêmicos, que a informaram da minha ausência. Certamente eu “me encontrara com uma amante...” Nem adiantou meu amigo advogado testemunhar a meu favor: - Mentira dele, ele está protegendo você, o Itamar é seu amigo! – foi a reação da minha mulher. Saldo do dia: fui preso por estar com uma capa vermelha da Academia de Letras, ordenaram que eu soltasse minha cinta inguinal, me fizeram tirar os sapatos, confiscaram meu celular, perderam meus documentos, ninguém sabe onde ficou meu carro... e agora minha mulher deixou de falar comigo na suposição de que eu teria me encontrado com uma amante??? Minha mulher me expulsou de casa aos berros. Abandonei a Academia naquele domingo mesmo. Rasguei minha pelerine em várias e várias tiras.
Kamila Bicalho Fraga – A mensageira ruiva Vila Velha-ES
“Uma história inspirada em Jannetje Johanna Schaft” Tudo que eu podia encarar era o muro manchado e as mechas de fios negros que pendiam no meu rosto. Tinha medo de que, caso eu me virasse, perdesse a coragem e o orgulho que me fizera chegar até onde eu estava. Já resisti por tanto tempo, não podia fraquejar agora. E eu sabia que fraquejaria. Eu sou humana. Ainda não sabia como eu deixava o desespero que apertava meu peito se mantivesse oculto. Mas sabia que tudo isso logo acabaria.
Tudo havia acontecido muito rápido. Eu até diria que as coisas começaram quando eu ainda era jovem, mas não se passaram nem cinco anos desde que tudo começou. Eu completaria 25 anos daqui a alguns meses, mas isso agora já não é mais provável. Tudo começou muito sutil e disfarçado de boas intenções. Felizmente não foi só eu que enxerguei a loucura que aqueles que começaram a nos dominar queriam impor. Meu país estava sendo assolado por ideias insanas e desumanas que se tornavam leis e tinham que ser cumpridas, mesmo que à base de violência, ou até mesmo da morte, como já estava começando a acontecer. Eu não podia ver o que acontecia calada. Podia ser patriotismo ou simplesmente loucura, mas eu encarei as coisas e me afiliei a resistência. Sabia dos riscos. Também sabia que era necessário.
Comecei como mensageira. Era um trabalho fácil, já que eu era mulher. Meu rosto jovem era comum e sem notoriedades, quase beirando a inocência. Se não fosse por meu cabelo ruivo, eu poderia sempre passar despercebida. De recados mais simples, fui ganhando confiança de meus companheiros. Mas sabia que podia fazer mais. Insisti até que me permitiram praticar com armas. Haviam poucos homens e eu sabia que poderia ser útil. Em poucos meses eu já havia realizado meu primeiro assassinato. Sangue de um homem que se aliava a loucura daqueles alemães fanáticos. Quantos ele já não havia matado com suas decisões? De um em um, nossa resistência começou a eliminar os que estavam trazendo o nazismo para dentro da Holanda. Mas não era de tudo eficaz. Não estávamos perdendo, mas aquilo também não era ganhar. De qualquer modo, eu me recusava a desistir. Fazia tudo o que eu achava ser estritamente necessário para nossa causa. Continuei espionando
políticos e ameaçando suas vidas. Também os matando quando necessário. Transmitia mensagens, informações e resultados de minhas pesquisas aos nossos aliados nacionais e de outros países. Mas o desespero começava a assolar meus companheiros.
Descobrimos um dos líderes nazistas mais importantes do país, e sua forte influência era responsável pela ocupação dessas ideologias no nosso governo. E como de praxe de sua posição, ele não era um alvo fácil. Fui incumbida de matar sua esposa e seus filhos. Mas matálos não tiraria os frutos podres do governo, nem acabaria com a guerra. Eu não era assassina de crianças inocentes nem de esposas subordinadas a maridos cruéis e adotados de ideologias que só beneficiavam a si próprios. Eu não podia me rebaixar a isso. O fanatismo já estava impregnado e eu sabia que não ia fazer diferença alguma. Matá-los não me faria ser melhor do que aquele “führer” como seus seguidores gostavam de chamá-lo. Eu queria salvar meu país maneira certa.
Voltei a ser apenas mensageira, mas com toda a repercussão da guerra, eu deixei de passar despercebida. O governo começou a me caçar e eu podia ver alguns cartazes pelas cidades, recompensando quem denunciasse a mensageira ruiva. Eles tinham meu rosto e o destaque enfático nos meus cabelos. Na mesma época, a notícia de que meus pais haviam sido levados para algum campo de concentração chegou até mim. Tentei, por meus meios, descobrir a veracidade disto, mas não encontrava nada findado, com o risco de ser uma armadilha. Não me entreguei. Entretanto, também não desisti de descobrir o que havia acontecido com eles. Enquanto não descobria a veracidade daqueles fatos, continuava regendo meu trabalho. Tingi meu cabelo de preto para não ser reconhecida. Mensagens atrás de mensagens.
Rumores de que os aliados estavam vencendo e que a guerra podia estar se aproximando do fim. Talvez isso tenha me feito relaxar ou talvez era o cansaço de tantos anos lutando.
Era início da primavera deste ano, e a população estava quase voltando a viver sua vida normal, se não fosse algumas formações de soldados passeando pelas ruas frequentemente. Eu também passava por lá, da forma mais discreta que eu podia, como fizera por tantas vezes. Foi então que um dos jovens armados que passavam por perto gritou de repente. Eu me assustei e acabei parando involuntariamente. Retomei meu caminho, enquanto ouvia uma leve discussão atrás de mim enquanto me afastava. Apertei o passo, mas já era tarde. Eles começaram a correr atrás de
mim e eu não tive como fugir. Corri o máximo que minhas pernas permitiam, mas quando dei por mim, estava estirada no chão com os braços presos nas costas sem conseguir me mexer. Tudo que eu consegui entender foi que o soldado que gritara havia reparado nas raízes do meu cabelo. Eu havia esquecido de tingir. Estavam ruivas e ele me reconheceu. Eu não podia acreditar... Como pude? Estava me sentindo uma completa imbecil.
Eu tive forças para resistir por algum tempo, mas haviam chegado momentos que eu não conseguia mais contar os dias. Talvez tivessem se passado uma semana, um mês ou até um ano. Eu não saberia dizer. Tudo o que eu sabia era que eu estava vivendo um inferno. Eles queriam os nomes daqueles que estavam comigo na resistência. Não entreguei ninguém. Mas não podia garantir se era por total fidelidade ou se era porque tudo o que eu conseguia pensar era em quanto a dor me domava. De qualquer forma, minha convicção se manteve. Talvez seja por isso que eles me trouxeram para cá.
Eu podia sentir todos aqueles canos metálicos virados contra mim. Assim como todos aqueles olhares ansiosos. Não sabia quantos, nem à que distância estavam, mas eu sabia que estavam lá, apenas aguardando o sinal. As manchas negras eram de sangue seco respingado espalhados pelo concreto. Eu já não sentia mais meu corpo. Era como se o tempo parasse e toda aquela espera estivesse se tornando uma eternidade. As dores que me assolaram durante os últimos dias de mutilações e torturas infindáveis que fui recebendo não passavam de vestígios.
Tudo o que me passa pela cabeça agora é se eu fiz alguma diferença em todos aqueles conflitos. Tantas mensagens, tantas mortes. O quão perto a libertação do meu país está? De qualquer forma estou feliz pelo que fiz. Pode ser patriotismo ou simplesmente loucura, mas eu quero acreditar que tudo ficará melhor agora. Eu estou em paz. O tempo voltara a correr. Ouvi vários burburinhos das pessoas que me rodeavam e uma voz soou mais alto. Não entendi as palavras pois vários estrondos a acompanharam. Depois disso tudo ficou escuro e silencioso, mas ainda havia paz.
Karine Dias Oliveira – No encalço... Sigo! Nova Friburgo-RJ
A cabeça estava afiada Virava noites e noites à busca
Sabe-se lá atrás de que e o porquê Vencendo cansaços pelos cansaços Desconectados de sua verdade e de sua escuta interna...
Via partes de mim negociando Fatos de relações controversas e sem contrato Emoções postas à venda Em prol da paz... Perguntava-me Perguntava-te Indagando aos céus E nada...
Talvez a resposta não estivesse ali... aqui... sei lá!
Já ouvi dizerem que respostas moram dentro da gente Porém... sempre pensei que isso fosse loucura Não há explicação pra tantas buscas Se vivemos correndo atrás disso ou daquilo... São fatos sobre indagações Não se remetem aos desejos E, no encalço do desconhecido Os sonhos se atrelam
Porque são apelos Impulsionadas pela cotidiana decifração do que é a vida!
Guaiúba-CE
Se eu pudesse me tornaria vento Em uma linda tarde de outono
Só para fazer seus cabelos voarem E para organizar as flores caídas Em forma de coração para mostrar O quanto meu coração te ama E você pensaria no seu amado E eu continuaria ventando em vão.
Luísa Lima - Diego, meu amigo Santa Maria da Feira, Portugal
As minhas memórias transportam-me para o Diego da minha meninice, passada, em Maracaibo, na Venezuela.
Diego, ”o gorducho”, como lhe chamavam os hóspedes da pensão, era o meu fiel companheiro das brincadeiras.
Nos anos cinquenta, havia muitas ideias certas e também muitas ideias distorcidas. Uma delas era que todos os homens tinham que ser machos durões e heterossexuais.
O senhor Rodrigues, pai do Diego, era um fiel protagonista da bestialidade de alguns desses machos.
É certo que Diego era estouvado, ao ponto de fazer entornar a sopa dos hóspedes, nas suas correrias desengonçadas e sem travões, mas nada justificava o que eu presenciava, vezes sem conta.
Sempre que Diego cometia algum “delito”, a voz do senhor Rodrigues soava como o ronco de um hipopótamo. Desapertava o cinto das calças e fazia-o vibrar em riste, antes de o arremessar nas costas do filho. Os hóspedes ainda tentavam interferir: ” Ó Rodrigues, larga o miúdo. Que diabo, é teu filho! São coisas de crianças!”. Mas o senhor Rodrigues continuava a bater - lhe desalmadamente. Diego dardejava o olhar de horror no rosto do pai, mas não chorava. Eu fugia para a minha casa, contígua à pensão. As lágrimas ardiam-me nos olhos quase sem me aperceber. Na inocência dos meus seis anos, chorava porque não conseguia encontrar uma explicação para tanta violência.
Depois, logo que o senhor Rodrigues se acalmava, Diego vinha sentar-se na soleira da minha porta, para eu lhe acariciar os caracóis ruivos e lhe massajar as costas devagarinho.
Despedi-me de Diego num dia de tempestade tropical. Os nossos olhos alagaram-se em lágrimas, e os trovões reverberaram pelo céu num rugido tão intenso que fizeram tremer o empedrado do chão, debaixo dos nossos pés.
Muitos anos mais tarde, numa vila pacata deste pequeno país plantado à beira mar, Diego bateu-me à porta. Tinha-se transformado num jovem tão alto e tão forte que ocupava a porta da entrada por inteiro. Quando o reconheci, atirei-me para o seu peito grande e volumoso, como se aterrasse num almofadão, e ali permaneci alguns instantes a chorar de alegria.
Diego explicou-me que viera a Portugal com o seu amigo Bruno e que aproveitara para conhecer esta terra cinzenta, mas de brandos costumes. Ele tinha um ar radiante. Nessa tarde, matámos saudades do tempo em que eu inventava canções e ele era a minha plateia repleta de risos e aplausos.
No momento da despedida, Diego enfiou uma carta no bolso do meu casaco e disse muito baixinho: “ Lê só amanhã”.
Querida Inês,
Não imaginas a falta que me fizeste, quando te foste embora. O meu pai continuou cada vez mais bruto e eu não tinha as tuas mãos de fada pequeninas para me fazer esquecer o chicote. Escondi, no meio dos algodoeiros, algumas das bonecas que me deixaste.
Um dia, o meu pai apanhou-me abraçado a uma bonequita tua, aquela que tinha tranças atadas com laços amarelos, lembras-te? Ficou tão enfurecido que me chamou maricas e sovou-me como de costume.
À medida que fui crescendo, ele cismou que eu tinha que jogar futebol, mas eu detestava, e ele atiçava-me, rosnando entre dentes que eu era paneleiro. Eu tinha medo dos rapazes, porque eram agressivos. Só sabiam dar empurrões e passar rasteiras.
Comecei a sentir-me perdido. Nunca consegui sentir nenhuma atração física pelas miúdas, nem sequer pelas mulatinhas colombianas que já nascem a bambolear as ancas e riem até às orelhas. Só tu ficaste no meu coração como uma irmãzinha.
Existem dores na vida que de tão fortes quase se tornam eco da nossa própria existência. Mas acredito que Deus está do meu lado. Caso contrário, não teria colocado no meu caminho uma pessoa tão especial como o Bruno. Não me deito com mulheres, mas também não tiro o cinto das calças para lhes bater. Tenho por elas um grande respeito.
É provável que fiques chocada com estes desabafos. Se não conseguires compreender bem agora, mais tarde acabarás por compreender. Acredito que nunca deixarei de ser o Diego, o irmão da tua infância.
Tenciono partir com o Bruno para França brevemente, porque como ele é Português, precisa de fugir à guerra no ultramar.
Até um dia. Levo-te no coração. Diego
Quando acabei de ler esta missiva, abri as portadas da minha janela e quedei-me a olhar, numa espécie de entorpecimento, as flores brancas das árvores que baloiçavam sob a brisa do entardecer. Eu não conhecia o termo homossexualidade e muito menos conseguia imaginar o que Diego e Bruno fariam com o corpo um do outro. Apenas percebia que o tal Bruno fazia feliz o meu amigo de infância, e que devia guardar segredo de algo misterioso e especial.
Hoje a escorrer na idade dos cabelos brancos, apercebo-me de que a infância e a velhice são semelhantes. Em ambos os casos, vivemos uma sensibilidade tão pura, que quando o sol se deita com a lua, dedico ao Diego uma canção de embalar para que durma sossegado.
Marcel Novaes – A partida Uberlândia-MG
Maria Flor
O dia em que saí de casa, anos atrás, foi também o dia em que brinquei de escolinha pela última vez. Uma de minhas amigas, a Rita, tinha uma lousa de brinquedo e nós brincávamos de ensinar nossas bonecas a fazer tabuada e soletrar. Eu já sabia que ia ser a professora quando ficasse adulta. Os tocos de giz, sujos e rombudos, deixavam um traço irregular na superfície verde e áspera da lousa. A Rita tinha giz de várias cores e usávamos todas, produzindo uma mistura de manchas coloridas que depois esfregávamos sem conseguir apagar direito. Batíamos muitas palmas para que o pó de giz se soltasse e formasse uma bonita nuvem.
Naquele dia, era verão e o tempo começou a ameaçar chuva, foi ficando escuro e cada vez mais difícil de ler qualquer coisa. Tentamos continuar a brincadeira, mas logo ouvimos os gritos da mãe da Rita, chamando para casa — chamado de mãe era coisa que se atendia na hora.
“Onde você estava, menina,” perguntou minha mãe quando cheguei em casa. “Ia ficar na rua até que horas?”. “Eu estava com a Rita, brincando de escolinha”. Ao dizer isso, levei um susto e arquejei como se alguém me jogasse água gelada nas costas. Botei a mão na testa. “Mãe! Minha boneca! Ficou lá no gramado!”
Já ia me virando, mas ela me pegou pelo braço e disse que eu não poderia sair de novo, porque o Romildo logo chegaria em casa. Insisti, com os olhos já cheios de lágrimas. Minha boneca ficaria na chuva; pior do que isso, dormiria sozinha.
Minha mãe me mandou arrumar a mesa, o que era um trabalho muito simples: apenas três pratos, três copos, três garfos, três facas. O tempo todo eu olhava pela janela, esperando que a chuva parasse e eu pudesse sair correndo para buscar minha boneca. Até que o Romildo chegou. Como sempre, ele buzinou para minha mãe abrir o portão, o que ela fez imediatamente, debaixo de chuva mesmo, com a mão na cabeça tentando proteger o cabelo.
“Como foi o dia?,” perguntou ela. “Uma merda. A comida está pronta?”. Ele se sentou na cadeira, em frente ao prato vazio. Minha mãe me lançou aquele olhar que sempre lançava quando Romildo chegava em casa de mau humor. Em silêncio, pus a garrafa de água gelada sobre a mesa. Ele colocou água no copo e bebeu de olhos fechados, enquanto
minha mãe levava o prato dele até o fogão, para servi-lo.
“Macarrão com salsicha, de novo?,” ele perguntou, fazendo careta. “É o que tem,” disse minha mãe, “mas posso colocar milho”. “Eu não quero porcaria de milho nenhum. Não podia ter feito uma carne moída?”. “Não tinha. Amanhã eu compro.”
Começamos a comer, calados. Minha mãe só pensava em agradar o Romildo e eu só pensava na minha boneca. Ele acabou de comer, se levantou e foi tomar banho. Recolhi os pratos da mesa e coloquei sobre a pia. Minha mãe já foi chegando para lavar tudo. Eu disse a ela que ia para o meu quarto mas, em vez disso, peguei de mansinho a chave do portão. A chuva ainda caía, mas já não era forte. Saí devagar, sentindo aqueles pingos gelados nos meus braços e nas minhas costas. Corri a toda velocidade.
Os chinelos me atrapalhavam as passadas. A água da chuva batia nos meus olhos e meus pés chapinhavam nas poças. A boneca estava no gramado, onde eu a havia deixado. Apanhei-a e voltei imediatamente. Quando virei a esquina de casa, diminuí um pouco o ritmo. Estava cansada e ofegante. Mas a missão tinha sido um sucesso. Eu só tinha que entrar sem fazer barulho, ir até o banheiro e colocar o vestido molhado no cesto de roupa suja sem que ninguém suspeitasse. Passei pelo portão e encostei-o com todo o cuidado. Dei a volta no carro para passar pela garagem mas, parado na porta, com as mãos na cintura, emoldurado pela luminosidade que vinha de dentro da casa, estava Romildo.
Fiquei congelada, olhando para ele, que parecia uma estátua. Quando dei um passo à frente, ele gritou, na direção da cozinha: “Ela chegou!” Minha mãe apareceu, com um pano de prato nas mãos. “Isabeli, eu falei para você não sair!”. Romildo fez minha mãe se calar com um gesto da mão, depois deu um passo para trás, abrindo caminho para que eu entrasse. Devagar, eu me aproximei e mostrei a boneca: “Eu fui buscar…”
“Cala a boca!”
O grito foi tão alto que me fez fechar os olhos. Passei por ele e olhei para minha mãe, em busca de apoio. Ela já estava chorando. Romildo me estendeu a mão. Eu não reagi a princípio, não entendi o que queria. Ele mexeu os dedos. “Dá aqui essa boneca”. Ele a segurou com as duas mãos e a quebrou no meio sem nenhuma dificuldade. “Não!”, gritei. Quis pegar os pedaços, desesperada, mas a mão dele bateu espalmada no meu rosto e me fez virar a cabeça, perdendo o equilíbrio.
“Isabeli!”, gemeu minha mãe, tentando me abraçar. “Solta ela, Marinalva. Essa menina tem que aprender que quando dizem que não é para sair, então não é para sair. Está querendo ficar doente nessa chuva? Quem vai cuidar? Quem vai faltar ao trabalho para levar no médico? Quem vai pagar remédio? Hein? Se não aprende por bem, aprende por mal.”
Assisti aterrorizada enquanto ele olhava em volta, procurando alguma coisa. Percebi que estava decidindo o que ia usar para me bater. Felizmente, não havia nada ao alcance do braço: sobre o móvel da sala, o porta-retrato com os dois abraçados; jogado no sofá, o controle remoto da televisão; em cima da mesa, um vaso de flores sem nenhuma flor; pendurado na parede, um quadro com uma imagem de Jesus Cristo. Seu olhar se dirigiu à cozinha e temi que ele escolhesse uma colher de pau, ou pior, uma faca. Mas ele não tinha bebido nada nesse dia. Ainda.
“Isabeli, vai lá no meu quarto, tira o cinto que está na minha calça e traz aqui”. “Romildo, ela não vai fazer de novo”. “Cala a boca, Marinalva, senão você entra no couro junto com ela. E o seu vai ser pior”. Minha mãe olhou para mim e eu vi a tristeza em seus olhos. Seu queixo tremeu e mais lágrimas rolaram em suas bochechas. Eu também chorava, nem tanto pelo tapa ou em antecipação pelas cintadas, mas ao ver os pedaços da minha boneca, um em cada mão de Romildo. Eu ainda não desenvolvera a habilidade de minha mãe para chorar em silêncio, meu choro saía acompanhado de um gemido baixo e contínuo. Pensava se a boneca teria conserto. “Vai logo, menina!”
Naquela noite, fui dormir chorando. Deve ter sido pouco tempo depois de eu ter pegado no sono que a porta do meu quarto se abriu. O barulho me acordou e vi que ele estava ali parado, me olhando. Achei que fosse perguntar alguma coisa, mas não disse nada. De repente, se aproximou e se sentou na beirada da cama.
Será que queria pedir desculpas pela surra? Seria a primeira vez. Fiquei bem encolhida e esperei que falasse alguma coisa. Ainda em silêncio, tombou deitado atrás de mim. Fiquei paralisada de medo. O que estava acontecendo? Onde estava minha mãe? Respirei devagar. Ele não se mexia. Será que ela o tinha expulsado do quarto? Mas não teria essa coragem. Será que estava tão bêbado que confundira as camas?
Ele se ajeitou e sua mão pousou no meu quadril. Fiquei gelada. Não sabia se estava dormindo ou acordado. Tomei coragem para me virar e observá-lo. Tinha os olhos fechados. O hálito era horrível: tinha bebido. Decidi que iria dormir na sofá
mas, antes que eu me mexesse, a mão dele deslizou e veio parar no meu peito.
Pulei da cama e saí do quarto sem saber o que fazer. Enquanto passava pela porta, ouvi a cama rangendo. Ele se levantara e vinha atrás de mim. A casa estava às escuras. Deveria sair correndo pela rua, gritando por socorro? Será que algum vizinho me acudiria?
O luar entrava pela janela da cozinha. Sobre o fogão, uma panela vazia que seria usada para fazer o almoço, no dia seguinte. Avancei devagar, dando tempo para que ele me alcançasse. Ele tinha de estar bem próximo, mas não o bastante para me agarrar. Cheguei ao fogão, peguei a panela com as duas mãos e imediatamente girei o corpo, atingindo-o na cabeça com toda a minha força. O impacto reverberou pelos meus braços e derrubei a panela no chão. Romildo desabou, desmaiado.
Minha mãe finalmente apareceu e acendeu a luz. Estava alerta, como se ainda não tivesse dormido. Quando viu Romildo e a panela no chão, deu um passo para trás, colocou as mãos sobre a boca e me lançou um olhar desesperado.
Fui até ela e nos abraçamos. Ela me apertou com força e eu a apertei mais forte ainda. Quando me acalmei, ela se afastou um pouco, me segurando nos ombros, olhou nos meus olhos e disse, com a voz calma e decidida:
— Você vai ter que ir embora.
Marcela de Souza Rabelo – Afinal, o Que é poesia? Barra Mansa-RJ
Afinal, o que é poesia? Pode o poeta expressar com firmeza? Ou apenas demonstra tal sentimento nos versos? Será a cura de todas as feridas? És tu, poesia, a libertação da doença? Uma sopa quente para os enfermos, Um prato de letrinhas, Formando, desajeitada, a solução nas entrelinhas? Se traz de fato paz e esperança, Deves ser por demais preciosa, Ajeita os pensamentos emaranhados, Imagem e movimento na cabeça. Podes tu ser o antídoto dos males? Há quem conceda. Talvez, quem sabe, quiçá Sejas o amor que tudo és e nada esqueces Que faz crescer nos lugares mais lúgubres Aquela flor dos jardins mais belos. Serias tu?
Marco Chies - Rio Forte Porto Alegre-RS
Poucos dias atrás não havia nuvens no céu cobalto que cobria as fantásticas lavouras da cidade mais rica, lúgubre e setentrional da região. Ao rio que a cortava ao meio chamavam Forte, nome pouco apropriado para um curso d’água indolente que se arrastava raso e translúcido desde as nascentes escondidas nas colinas escuras, até sumir nas gargantas profundas das ravinas junto à cidade vizinha ao sul. Em geral estes lugares aborrecem pela rotina que repete um mesmo diapasão de ruas ermas e casas de madeira, onde pessoas aflitas anseiam mudar-se para um local mais agitado. Mas não esta cidade, cujas ricas plantações se deviam a um hábito peculiar e secular de seus habitantes.
Uma vez ao ano, eles sentavam-se em grupos à beira íngreme do rio, lá permanecendo em silêncio antes de furar os braços com agulhas e deixar verter gotas de sangue nas águas calmas e transparentes do Rio Forte. Quando o luar dominava a noite, a macabra e sangrenta liturgia anual encerrava. As pessoas cumprimentavam o líder da Cooperativa Forte e recebiam seus vultosos rendimentos, julgando insignificante aquele sacrifício quando comparado à fertilidade do solo, a segura regularidade do rio e a fortuna que obtinham através dele. O tempo passou e a sensação de que aquela era uma prática quase simbólica contaminou alguns habitantes, fazendo com que não cumprissem à risca o ritual, ano após ano limitando-se meramente a espetar os braços e deixar que ínfimas gotículas de sangue aflorassem tímidas na pele, deixando assim de alimentar o rio.
Um engano crucial, pois aquela estranha tradição surgira dos mórbidos acontecimentos que obrigaram o avô do líder da Cooperativa a sacrificar seu primogênito ao Rio Forte quando as sucessivas secas, os fracassos constantes nas colheitas e a ameaça da fome o fizeram estabelecer um pacto de sangue com águas do rio. As nuvens chegaram brancas pela manhã e pareciam apenas decorar o céu. Ao meio dia as nuvens escureceram e pela tarde a água desabou, inundando a cidade. O Rio Forte avolumou, abandonou seu leito e invadiu inclemente ruas e casas, para logo depois arrasar as lavouras.
Quando anoiteceu as águas acalmaram, voltaram ao nível normal e naquela penumbra a paisagem era um quadro de desolação. Em poucas horas as nuvens se afastaram, parecendo satisfeitas com o estrago causado, deixando em seu lugar o luar pálido e o brilho tímido das estrelas.
Com as crianças e os mais jovens em casa, os adultos reuniram-se na praça central e receberam das mãos do líder da Cooperativa um embrulho. Ele proferiu palavras graves e severas e em seguida todos foram até as margens do Rio Forte. Chegando lá, tiraram de seus bolsos as lâminas que haviam recebido e com elas feriram letal e profundamente as veias dos pulsos. O sangue tingiu o rio e em toda sua extensão ele se tornou vermelho e assustadoramente efervescente.
No dia seguinte as plantações estavam intactas, como se não houvessem sido afetadas pela inundação. Perfeitas, as lavouras aparentavam não ter sofrido dano. Os mais jovens dedicaram-se ao ofício de limpar as casas e as ruas, serrar e pregar tábuas, preparar os ataúdes e enterrar os mortos. Mais tarde, assumiram o trabalho nas lavouras, pouco a pouco fazendo a cidade retomar o ritmo e a prosperidade de sempre. O ano passou rápido e na noite de alimentar as águas, foi com júbilo e dedicação que eles cortaram a carne dos braços e lançaram seu sangue tenro e quente nas águas cada vez mais pródigas e serenas do Rio Forte.
Mário Loff - Feitiço da dama de salto alto Cabo Verde, Praia, África
Se me dissessem sem que eu tinha visto aquele momento não acreditaria de modo nenhum, mas vou contar. Tudo aconteceu, na rua do barbeiro. Na parte esquerda da passadeira é entre-metida por basaltos bem trabalhados e pedras ainda em estado bruto e já gastas com o tempo e tanto uso.
Na parte direita tem intermitência de partes cimentada por argamassas e basaltos. Em ambos os lados da passadeira estão repletas de acácias americanas que no inverno estão cheias de folhas vermelhas, naquele momento todas elas se apresentavam completamente nu.
Na última casa que dá acesso à próxima rua que passa em frente da igreja, estava a casa do barbeiro que naquela tarde teve muitas perdas devido à avaliação da maquina mais antiga e aquela que nunca tinha estragado, a frente do edifício passarinhas estavam penduradas umas ao lado das outras fazendo uma fila de mais de dês metros em cima do fio de luz elétrica que ligava a barbearia e as outras casas de uma ponta a outra, na oficina ao lado o homem sujo de oleio queimado insistia com um fogão a bomba que não acendia a petróleo o homem enchia e voltava a secar sem ser queimada pelo lume, era uma quebra cabeça terrível que se formava naquela tarde. Para completar o sino da igreja não tocou as quatro horas da tarde e nem as quatro e meia parecia pouco provável, todos os trabalhadores da rua estavam chateados com o sino e a hora que insistia em não chegar pelo sino da igreja, estafados e quase mortos de tanto trabalharem, na barbearia, na taberna do senhor guaxi, puseram-se a deitar no parapeito da casa e de cara para o chão e peitos escondidos nos soalhos abandonados na rua. O senhor pinikeiro ainda que tenha aulas de motivação não conseguiu motivar os seus funcionários o suficiente para continuar no ofício. Levantou a cara para observar algo estranho se passava naquela tarde, justamente nos 20 minutos depois das quatro da tarde. Barbearia parada e o senhor barbeiro chateado, oficina aberta e o fogão que não trabalha apesar de aparentemente estar pronto, as árvores sem folhas e as outras que ainda tinham folhas e flores estavam estáticas, e todos os trabalhadores deitados, cansados sem ânimo ou a sentirem que o patrão tinha pena deles, e o sino que não vinha a não ser aqueles passarinhos colecionando um cenário colorido. Quando se espera a receção de uma rainha se enfeita as ruas daquela forma, indagava o patrão que
tinha os seus trabalhadores estafados de tanto encherem betão.
A porta abriu, os papeis de cimentos abandonados subiram no tempo e limparam toda a rua, tudo o que acabara de entrar pela rua da barbearia afora, era o sinal do vento que se fazia e impura as coisas para fora, o mesmo vento levava consigo uma fragrância que acabara de sair do corpo de uma mulher e, quando essa fragrância tocava nas coisas tudo se consertava.
Pela primeira vez, nos últimos vinte minutos. Os trabalhadores deitados no chão e nos soalhos abandonados saltitavam em modo câmara lenta, como se fosse o som lento do coração. Descia o degrau da escada, cada toque que o tacão dava nos degraus fugindo cada vez mais para o chão plano em direção ao portão da rua de barbearia, também o coração dos trabalhadores já estafados respondiam para o espanto dos patrões. Ela chegou finalmente ao portão.
Da sua casa podia se observar a casa do barbeiro ao fundo da estrada em cinco minutos tinha que chegar a igreja antes de quatro e meia. Num minuto fintou os basaltos já entreabertas pelas cheias de setembro, em dois minutos espalhou toda a sua ternura pela rua afora, por três minutos curvou a estrada perigosamente provocante vestida numa calça jean extremamente apertada sem sufocar a perna e a cintura, por quatro minutos deu um, olá sem soltar o negro batom morto na carne morta da sua boca, quando falava eram lábios, quando calava era perdição, antes de terminar quatro minutos o fogão se acendeu, as plantas voltaram a bailar, os trabalhadores se levantaram e o barbeiro encheu-se de contentamento por a maquina ter voltado a trabalhar. Em cinco minutos deu quatro e meia ela entrou na igreja o sino tocou e os trabalhadores foram liberados de trabalho ela ao sentar a frente do senhor padre os passarinhos sentaram no sino da igreja e começou a celebração da missa.
ele a observou com a ponta da luneta, e pareceu resmungar.
— que pernas, que bunda, que beleza, que mulher. Depois de ter fixado os olhos pela multidão, observou a menina de salto alto pela última vez e disse a espiar descansadamente.
— Pelo sinal, santa cruz, livrai-nos dessa diaba.
Assim a missa começou e tudo voltou ao normal na rua do barbeiro.
Maurício Cavalheiro – Pedido de Natal Pindamonhangaba-SP
No morro insone, onde o luar de prata pendura estrelas, todas num varal, para enfeitar a mais solene data em que o Menino Luz se fez real;
Lá, numa casa de madeira e lata, entre outras casas de estrutura igual, mora a família que a miséria mata tão lentamente em noite de Natal.
Naquela casa a filha abre a janela, de olhos molhados fita o céu e apela por remoção da sina assaz doída:
— Papai Noel, não quero mais brinquedo, mas quero em troca que chegue mais cedo e, aos meus irmãos, dê pratos de comida.
Miguel Salvador Gabriel Chammas – O ponto final São Bernardo do Campo – SP
Mauro, sentado em sua poltrona habitual, onde permanecia por várias voltas do relógio, todos os santos dias, aconchegado em uma manta de lã que lhe ajudava a combater o frio daquela manhã, olhava de forma indireta a figura de Rita, sua filha mais velha e atual hospedeira.
Estava no segundo mês da hospedagem trimestral em que se transformara sua existência.
A cada três meses, trocava de endereço. Ia para a casa de outro dos seus quatro filhos. Assim, ninguém chegava a se estressar com a sua figura e com suas rabugices.
Fora um acordo feito há algum tempo e que, até aquele momento, apresentara ótimos resultados. Pelo menos, aparentemente.
Enquanto assistia Rita a se locomover pelos diversos ambientes da casa, limpando aqui, recolhendo outra coisa acolá, Mauro começou a avaliar sua vida atual.
Era meio insípida, não tinha mais as emoções de outrora.
A comida, sempre muito simples e sem muito tempero não lhe ensejava o prazer de se alimentar e, se propusesse um prato especial, daqueles de outrora, cheios de sabor, era de imediato criticado pelo filho hospedeiro: - Você está louco pai? Quer morrer?
Inibido ele se calava.
Bebida era água de filtro sem gelo. Se pedisse para que ela viesse temperada com um pouco de água gelada novamente ouvia: - Se esqueceu da gripe do ano passado? -Quer voltar para o hospital? Pai, não me arrume mais problemas dos que eu já tenho.
Ele tomava a água em pequenos goles e se calava.
Quando em casa, os netos resolviam ouvir música. Música? Não. Aquilo não era música, era um amontoado de barulhos estranhos, um sem parar de tum-tum-tuns que lhe invadiam cabeça adentro e iam se alojar, sem dó nem piedade, no centro do cérebro.
Se por acaso pedisse para que eles pusessem uma música mais suave, quem sabe um Nelson Gonçalves para não ir mais lá atrás e pedir um Carlos Galhardo ou um Orlando Silva, eles, em ostensiva gargalhada diziam que não eram guardiões de museu. Mandavam-no ficar quietinho ou, então, ir para o quarto dormir.
Dormir? Como dormir com aquela barulheira infernal?
Podia palpitar em qualquer coisa, sobre qualquer assunto, mas não seria nem ouvido e, se ouvido, sua opinião não seria levada em conta.
- Os tempos agora são outros, meu velho. O senhor não precisa se incomodar com nada, só pense em viver bem, em desfrutar a hospitalidade e o carinho que lhe damos.
Viver? Aquilo lá era vida que se podia viver?
Hospitalidade agora era sinônimo de uma pequena cama nos fundos da casa e de uma poltrona velha e ensebada na sala?
Carinho era ser chamado de pai, de vô?
Com a sua eterna mania de pensar, Mauro começou certo dia a lembrar-se do passado, lembrar de quando seus hospedeiros trimestrais eram ainda crianças.
Lembrou-se que por um acordo tácito com sua esposa e mãe de seus filhos, ficara definido que ela seria a boazinha, a mãe salvadora perante os filhos.
Ele, por sua vez, seria a mão de ferro.
Alguém teria mesmo de endurecer a vida das crianças e prepará-las para o futuro.
Lembrou-se que, na ocasião do acordo, ainda dissera, plagiando tal de Guevara “Hay que endurecer. Pero sin perder la ternura jamas”. E como acordado estava, ele tratou de fazer sua parte.
Era o primeiro a dizer não, o primeiro a cobrar atitudes, o primeiro a brigar. Lógico, depois, convencido pela santa mãezinha, acedia, concordava.
Porém, nunca, em toda a sua existência, deixou de dar atenção e carinho a cada um dos filhos.
Fez de sua existência um emaranhado de problemas para poder lhes dar boa casa, boa comida, boa educação, estudos efetivos.
Atendeu aos seus mais comezinhos desejos. Comprou-lhes sempre do bom e do melhor.
Mais tarde, com o passar dos anos, já adultos, se alinhou a eles e os abraçou sem precisar mais ser o “durão”. Foi, então, muito cobrado. Suas posições no passado foram criticadas, renegadas.
Nenhuma explicação que viesse a ser dada foi efetivamente aceita. Cicatrizes profundas haviam se enraizado naqueles seres que eram pedacinhos de seu próprio ser.
Os tempos correram céleres e, quando se viu velho e incapacitado de se cuidar pessoalmente, fora obrigado a aceitar o
que sempre sonhara não ter precisão. A ajuda dos filhos se fez necessária.
Então, agora, ele vivia aquela trimestral existência. A cada ano que passava ele mudava quatro vezes de endereço, mas só mesmo de endereço, pois o tratamento era sempre muito parecido.
Na verdade eles não o aceitavam, apenas o suportavam.
Cônscio da situação ele, como fazia em todos os momentos do dia, pedia com fervor para que Deus, na Sua infinita bondade, se lembrasse dele e o levasse para o outro lado.
Só assim, pensava, ele poderia ver-se livre do revide que os filhos lhe faziam e, mais uma vez, pela última vez, poderia atender ao desejo de todos eles, o de ficarem livres daquele ônus pesado e sem nenhum retorno, o pai.
Um dia Deus lhe ouviu e ele partiu!
E ainda, no decorrer das exéquias, meio querendo continuar neste plano, Mauro buscou entre os presentes, os filhos amados.
Achou primeiro a Rita que, sentada numa cadeira do velório, enxugava algumas lágrimas que, num grande esforço rolavam por suas faces e dizia: -Mas ele estava tão bem, ainda ontem ele pediu uma sopa de feijão, eu achei que seria muito forte e fiz um caldo de carne com arroz. Ele bateu dois pratos e se eu me propusesse a lhe dar mais um prato ele, tão guloso era, teria aceitado.
Caldo de carne? Foi é caldo de osso com arroz do dia anterior, quis gritar Mauro, mas, não conseguiu.
Rosaura, sua filha do meio, na área externa do velório, fumava um cigarro e se esforçava por mostrar uma falsa tristeza. Na verdade o que sentia era alívio.
Rosa e Álvaro, os dois filhos mais novos estavam na rua e narravam, a dois outros ouvintes, suas aventuras nas baladas mais recentes, sem mostrarem qualquer tipo de consideração com o corpo do pai que jazia, ainda, na câmara-ardente.
Pronto. Essas cenas foram o ponto final na resistência de Mauro.
Ele, capitulando, aceitou o inevitável e buscou encontrar a luz da eternidade.
Era o ponto final.
Mônica Monnerat - O caderno São Paulo-SP
Início dos anos 90. Ana pegou o metrô, como fazia todos os dias, para ir e voltar do trabalho. Era final de dia, o vagão cheio, como sempre. Ela, louca para chegar em casa, como sempre. Na verdade, um dia como outro qualquer. Tomaria um banho e serviria o jantar para o pai.
Ah... o pai, sua grande preocupação... depois que sua mãe faleceu, há dois anos, ele nunca mais se recuperou. Aposentado, só ficava em casa, depressivo. Só se distraía um pouco com o noticiário e com programas vespertinos de domingo na TV.
Ana encontrou, finalmente, um lugar para sentar. Enquanto seguia, mergulhada em pensamentos, o metrô ia se esvaziando lentamente. Estava prestes a saltar no seu destino, quando, no vagão vazio, avistou um caderno de aparência bem antiga, esquecido no banco da frente. Como não havia ninguém por ali, resolveu pegá-lo para ver se continha algum endereço ou telefone para contato. Talvez pudesse devolvê-lo ao dono.
Já em casa, após todos os seus afazeres e todas as reclamações de seu pai, sentou-se na sala. Comentou com ele o ocorrido e começou a folhear as páginas amareladas pelo tempo. Havia uma dedicatória: “Para Maria Rita Azevedo Fontes, meu grande amor. São Paulo, maio de 1954.” Nas outras páginas, somente poemas para essa criatura. Mostrou ao pai, que colocou os óculos com pouco interesse para tentar ler as poesias.
A linguagem pareceu a Ana um tanto rebuscada e fora de moda. Mas o pai até que achou bonito. Não havia o nome do autor, nem endereço, nem telefone. Nada. E o que estaria fazendo esse bendito caderno em plenos anos 90, esquecido em um banco de metrô?
Ana começou a gostar do mistério, mas realmente não sabia como tentar desvendá-lo. O pai, então, teve uma ideia:
-- Por que não escreve uma carta e manda junto o caderno para o programa do Sandro Souza?
-- Mas, pai, como assim?
-- Ah, ele tem um programa que vai ao ar aos domingos chamado “QUER SE ENCONTRAR COMIGO?”. – Lá, a produção se vira para promover encontro entre casais...
Ana não parecia convencida. Ela não pretendia nada daquilo, seu único objetivo
era entregar o caderno e entender aquela situação. Além disso, já haviam passado quarenta anos daquela história, o caderno poderia ser até um problema, quem sabe?
Meio a contragosto, porém, fez a vontade do pai e escreveu a carta. Seu Luiz embalou a mensagem junto com o caderno e foi até o Correio, reclamando, mas foi.
Alguns dias depois, Ana recebeu um telefonema da produção de Sandro Souza. Iriam apresentar a história ao público, para ver se localizavam ou o autor, ou a musa inspiradora, Maria Rita.
Realmente, no domingo seguinte, o apresentador narrou o fato ocorrido no metrô, mostrou o caderno e, com um fundo musical bem meloso, Sandro deu uma entonação toda compungida ao texto. Ao final, solicitou ao público que quem tivesse alguma informação a respeito de pelo menos um dos personagens, que entrasse em contato com sua produção.
Com efeito, na semana seguinte, sem esclarecer maiores detalhes, Ana foi informada de que Maria Rita, não só havia sido localizada, como também iria comparecer à gravação na próxima quinta-feira. A pessoa ao telefone convidou Ana a fazer parte da entrevista. A princípio relutou, mas o produtor acabou convencendo-a a ir, podendo levar um acompanhante.
Na quinta-feira, Ana se arrumou e providenciou uma roupa esportiva para o pai, que, surpreendentemente reclamou só um pouquinho quando se viu bem arrumado ao lado da filha.
Foram para os estúdios. Finalmente, a vez deles. Seu Luiz na plateia e Ana nos bastidores.
Sandro Souza retomou a história para que o público relembrasse e, depois de toda a expectativa criada (Será que ele se casou com outra? Será que ele morreu? Será que foi morar em outro país?), anunciou a presença de Maria Rita.
Era uma senhora alegre simpática e elegante. Bonitona, sim. Sandro perguntou se ela se lembrava de algum namorado que lhe dedicara um caderno de poesias e mostrou-o a ela. Ela disse que sim na hora. Ficou um pouco emocionada, pois vivera essa história há 40 anos.
Logo, porém, recuperou o sorriso e olhou para Sandro que lhe perguntou o que havia ocorrido entre eles.
-- Ah, era um namorado do meu tempo de juventude. Mas não gostava de trabalhar, só queria saber de boemia, vivia no mundo da lua. Papai mandou que eu
terminasse tudo. Logo depois conheci meu marido e fui muito feliz com ele.
-- Mas por que disse o verbo no passado? – perguntou Sandro.
-- Porque infelizmente ele faleceu há um ano. E vim aqui só porque meu neto insistiu muito. Disse que eu estava “batendo um bolão”... Nesse momento, Sandro disse a ela:
-- Então venha conhecer a pessoa que encontrou o caderno de seu ex-namorado. Vamos receber Ana Cristina.
Palmas. Seu Luiz, da plateia, todo orgulhoso da filha que iria aparecer na televisão.
Cumprimentaram-se efusivamente. Sandro Souza então, entregou-lhe o caderno e ambas saíram do palco, sob o aplauso do auditório. Ana estava um pouco decepcionada, a história não tivera o desfecho que esperava. Desceu para a plateia, junto com Maria Rita e apresentou-a a seu pai. Seu Luiz, todo simpático, nem parecia o velho rabugento de todos os dias... Maria Rita, só sorrisos, vendo Ana meio melancólica, resolveu dar-lhe o caderno de poesias. Disse que aquilo era passado, que ela poderia gostar de poemas... Ana aceitou por educação, e seu Luiz convidou-as a irem a uma pizzaria comemorar a nova amizade. Percebendo que estava sobrando, Ana alegou um compromisso com uns amigos e disse que iria pegar o metrô.
Despediu-se e de fato, dirigiu-se à estação. Esperou muito pouco. Já sentada no banco do metrô, mais vazio esse dia, Ana voltou a sentir-se pra baixo. Perto de sua parada, levantou-se deixando o caderno propositalmente no banco. Não tinha mais sentido guardá-lo.
Saiu e dirigiu-se à escadaria. Quando estava alcançando a saída, sentiu alguém cutucar seu ombro. Virou-se e um rapaz que estava com o seu caderno lhe disse:
-- Olha, acho que você o esqueceu no banco. É seu, não é?
Ana agradeceu, sorriu e... começaram a conversar...
Neide Silva – Momento de encontro Rio de Janeiro-RJ
Olho o céu, olho as estrelas, O espaço, o infinito... E, lá longe te encontro Sozinho, perdido.
Olho os campos, as flores, Os rios, as montanhas... E num canto qualquer, Eu sozinha, mulher, me encontro.
Imagino-te me acenando, me chamando... Galopo sobre os campos, Acalentada pelo vento, Chego a ti cheia de contentamento.
Não há nada a se dizer... E para que falar? O silêncio por nós, Sabe o que expressar.
O tempo é nosso amigo... Avisa-nos que é hora de voltar. Vejo-te triste no meio das estrelas, E eu na verde grama a soluçar.
Patrícia de Campos Occhiucci – O Corpo fala! Mogi Guaçu-SP
Cada contração muscular Braços cruzados, não encarar Pálpebra pula, cabeça zonzeia Pressão faz saltar a veia. Na palma da mão, até coceira. O corpo é o quadro vivo Que guarda da alma a energia A vitalidade ou a canseira
Coração parece doer e apertar Cabelo perde o viço, branqueia Quer porque quer falar Mas, a vigilância não bobeia.
Gagueira num choro contido Pensamento meio perdido A coluna, então, arqueia Muita bagunça para arrumar Cada palavra, gesto expressivo. Se parece longe, pasmaceira O tempo finge ser permissivo E o futuro toma a dianteira.
Ansiedade tenta adivinhar Na verdade, só faz agoniar Os movimentos são acima Ou o desânimo dá paralisia.
Relaxar é ordem pra saúde Viver um de cada vez os dias Enquanto Deus nos acude!
Patrícia Nogueira Lopes da Silva – O Guloso Guimarães, Portugal
Quando eu era pequeno e muito pobre beirando no limiar da miserabilidade a fome era uma companhia frequente. Éramos cinco irmãos de uma mãe solteira que tentava nos alimentar como podia num pequeno povoado. Num determinado momento da vida essa possibilidade não foi mais possível. Nossa mãe nos separou e fomos um a um entregue a uma família que nos acolheu e nos deu educação e comida. Eu tive a sorte de ser entregue para uma família muito rica. Apesar de dormir com os empregados da casa e trabalhar o dia todo na cozinha ou no estábulo, eu tinha comida três vezes por dia e uma cama quente para dormir. Mas a minha companheira de tempos menos sortudos me acompanhava. Por isso eu era constantemente castigado e muitas vezes precisava dormir com os cães para pagar meu atrevimento. Não era um delito muito grave roubar alguns alimentos a mais do que me era oferecido na cozinha para saciar uma gulodice infindável. Herança de uma infância muito pobre e que me fazia sentir sempre fome e sempre vontade de comer mais e nunca estava saciado. Essa fama de comilão e guloso chegou aos ouvidos do senhor daquela casa, que numa tarde de inverno mandou me chamar para fazer uma entrevista. Com as pernas bambas de medo e sentindo que meu dia naquela casa tinha esgotado, caminhei lentamente como quem vai para forca em direção ao escritório daquele senhor aristocrata. Toda a decoração daquela parte da casa, o palacete, me assustava. Tinha uma mobília austera com móveis de madeira maciça e muito escura, quadros sombrios com imagens que eu não entendia e muitas cabeças de animais mortos caçados por aquele senhor. Diziam entre os empregados que ele fora neto de um conde muito famoso por ter poderes mágicos naquela região. Eu estava apavorado. Ao entrar no escritório gigante o senhor me aguardava de pé e com um jornal á mão. Tinha um ar preocupado e quando me viu entrar, deixou a leitura de lado e sentou-se. Eu pensei ser este um mau sinal e engoli a seco. Perguntou o meu nome e quando eu disse que me chamava Peter ele riu e disse que era um nome incomum para aquele início de século XIX na Irlanda. Eu não conseguia dizer uma só sílaba e respirava sofregamente. Ele levantou-se de repente e disse ter conhecimento que eu andava a roubar alimentos na cozinha. Pediu-me, com um ar muito solene que não voltasse a cometer tal infração, caso contrário teria
que tomar medidas excepcionais e que eu não ia gostar. Meus olhos quase saltaram das órbitas quando aquele culto senhor proferiu essa última frase em tom ameaçador. O que será que ele queria dizer com: medidas excepcionais? E parecia que lendo a minha mente, ele imediatamente respondeu que medidas excepcionais são quando fazemos alguma coisa fora do normal. Nesse momento aproximou-se, colocou os braços ao redor do meu ombro e pediu para que chegasse próximo de uma das grandes janelas, com vidros vindos da França, que havia naquele escritório e me mandou olhar o seu grande e majestoso pomar atenciosamente. Aquela propriedade era conhecida em toda Irlanda pelo maior e melhor pomar do país e era o grande orgulho daquela família. Observei que algumas delas eram demasiadamente velhas, outras tinham um aspecto diferente que eu não soube naquele momento entender ou explicar. O senhor então me disse em tom ameaçador que muitos daqueles arbustos estavam ali por uma única razão e que se eu não quisesse ficar como eles eu deveria imediatamente para de roubar comida. Eu achei engraçado. Pensei que ele me diria que era lá, entre as arvores velhas que ele iria me amarrar ou até me enforcar por roubo. Mas me abandonar entre aquelas árvores, seria até bom, pois ali existiam as árvores frutíferas que ele mais gostava: laranjeiras, macieiras, figueiras, cerejeiras e outras. Finalizou o seu discurso me fazendo dizer com todas as letras que eu nunca mais roubaria comida sob a pena de ser castigado segundo as suas leis. Eu repeti e prometi que nunca mais roubaria comida da cozinha e sai correndo como um raio em direção ao estábulo. Trabalhei avidamente para esquecer aquela conversa esquisita para um menino de doze anos de idade. Quando tocou o sino para os empregados jantarem foi com surpresa e deleite que vi na cozinha um cesto muito grande com lindas maçãs, todas muito vermelhas e que exalavam um aroma irresistível. Jantei olhando para elas que pareciam me enfeitiçar aguardando o momento da sobremesa que quase sempre era nos ofertado uma peça de fruta. Curiosamente nesse dia não houve sobremesas. Eu não podia acreditar. Desejava imensamente uma daquelas maças e com tantas naquele cesto não faria mal nenhum pegar apenas uma delas. Lembrou-se da promessa feita ao senhor naquela tarde. Mas sua gulodice era maior. Esperou que todos da casa adormecessem e cainhou sorrateiramente até a cozinha. Destampou o cesto coberto cuidadosamente por panos de linho bem limpos e estendeu sua mão na direção dos frutos. Apalpando-as retirou a que julgava
ser a maior. Rapidamente colocou toda a cobertura no lugar e ali mesmo abocanhou com voracidade o fruto. Sentou-se no chão saciado e com um sorriso de satisfação na face. O dia amanheceu sem neve e já com um pouco de sol que dava indícios da primavera que se aproximava. As primeiras empregadas ao chegarem à cozinha espantaram se com o que viram: uma pequena muda de macieira estava ali entre as maças colidas na tarde anterior. Surpreendidas pela maravilha da natureza chamaram o jardineiro que imediatamente a plantou junto às demais macieiras do pomar. Assim que o jardineiro terminou o serviço, as demais árvores do pomar deram as boas vindas ao novo pequeno arbusto e perguntaram seu nome. Ele se apresentou: Meu nome é Peter.
Brasília-DF
As palavras são tantas vezes traiçoeiras e escorregadias. Trabalhar com elas é uma verdadeira arte. Tentar aprimorar a Língua Portuguesa pode parecer uma heresia. Estas pobres ideias me vieram à mente ao me deparar com a melhor geleia de pimenta que jamais apreciei. Há tantas pessoas no mundo a quem qualquer coisa fica melhor se condimentada com pimenta. Chega a ser difícil imaginar a incrível culinária mexicana sem esse riquíssimo tempero –presenta por lá já desde os tempos dos povos indígenas. Nada mais normal do que apreciar geleia de pimenta, que permite, por exemplo, apimentar alguns pratos de forma vantajosa, pois o famoso frasco de pimenta – normalmente de uso coletivo –necessita ser limpo com frequência, enquanto o formado de geleia é muito mais prático e limpo. Ao pensar em “geleia de pimenta”, imediatamente me veio à mente que a língua ganharia muito em economia se introduzida fosse a corruptela “gelimenta”. Uma interpretação simplista da proposta seria que apenas visa facilitar a linguagem. Nada disso. O que se tem em vista é trazer um substantivo a mais para algo efetivamente importante – ao invés de se fazer necessário o uso de dois termos unidos pela preposição. E não é um substantivo qualquer, mas um que exprima toda a riqueza da “geleia de pimenta”. Afinal, gelimenta nos olhos dos outros é refresco, em nossos pratos, é um maravilhoso tempero.
Roque Aloisio Weschenfelder – Sina Poemal Santa Rosa – RS
Viaja o poema aos confins para conferir o tom dos clarins e também o rufar dos tambores
que querem acordar as musas de seu sono secular.
Pobre tristonho poema de lamentos muitos e infindos!
As musas morreram nas estradas,
e nas curvas há cruzes sem nomes,
testemunhas do sono eterno...
Cai o poema no papel, desmancha com lágrimas as laudas, sofre as dores das tragédias, cheira os odores das estradas;
álcoois sem dó nem piedade...
Revoa o poema pelas redes, que os homens chamam sociais. Por lá espalha seus lamentos, reclamando por providências contra tantos crimes impunes.
Não sobram versos alegres nem estrofes felizes,
pois a poesia pena nas almas dos poetas, viúvos das musas, perdidas em choques fatais. Fingem cidadãos e governos mera melancolia pelas tragédias e nunca entendem os motivos
de poetas criarem poemas repletos de sangue e saudade.
Chora a musa, reclusa,
a eterna ausência de seu poeta que a estrada não quer devolver
porque uma cruz marca seu sono, sem findar com o sol da manhã.
O poema é da mãe, do pai, dos avós; o poema abraça aos órfãos; o poema enfrenta as dores dos amores e acusa a todas as irresponsabilidades, que se esquivam das farpas da lei.
O poema volta dos confins com clarins e tambores confiscados.
A poesia morre a cada festança cheia de alcoólicas miragens causa do fim de tantas viagens...
Poetas, esqueçam as musas; elas não sobrevivem às agruras de estradas mal-cuidadas,
de garrafas esvaziadas de poesia e de cruéis machistas ciumentos...
Rosangela Mariano – Os olhos de Natal São Leopoldo-RS
Paulinho sempre acreditara em Papai Noel. Desde pequenino. Isso falando. Nem adiantava desmotivá-lo, fazer crer que Papai Noel era um mito. Paulinho é que não acreditava em palavras bobas! Coisas de adulto. Doidice. Mito? Ia lá saber o que era esse bicho? Pois se não era bicho, era mesmo doidice de gente cheia da bossa.
E Paulinho jurava ter visto Papai Noel descendo pela chaminé da casa de Ritinha! Foi em noite de estrelas. Frio? Que nada! E quem disse que o nosso Natal vê neve branca? Neve só nos filmes de americano bem posto e feliz. Neve mesmo Paulinho nunca vira, mas teimava ter visto Papai Noel na casa de Ritinha! Mamãe ria um sorriso bondoso. Papai arqueava as sobrancelhas peludas. Mudo, mas preocupado. Maninho caçoava, fazia alarde, pura zombaria. Paulinho batia o pé. Não arredava ideia!
E Ritinha era a única que acreditava no amigo. Firmeza no apoio. Menina doce, porém, enxuta nos porquês. Amiga do peito! Desde sempre confirmara as palavras de Paulinho. Garota sem lisura, olhos postos na estrada, mesmo com idade verde.
Natal vindo com seus passos manhosos, pregando entusiasmo na alma da garotada. Paulinho olhando Papai Noel pela chaminé da casa de Ritinha... Os pais da menina faziam cara de “nada sei” e diziam ser o Paulinho um moleque cheio de encantos e estrelinhas escondidas. Ritinha muita graça achava dos comentários deles e ficava a perguntar de que estrelinhas os pais falavam...
Veja bem: Ritinha também era dada a encantamentos. Explosões de sorrisos e tranças voando ao vento em dias de sol. Pontuava a casa e o jardim com novas descobertas; luzinha acesa no dia a dia. Tanta pena sentia dos adultos! ... “Fracos de sonhos” – dizia ela a Paulinho. Ao que este completava “Ideias cinzentas” – sinceridade a escorrer pelos dedos melados de doçura. Frases dos nove anos, cheirando à madureza precoce.
Por isso, Ritinha sabia da verdade de Paulinho. Sangue sincero, ele. Ritinha acreditava em Papai Noel. Barbas brancas e gênio bom, o tal velhinho. De pés descalços ou não, criança é uma só, de qualquer jeito. Segredo. Papai Noel é que conhecia! Apenas o olhar de criança podia ver Papai Noel. Nem óculos adiantavam. Mistério para gente grande... Ritinha precisava pedir à papai para alargar a chaminé... e logo!
Paulinho encontrara a touca de Papai Noel jogada no quintal...
Com passos secretos vinha o Natal...
Saul Cabral Gomes Júnior – A arte do diálogo e a verdadeira elegância São Paulo-SP
A maioria das pessoas associa a elegância ao modo de se vestir. Na verdade, o primeiro traço de elegância está no uso que se faz das palavras, ao longo de uma conversa. Elegante, primordialmente, é aquela pessoa que sabe utilizar as palavras certas no contexto adequado. Ser elegante é, primeiramente, uma prática de alteridade. Não diga ao Outro o que você não gostaria de ouvir. Uma frase aparentemente inócua pode macular a autoestima alheia. “Não tive a intenção de ofender...”. A Ação, por vezes, é uma fera indômita, que tritura a intenção, entre suas presas atrozes. Sejamos cuidadosos com o uso do inalienável direito de ser sincero. A sinceridade, algumas vezes, é uma justificativa para sermos sutilmente detestáveis. Equilibrar a sinceridade com o bom senso, certamente, é o exercício culminante da elegância. Fiquemos atentos às palavras que não são elogio. Elas são evitáveis e absolutamente desnecessárias. Sendo essas palavras proferidas ou não, o sol renascerá no dia seguinte. É preciso cuidado com as palavras que não são ofensa explícita. De fato, elas são as mais perigosas, porque permanecem no abominável limbo das palavras depreciativas que se mantêm sob a couraça do Involuntário. Se o comentário que você for destinar a alguém contiver algum indício de menosprezo, não o faça! Detenha-o no sacrossanto silêncio dos sábios. O procedimento de ser elegante se concentra no uso das palavras certas. Essas se situam na fronteira entre o necessário e o enaltecedor. As palavras que residem fora dessa fronteira são descartáveis e descortinam uma alma deselegante. Não cultivemos a ilusão de que as palavras elegantes variam conforme os gêneros. A palavra boa, autenticamente elegante, é assexuada; agrada tanto ao homem quanto à mulher. A elegância não está em trajar um terno italiano ou um vestido desenhado por algum estilista renomado. Ser elegante é valer-se do sumo da Linguagem, a fim de tornar a conversa aprazível para o ouvinte; é fazer uso de todos os sentidos para colher, no vasto jardim do léxico, as palavras sem espinho. Trajar roupas caras e consumir pratos sofisticados não revelam elegância alguma; apenas desvelam silhuetas cativas de seculares e inúteis convenções sociais. Se você quer ser realmente elegante, aposente o seu terno italiano (ou a sua echarpe parisiense) e aprofunde-se na arte suprema do diálogo.
Sérgio Afonso Dias – Sobre o que vem de baixo não me atinge Rio de Janeiro-RJ

Thithi Johnson - Queen Creek, Az, Estados Unidos

Valéria Maria Borges – Edifício Wales Brasília-DF
Edifício Wales
Acordo com o caminhão betoneira iniciando o expediente na casa vizinha, uma manhã habitual. Alimento o gato, águo as três suculentas que resistem, começo a tomar café, mas cada marretada lateja em um ponto da cabeça. Preciso sair. Por sorte, o Beto viajou e o carro está disponível. Passo uma hora no trânsito estancado por um atropelamento. Segundas-feiras.
Ao descer do carro, respiro um ar pesado, uma onda de excitação arrepia os pelos da minha nuca. Um presságio. Num segundo, galgo os lances da escadaria e alcanço a porta do edifício espelhado em azul do céu sem nuvens. Meu sexto sentido não falhou. Ao girar a maçaneta e entreabrir a porta, um odor pútrido de peixe invade minhas narinas. O café da manhã no estômago revira, quero retroceder, faltar um dia ao trabalho não prejudicaria a carreira de ninguém. A curiosidade, porém, prevalece sobre o asco, prossigo na direção do cheiro. A cada passo, a náusea se intensifica, estou numa peixaria imunda? Errei o prédio?
Não me enganei, era o Wales. Um edifício de escritórios no centro comercial de Brasília fedendo a peixe estragado é, no mínimo, enigmático. Contudo, pode ter sido um acidente, um carregamento de frutos do mar de algum dos restaurantes tombou ou um freezer queimou e o conteúdo apodreceu, mas a intensidade da fetidez não condiz... Continuo andando. Cubro a boca para não vomitar e tapo o nariz, difícil respirar. Ouço o burburinho efervescente das novidades. Meus olhos, ao que indica a razão, não veem bem. É impossível o que minha retina envia para o cérebro. Ou ele não decodifica corretamente? Um delírio, loucura? O que enxergo ali, bem no meio do hall de entrada do Edifício Wales, é um imenso animal morto.
Uma baleia! De verdade! No chão de um prédio!
A hipótese da insanidade seria a mais aceitável não fosse a quantidade de pessoas também atônitas em volta daquele gigante.
Suas toneladas ocupam toda a entrada do edifício, e as pessoas espremem-se para acercar-se dela, nem o fedor violento consegue conter a curiosidade. Flashes me cegam, porém, caminho obstinada a sentir a pele daquele peixe-mamífero, que eu conheceria morto e em Brasília. Tocar traria a certeza da realidade. Também não vi nenhum rosto conhecido para compartilhar da história. Uma selfie mostraria para a mamãe e para o Beto que eu estou no epicentro de uma das coisas mais inacreditáveis que acontecera nos últimos tempos.
Pego o celular, ando abaixada para tentar me encaixar. Os seguranças tentam controlar o tumulto, mostro o crachá, tenho direito de estar ali, afinal trabalho no Edifício Wales. Só agora ligo os pontos. Alguém honrou o nome do lugar e colocou uma baleia ali? Uma manifestação
artística? Um protesto político? Não sei, mas a Jubarte (googlei) jaz no hall, a cauda de mais ou menos cinco metros quase toca os elevadores, e a cabeça –com uma mandíbula que caberia a minha cabeça e a de mais seis pessoas de uma vez – chega até o corredor.
Sua pele reluz tons azulados e pretos, a nadadeira das costas está ferida. A parte de baixo dela, branca, espalha-se pelo piso de porcelanato também branco, um lugar que a baleia nunca deve ter imaginado estar. Uma garrafa plástica obstrui o orifício respiratório próximo da cabeça, provavelmente ela morrera assim, sufocada pelo plástico.
Consigo, aos empurrões, me aproximar. Fico na ponta dos pés, estico o braço e tento posicionar a mão em qualquer parte do corpo da baleia, e, quando estou quase encostando, quando a umidade beija as pontas dos dedos... um empurrão, me desequilibro e caio de costas. Tudo fica preto. Quando recobro a consciência, estou no meu andar, deitada no sofá de couro da recepção. Levanto sobressaltada, corro para os elevadores, quero ver a baleia, o cheiro de peixe remanesce em mim. Aperto o botão para descer. Vasculho os bolsos da calça e do casaco, e nada. Desespero! O elevador já está chegando!
Finalmente, volto ao sofá e encontro o celular na mochila. Não poderia ir sem ele, ou ninguém ia acreditar na história. Na tela, cinco chamadas não atendidas da chefe, já era nove e dezoito! Estou muito atrasada para a reunião e ainda tenho que entregar um relatório até às duas. Talvez não tenha tempo nem para almoçar. Boto a mochila nas costas, ajeito o cabelo, passo um batom e corro para a sala de reuniões. Segundas-feiras.
Victória Falcão Rodrigues Freire – Traumas Fortaleza-CE
todos os seus traumas incorporam em mim como se eu fosse uma espécie de espelho seu meus fantasmas e angústias tão antigos e familiares agora se associam aos teus então eu cresço pequena e não encaixo bem em lugar nenhum tenho medo das sombras da tua voz do barulho que a noite faz lá fora tenho medo de olhar o espelho e da apatia que corre nas minhas veias os gritos e o aprisionamento meus sentimentos mal compreendidos não sei por onde começar ou por onde posso fugir desse caminho não existe uma estrada de tijolos amarelos que me guie na direção certa tudo parece uma realidade desfeita e não a nada nem ninguém em quem eu possa acreditar.
Wagner Cortês de Lima – O Lugar do futuro Carnaúba dos Dantas-RN
É sobre o amanhã que não sei É sobre o meu olhar na janela De quem sabe eu ver a vida Com o tempo de rugas Evocar a alvorada Do parto da minha meninice Na ampulheta do meu vilarejo Prezo em vislumbrar O agora Que esperanço Ser depois.
Seguem abaixo alguns eventos culturais que o Site Concursos Literários publica. Acesse e confira: http://concursos-literarios.blogspot.com/
- 15.12.2021 - Antologia - Volta para tua terra - Editora Urutau (#Portugal - @ - Contos)
- 15.12.2021 - Antologia - Por trás daquelas grades - Editora Recontando (@ - Contos)
- 15.12.2021 - Prémio Literário Santos Stockler 2020/2021 - 4ª Edição ($)
- 16.12.2021 - Porto22 - Coletivo Cultural (@)
- 17.12.2021 - Prémio Literário Correntes d’Escritas | Papelaria Locus (#JovensEscritores - Contos - $)
- 20.12.2021 - Chamada - Da Terra à Lua #2 - WE Coletivo Editorial (#Brasil - @)
- 20.12.2021 - VI Prémio Internacional de Peças de Teatro para Jovens (@ - $ - Dramaturgia)
- 21.12.2021 - Antologia - Fronhas Coloridas - Editora Persona (@ - Poemas)
- 21.12.2021 - Antologia - Olhares Negros - Editora Persona (@)
- 31.12.2021 - Chamada - Revista Proserpina (#Brasil - @ - Contos)
- 31.12.2021 - LXIII Jogos Florais de Nova Friburgo (@)
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