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Detynha, dezembro 1979

Detynha, dezembro 1979

Alguma coisa morreu dentro de mim. Talvez o te ver de novo, enrolando o cabelo devagar ou nervosa. Teu convite para a praia, tuas botinhas novas e a vontade de dançar como Isadora.

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Mas alguma coisa bonita também ficou no fundo de tudo isso, tua foto de vestido branco, cabeça baixa. Bonita e faceira. Uma bolsa de palha comprada numa lojinha do Leblon naquele dia, depois do almoço no La Mole. Uma Coca no Amarelinho da Cinelândia. Teu bilhetinho pelo correio outro dia, coisas assim.

Desencontros, aquele jantar estranho, um copo de vinho branco, apressado, e tua casa nova cheia de plantas. Mais uma Coca à beira-mar, tinhas que sair rápido para o trabalho.

Quantas coisas mais, pedacinhos de vida, como o vasinho azul. O cheirinho do Pará. Aquelas botinhas que te mandei. Os sonhos de vida que deixaste. Queria te contar de Paris, de Moçambique, da Tanzânia, de Creta e dos burrinhos de franja. Queria ouvir teu riso, tua voz doce.

Vai dançar, Detynha, rindo, enrolando o cabelo nas pontinhas. Ouço Brahms e lembro de ti, e nem sei se ouvias Brahms. Não importa. O distenso verão lembra o burrinho de franja, que talvez esteja numa parede do teu apartamento.

As palavras se transformam, os desconhecidos passam. Um livro novo, uma lua quebrada. Fim do dia. Esse arrepio de repente, teu olhar carinhoso.

Teus-nossos sonhos. O muro branco no pátio da João Manoel, o abacateiro. Os armários de madeira clara ao lado da janela. No canto da tua cama, papéis de bala, chocolates, folhas amassadas, copos. Tua enorme desordem interior de menina prodígio. Teu mutismo, tuas risadas.

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Ouvias os Beatles. Eu não sabia como chegar perto de ti. Nos olhamos assustadas. Teu olhar estava meio perdido, num lugar onde eu não conseguia chegar.

Essa enorme perda da nossa pequena cumplicidade. Nos teus escritos, descubro uma criança inquieta.

Os horários familiares nos enclausuravam. As hipocrisias. Os sermões. Fomos juntas dar um salto para fora. O meu seguiu e está na viagem de volta. O teu não aguentou.

Estados de espírito. Dias de um verão que não veio. Passou e deixou a sua marca no travesseiro. A janela aberta. Domingo outra vez. Chuva. E tu nos meus sonhos. Terna, distante e triste.

No fundo de mim, tua morte vem nos sonhos, em pedaços de ti. E esse vazio das palavras, dos encontros, a vontade de continuar aqueles papos no Amarelinho.

Teu escrever bonito. A casa vazia que eu queria te mostrar, as solidões por telefone, o filme que acabei de ver. O calor do chá, uma dor de cabeça. Distenso verão.

Detynha, na aparente desordem da minha cabeça, a angústia das palavras trancadas na garganta.

Nossos burrinhos de franja cresceram e perderam a graça. Fizeram barulhos, festas, vinhos, fumos e solidão. Encontraste talvez o caminho certo para essa loucura de vida.

Chegando no Rio, em Porto Alegre, em Cachoeira, com o vazio da tua presença-ausência, ouvi da família os relatos da tua loucura. Um diálogo imaginário nasce entre nós. No Rio, visitei os lugares onde moraste. Sentei-me no Amarelinho te imaginando ao meu lado. Jantei no La Mole. Li velhas reportagens tuas. Abri os teus diários um a um, entre curiosa, encantada e com medo da tua loucura. Chorei velhas lágrimas, de certa forma para pensar em ti. Deixaste um vazio enorme.

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Teu lado doce, meus pedaços que foram embora. Teus bilhetinhos coloridos. Fragilidades minhas, tuas, nossas. Coisas que se foram contigo.

Lembra, Detynha, do bar do Dudu? Vamos tomar um vinho? Sabe, guria, achei a Liliza mais velha. Vamos à praia?

Difícil diálogo esse. Difícil e inevitável, quando falo com os tios, com os primos, com meus irmãos.

Procuro gentes, estou deslocada no tempo, no espaço e no milênio. Durmo e espero. Não existo, agora. Busco pedaços de ti, de mim, da nossa infância, da nossa adolescência, das cubas-libres, dos fusquinhas, dos sarros, dos porres, dos risos, das decepções, das festas.

Os pedacinhos dos nossos reencontros. Horas, ouvindo Milton e Luiz Melodia, deixaram muito de ti. Tuas loucuras, tuas ternuras deixaram um arrepio na minha pele. Pela tua coragem. Pela tua força.

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