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Seu Achilles e dona Delfinha

Seu Achilles e dona Delfinha

O vô e a vó casaram-se muito cedo. Eram primos-irmãos. Ambos muito religiosos. O vô mais falante, a vó mais quieta.

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Quando meus pais faleceram, a vó foi para Porto Alegre morar conosco. Ficou lá até eu fazer 18 anos. Foi difícil para ela e para nós. Brigávamos muito. Mas ela era uma pessoa terna e carinhosa atrás da sua seriedade. Estava sempre preocupada conosco. A diferença de gerações era muito grande.

Lembro que quando começamos a ir a festas, tínhamos que estar acompanhadas do Liberato, nosso irmão mais velho. Não podíamos sair todos os sábados. — Uma moça não pode ser muito vista – dizia a vó.

Ela fazia muitos doces. Como tinha vivido muito tempo no campo, conhecia bem a natureza. Algumas vezes, quando a gente estava saindo para a escola e tinha uma ou duas nuvens no céu, dizia: — Levem o guarda-chuva. Sempre tinha razão nesse ponto. Se não o levávamos, voltávamos inevitavelmente ensopados. Quando ela abria a porta, dizia: — Eu não falei? Ia até à cristaleira e nos trazia um copo de licor para a gente não se resfriar.

Foram anos difíceis para todos nós. Mas ela teve muita paciência, aguentando nossas crises, nossas chatices, nossas reclamações. Faleceu de problemas intestinais. Foi difícil esquecer aquela figura séria, doce e serena.

O vô tinha muita curiosidade pela vida. Olhos vivos, querendo conversar, perguntar e se informar sobre tudo.

Uma vez, quando estava em Porto Alegre para uma exposição do Eduardo, quis conhecer um shopping. Fomos com ele ao Iguatemi. Era sábado, o local estava cheio e alguém tocava piano. Ele olhou para tudo, deslumbrado.

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Quando a música parou, pediu para o pianista tocar “Fascinação”. Ficou ouvindo e disse para nós: – E eu, em Cachoeira, sem conhecer essa maravilha!

Nesse dia, ele comprou um sobretudo. Gostou tanto que resolveu levar dois. A vendedora perguntou quantos anos ele tinha. Quando disse orgulhoso: 101, ela falou: — O senhor ainda quer viver muito!

Ouvia o noticiário no rádio a todo o volume. À noite via o jornal na tv. Caminhava todo o dia. Antes de ser hospitalizado, ia diariamente ao escritório, onde ainda tinha sua sala. Ficava um pouco, recebia as pessoas. Depois, ia até o café Frísia conversar com os amigos.

Quando era mais moço, gostava de caçar perdizes no mês de julho com o seu Picolotto, um vizinho, e outros amigos. Lembro dele voltando cansado e feliz, carregando perdizes.

A mão apressada no cabelo escovinha. A cara morena. A mão fechada em frente da boca. Descubro-me fazendo o mesmo gesto. Heranças, hereditariedades. Nossos passos nas tábuas de madeira fazendo estremecer a cristaleira e o relógio. O barulho das horas soando devagar na tarde.

As manchas da velhice nas tuas mãos morenas, nervosas, abrindo e fechando a carteira. Trocamos frases banais no sofá sob o olhar calmo da Gessy, embaixo do retrato da vó.

Estavas sempre lá, sentado, imutável, vestido para uma festa invisível, de terno e gravata desde cedo, tomando mate, dormindo a sesta, ouvindo as notícias. Penteando o cabelo prateado para trás.

Chegando e saindo a intervalos regulares. Voltavas para a laranja das dez, o almoço ao meio-dia, o copo de leite das

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três. O mate das cinco, o café das sete, com direito às notícias da tv e às novelas.

Depois, um telefonema para ver se a tia Candinha está bem. Para o padre Antônio, para saber da reunião da irmandade.

Ias para a cama invariavelmente às dez, com bolsa de água quente e chá, que a Gessy, sempre presente, levava.

Liberato e Eduardo ligavam de Porto Alegre. A tia Olga vinha da fazenda, entre apressada e nervosa, dando ordens na cozinha, abrindo armários, fazendo perguntas.

Quando chegavam visitas, buscavas galinhas, ovos e leite da chácara. Gessy fazia ambrosia e doce de coco. Da padaria, chegavam cucas. A casa tinha barulho e confusão por um ou dois dias e ficavas contente, mas também aliviado quando as visitas iam embora.

Mais tarde, o silêncio, a televisão, e o barulho dos passos, das conversas e dos risos nos teus ouvidos. E a presença ausente da vó nas flores do jardim, agora descuidado e cheio de folhas secas. Nos licores de ameixa e de pêssego. Nas compotas de laranja, de abóbora, nos doces de batata com coco. Nas visitas de domingo ao cemitério.

Fui te ver uma vez na minha época rebelde, em que eu usava só jeans e camisetas. Quando viste que eu não usava vestidos, me disseste: — Vou te dar dinheiro para comprares umas roupas. Uma moça tem que se vestir direito. O que é que os outros vão pensar? Quando voltei da loja, com mais jeans e camisetas, percebeste que seria difícil tentar que eu me transformasse numa moça bem vestida.

Perguntas sobre computadores, sobre a Unesco, sobre Paris. Contas mil vezes a mesma história. Te ouço

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aborrecida, mas com uma velha ternura que não nos deixa, apesar das andanças, dos caminhos, dos aviões, das pessoas que passam.

Viveste 105 anos bem vividos. Nos últimos tempos, já no hospital, conservavas o bom humor e brincavas com as enfermeiras. Foste o último da tua geração a morrer em Cachoeira.

Cheiros e sons da infância. Piúnas, pitangas e ambrosia. E o relógio com aquele som metálico nos nossos passos no corredor.

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