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Apresentação

Apresentação

Marcius Freire

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Sim, são muitos verões!

Distensos?

Os verões da Miriam são as quatro estações!

E, como estas, são variadas as cores, diversos os sons e múltiplos os perfumes que emanam de cada uma das páginas através das quais faremos tantas viagens. Aqui, pois que estamos embarcados no ballet mecânico de que toma parte o nosso planeta, não encontraremos apenas verões, mas também invernos. O primeiro e mais rigoroso deles, por ter se tornado tão longo e penoso para a nossa geração, levou-a a buscar, custasse o que custasse, uma primavera redentora. Esta, no entanto, parecia encontrar-se longe daqui, do outro lado do Atlântico. Sim, porque à nossa volta já quase não havia luz. Aquela última, a brilhar obstinadamente e que por três anos acenara com uma alternativa à nossa desesperança abrigando quem daqui era arrancado, se apagara um ano antes, esmagada pelo peso de botas renegadas e substituída pelo brilho infame das labaredas que fizeram arder o La Moneda. E aquele que era um refúgio às vítimas das botas brasileiras sucumbia à violência daquelas dos seus próprios algozes.

Estávamos em 1974. O extenso inverno que se abatera sobre todos nós brasileiros já durava dez anos. Enxergar através da densa bruma que encobria a nossa América havia se tornado praticamente impossível. Portanto, reencontrar o

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verão que havíamos perdido tão jovens exigia rupturas. E foi o que a Miriam e muitos de nós fizemos naquela primeira metade dos anos 1970.

Os pontos de partida se espalhavam pelas cinco regiões do Brasil, mas era o Galeão que nos levava para longe. Movidos por impulsos interiores os mais diversos, éramos tantos a emprestar essa mesma rota de partida que, qualquer que fosse o porto de chegada, uma comunidade nostálgica e apaixonada por suas raízes nele se instalava.

Por razões que só a história de cada um pode explicar, no caso da Miriam e do nosso pequeno grupo de deportados voluntários, o encontro não marcado se daria às margens do Sena. Ali nos acomodamos por anos, intercalando os nossos verões parisienses com os midsommars suecos.

Como que consumando os mais recônditos dos nossos presságios instintivos, chegamos à Europa quando os dias são tão longos que não parece haver noite. A luz de que há pouco precisávamos se espalhava sobre nós, reverberando em nossos corpos e em nossos espíritos como um bálsamo remissor.

Em Lisboa, onde Iuli e eu decidimos fazer uma escala não programada antes de desembarcar em Orly, trocando-o pela Gare d’Austerlitz, os cravos do 25 de abril, colhidos apenas dois meses antes, estavam por toda parte. A névoa que havíamos deixado em casa começava a se dissipar justamente naquele que é um dos nossos berços primordiais. Uma peregrinação àquele outro de que tanto nos orgulhamos, a Miriam faria por nós. Moçambique, Cabo Verde, Tanzânia... lhe ofereceram outros verões, outros encontros e muitas outras luzes, reconstituídos através da sua escrita, da sua poesia em forma de prosa.

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As crônicas aqui reunidas vão fazer muitos de nós rever com o espírito aquilo que já vimos com os olhos. E, nesse processo, vamos imprimir novas cores às nuances das nossas diferentes lembranças, muitas delas já esmaecidas pela ação dos anos.

Os tantos verões reconstituídos pela Miriam são uma elegia a toda uma geração de brasileiros que, de alguma forma, conseguiu escapar àquele longo inverno. Contudo, são também um canto a quem deles faz parte mas, por qualquer razão, com eles não poderá embarcar rumo às inúmeras viagens que oferecem. De Cachoeira do Sul ao Leblon; de Gentilly a Gärdet; da rue Stendhal ao Père Lachaise – onde as cinzas do Iuli foram espalhadas, lá deixando um rastro perene de nossa presença naquele abrigo parisiense – todos nos reencontramos nestes distensos verões com que a generosidade e o talento da Miriam nos presentearam em meio à rigorosa noite invernal – mais uma – que ora atravessamos.

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