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A GÊNESE DO GÊNIO

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O CORAÇÃO DA COR

O CORAÇÃO DA COR

Era uma vez… Não! Este texto não pode começar assim. Diz a lenda... Pior ainda!

É de conhecimento geral... Em meados dos anos... Muitos argumentam que... Qual o ponto de partida?

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Essa dúvida me persegue desde o dia que Ziraldo me incumbiu a tarefa de biografá-lo em um número limitado de caracteres. O limite é a questão. Afinal, por onde começar uma história sem fim?

Seria lá no início, na origem do nome estranhamente sonoro de um menino inteligente de Caratinga, superdotado para as artes, que aos 6 anos publicou seu 1º desenho no jornal Folha de Minas e que aos 15 ganhou o Rio e não largou mais? Mas isso já foi dito e redito.

Quem sabe fosse melhor começar enaltecendo o poder agregador de um eterno fazedor de novos amigos de infância, sempre disposto a mantê-los por perto da mão, ou do coração. Mas a Turma do Pererê já demonstra isso com uma prosopopeia afetiva maravilhosa.

Talvez o truque seja buscar um tom mais pessoal... Lembro vagamente em minha memória adolescente de minha presença invisível na festona comemorativa dos 40 anos de Ziraldo e de meu querido tio Darwin. Amigos fraternos, nasceram no mesmo dia... Mas isso aqui não é reprise de novela de TV.

Outra boa opção é o Natal de 1988 que passei em Nova York, com sua numerosa, festiva e amorosa família que ainda me acolhe como a um filho. Não nos conhecíamos, mas nos reconhecemos na hora, compartilhando a saudade de meu tio. Voltou para o Rio antes de mim e já foi me pré-apresentando à minha futura e desavisada sogra, sua irmã, com uma garrafa de champagne para brindar o fato. Mas isso aqui também não é um folhetim romântico melodramático movido a lágrimas.

Acho, porém, que a melhor maneira de dar forma a esse texto é começar por FLICTS.

Um marco que divide o tempo – com a merecida reverência – em “a.F.” e “d.F.”. Eu, sinceramente, nem me lembro mais de meu primeiro contato com Flicts. Para mim, a Lua sempre foi flicts e ponto final. Descobri isso antes da NASA, navegando nas páginas de um livro diferente. Revi essa experiência diversas vezes, crescendo junto com o livro e sempre relendo com outros pontos de vista.

Acredito que Flicts seja o melhor retrato de Ziraldo. Um exemplo concreto da subjetividade objetiva que é a marca de sua genialidade. Ele me disse certa vez: “Ideia?

Ideia eu tenho 200 por dia, o difícil é realizar alguma delas.” Esse pensamento pulsante sempre foi movido pela curiosidade e pelo desejo de se comunicar. A pesquisa, a experimentação e a busca do domínio de múltiplas linguagens e técnicas proporcionando, a cada oportunidade que surge, múltiplas alternativas e múltiplas soluções. Nada mais ziraldiano do que isso.

Flicts nasceu quase como contrapeso para o livro Jeremias, o Bom. Ziraldo pretendia editar uma coletânea das tiras semanais impressas no Jornal do Brasil e na revista O Cruzeiro e levou alguns originais até a editora Expressão e Cultura.

O editor, Fernando de Castro Ferro, topou o Jeremias, e como condição encomendou ao autor outro livro, um infantil. Desafio proposto, desafio aceito na hora. O prazo curto direcionou a busca de uma solução técnica totalmente fora dos padrões das ilustrações infantis da época, em sua maioria pensadas como desenhos e pinturas figurativas, com personagens em cenários bucólicos de contos de fadas. Flicts rompeu radicalmente com isso.

O protótipo foi feito com pedaços de papéis coloridos utilizando um livro impresso como base. Ilustrações feitas com tesoura e estilete. O produto final, o livro impresso, foi montado dentro da gráfica, com Ziraldo aprendendo e experimentando, dirigindo técnicos e máquinas na busca da poesia. Flicts talvez seja o primeiro livro infantil brasileiro em que o termo “original” foi substituído por “arte final”. E o mais interessante é saber que tanto a falta de pincéis e tintas quanto o prazo curto não foram encarados como obstáculos e sim como parâmetros criativos, norteando a busca da melhor forma de se expressar e se comunicar.

O sucesso de Flicts, com a 1ª tiragem de 10.000 exemplares – esgotada em 6 meses –e a 2ª também de 10.000, mostrou aos profissionais do mercado editorial que a criatividade objetiva e a ousadia consciente podem dar lucro. Flicts abriu portas ao propor uma estética contemporânea, com influências ressignificadas da POP-ART e do design europeu. Abriu portas e iluminou a carreira de muitos de nós que viemos depois. A cor como linguagem potencializando a poesia com grandes áreas monocromáticas, harmonizadas com o uso magistral do branco.

O solitário Flicts faz 50 anos e ainda pergunta: “Eu posso ser seu amigo?”.

Alguma dúvida?

Guto Lins Designer, ilustrador, escritor e mestre em literatura

Nota do editor da primeira edição, Fernando de Castro Ferro, em 1969:

Poucas vezes terá um autor conseguido entusiasmar um editor com a rapidez e a intensidade de que fui “vítima”, quando Ziraldo acabou de me contar a história de Flicts. A sessão de leitura durou talvez meia hora. Não foram precisos quaisquer comentários. As palavras se tornaram inúteis. A comunicação que se estabeleceu entre nós foi imediata. Ziraldo sabia o que havia criado e também sabia que eu tinha “sentido” totalmente esta extraordinária obra. Na verdade, não tive a menor dúvida de que me estava sendo confiado algo de muito importante: uma nova dimensão de livro, aquela obra que todo e qualquer editor aguarda e que só muito raramente lhe chega às mãos. No mesmo dia, os nossos serviços técnicos iniciaram a montagem de Flicts.

Passaram-se apenas seis semanas e, agora, ao apresentar esta edição ao público de língua portuguesa, enquanto também já preparamos a sua difusão pelos quatro cantos do mundo, sinto com grande humildade uma das maiores alegrias dos meus muitos anos de editor. Confesso que até então não tivera a sorte de publicar outra obra que possuísse esta grandeza e, de resto, elas são raras, em todo o mundo: poucos são os paralelos que posso encontrar e todos eles de motivações bem diferentes. Assim, Ziraldo, que já gozava de reputação mundial como humorista e especialista em artes gráficas, adquire uma posição de destaque na literatura de nosso tempo e, sem qualquer espécie de exagero, abre novas perspectivas para aquela aliança, que se torna essencial, entre as letras e a comunicação visual, aliança que todo editor consciente buscava há muitos anos. Obrigado, Ziraldo.

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