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Capítulo 1 Em prol de uma arte nova
Diante da paisagem, o nosso homem choca-se então positivamente:
— Oh! Isto não é paisagem! Que horror, olhe aquele maço de coqueiros quebrando a linha do conjunto! Não percebe ele, da paisagem, senão a noção polida e calma. E porque se impressionou nas suas vilegiaturas pela França, onde o contato secular da terra com o homem fez tudo cultivado, reduzido à expressão complacente, ajardinado por assim dizer, ei-lo tomando-se de pavor diante da nossa natureza tropical e virgem, que exprime luta, força desordenada e vitória contra o mirrado inseto que a quer possuir. No entanto, daí quanta sugestão exuberante, violentamente emotiva, não poderia dar a temperamentos de escolha a chance de criar uma grande escola de pintura nacional. […] incorporados ao nosso meio, à nossa vida, é dever deles tirar dos recursos imensos do país, dos tesouros de cor, de luz, de bastidores que os circundam, a arte nossa que se afirme, ao lado do nosso intenso trabalho material de construção de cidades e desbravamento de terras, uma manifestação superior de nacionalidade1
O trecho acima constitui o núcleo argumentativo de “Em Prol de uma Pintura Nacional”, primeiro texto sobre pintura escrito por Oswald de Andrade e publicado, em 2 janeiro de 1915, na revista O Pirralho2 . Trata-se de uma reação veemente à atitude de desprezo em relação à paisagem brasileira notada pelo autor nos artistas paulistas que retornavam ao país, após período de estudos na Europa patrocinado pelo programa de Pensionato Artístico do Governo do Estado. Reação provavelmente motivada pela chegada de vários desses pensionistas, logo que estourou a Primeira Guerra Mundial3. Havia em São Paulo um grupo de artistas em cujo estudo o Estado havia investido, mas que, na opinião do escritor, não contribuía para a criação de uma escola de pintura nacional, faltando assim com seu dever enquanto artistas brasileiros. Alguns elementos chamam atenção nessa crítica de Oswald de Andrade aos resultados do Pensionato Artístico. O primeiro deles tem relação com o próprio objetivo da iniciativa. Criado em 1912, vinculado à Secretaria de Estado do Interior e concretizando proposta existente desde a década de 18904, o principal objetivo do Pensionato Artístico era suprir a carência de uma instituição de ensino artístico na cidade de São Paulo, que contava naquele momento apenas com os cursos oferecidos pelo Liceu de Artes e Ofícios, mais voltados ao ensino da arte aplicada à indústria, e com as aulas ministradas por professores particulares5 Antes de criar uma escola de pintura nacional, portanto, a proposta da bolsa de estudos era clara: “será seu intuito principal, para não dizer seu único objetivo, a instrução teórica e prática, visando, por uma equilibrada e gradativa distribuição dos conhecimentos ministrados, habilitar os que quiserem dedicar a sua atividade à profissão artística”, diz o relatório apresentado ao Presidente do Estado, Rodrigues Alves, pelo Secretário do Interior, Afonso Arinos, em 19126. Ao reivindicar que era dever dos pensionistas trabalhar para a criação de uma escola de pintura nacional, Oswald de Andrade realiza dois movimentos: por um lado, dá um passo além em relação aos objetivos originais do Pensionato, buscando promover uma orientação estética definida que justifique o investimento do Estado na formação dos artistas; por outro, não reconhece que, até aquele momento, as várias gerações de pintores brasileiros formados pela Academia Imperial de Belas-Artes e, depois, pela Escola Nacional de Belas-Artes, haviam criado uma escola de pintura nacional7. Havia apenas uma exceção.
2 Em 1914, ano em que se iniciava a Primeira Guerra Mundial, Oswald de Andrade retoma sua colaboração no semanário O Pirralho, de que fora um dos fundadores, três anos antes. Após um período de afastamento motivado, em parte, por sua primeira viagem pela Europa (entre fevereiro e setembro de 1912) e, em parte, por razões econômicas envolvendo a venda de terrenos que seu pai possuía em São Paulo, sua nova colaboração se dá fundamentalmente na seção de rodapé intitulada “Lanterna Mágica”. Nela, Oswald de Andrade publicará reflexões de natureza variada, abrangendo desde comentários sobre episódios da Guerra, relatos sobre conferências em que esteve presente, impressões sobre a passagem pelo país do campeão mundial de boxe Jack Johnson, até pequenos textos ficcionais e artigos sobre teatro, literatura e pintura.
3 No início do texto, Oswald de Andrade se refere diretamente aos pensionistas: “Agita-se por São Paulo um movimento desusado de artistas pintores. São os nossos pensionistas do Estado, que a guerra obrigou a deixar a vida pitoresca dos ateliês e dos quartiers […]” (Oswald de Andrade, Estética e Política, p. 209). Segundo a tabela que apresenta os locais e períodos de estudos na Europa dos pensionistas de artes plásticas, elaborada por Marcia Camargos, Entre a Vanguarda e a Tradição: Os Artistas Brasileiros na Europa (1912-1930), São Paulo, Alameda, 2011, p. 104, seis artistas tiveram a bolsa de estudos encerrada no ano de 1914: Alípio Dutra, Diógenes Campos Ayres, Helena Pereira da Silva Ohashi, José Monteiro França, Paulo do Valle Júnior e Paulo Vergueiro Lopes Leão. Entre 1915 e 1916 retornaram ao país ainda José Wasth Rodrigues, os irmãos Dario e Mario Villares Barbosa e o escultor Marcelino Vélez. Além dos pensionistas, vale lembrar que, em 1914, também Anita Malfatti havia regressado ao país, depois de uma temporada de estudos na Alemanha, financiados pela família. A artista realizou sua primeira individual em São Paulo naquele ano.
4 Marcia Camargos, Entre a Vanguarda e a Tradição..., p. 60.
Essa exceção está ligada a outro elemento que merece destaque no argumento do escritor: a ideia de que a fonte para a construção da pintura nacional estaria na natureza brasileira. Tal como sugere Mário da Silva Brito8, apesar dos muitos acontecimentos que separam a publicação desse texto e o surgimento do Manifesto Antropófago em 1928, havia aí já um embrião de projeto, uma proposta esboçada no pensamento de Oswald de Andrade para a criação artística brasileira. Essa proposta apontava a paisagem, ou melhor, a natureza tropical exuberante e virgem, em tensão com o “mirrado inseto” humano que a queria possuir, como um fator que poderia alicerçar a criação de uma arte nacional. E para defender a viabilidade dessa proposta, o escritor apresenta um “precursor, encaminhador e modelo” para aquela escola de pintura por vir. Trata-se de um ex-aluno paulista da Academia Imperial de Belas-Artes, o pintor ituano José Ferraz de Almeida Júnior. A respeito de suas pinturas, Oswald de Andrade se manifesta nos seguintes termos:
5 Um panorama mais abrangente da situação da arte em São Paulo nas duas primeiras décadas do século xx, desde exposições realizadas, cursos de ensino artístico, situação do colecionismo e espaços de exposição pode ser encontrado em Tadeu Chiarelli, Um Jeca nos Vernissages, pp. 45-67.
6 Marcia Camargos, Entre a Vanguarda e a Tradição..., p. 58.
7 Para uma apreciação do debate em torno da possibilidade de uma escola brasileira de pintura, no interior da Academia Imperial de Belas-Artes, e da inserção das pinturas de Almeida Júnior nesse debate, ver os a introdução de Tadeu Chiarelli ao livro Arte Brasileira, de Gonzaga Duque, e os capítulos “A Questão do Realismo e da ‘Escola Brasileira’: Os Fundamentos da Academia e sua Crítica no Contexto da Exposição de 1879” e “‘O Criador da Pintura Nacional’ — A Solução Paulista ao Problema da Escola Brasileira”, em Fernanda Pitta, Um Povo Pacato e Bucólico: Costume, História e Imaginário na Pintura de Almeida Júnior, São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2013 (Tese de Doutorado).
8 Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna, 4. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, p. 35.
Os seus quadros, se bem que não tragam a marca duma personalidade genial, estupenda, fora de crítica, são ainda o que podemos apresentar de mais nosso como exemplo de cultura aproveitada e arte ensaiada.
É assim que vemos nele posta em quadros que ficaram célebres a tendência do tipo nosso, em paisagem, em estudos isolados de figura ou composições históricas de grupos9
Para além de obras mais conhecidas como Caipira Picando Fumo (1893) ou Caipiras Negaceando (1888), o quadro Paisagem do Sítio Rio das Pedras (1899) [Figura 1] é um bom exemplo do que pode ser essa qualidade percebida por Oswald de Andrade na obra de Almeida Júnior, aplicada à representação da natureza brasileira. Nela, vê-se o riacho correndo para dentro de uma vegetação densa, que obstrui a visão do horizonte, deixando aberto apenas um pequeno pedaço de céu. Não há caminho aberto, nem cultivo ou ajardinamento, apenas a “força desordenada” da natureza tropical desafiando a presença humana, que não parece ter realizado ali nenhum trabalho. Há um tratamento da paisagem no qual a natureza se impõe sem ser dominada pela vista. Não há distância e a visão é engolida pela mata.
É curioso, no entanto, que o escritor não reconheça na obra de nenhum dos pintores paisagistas radicados no Rio de Janeiro qualquer tentativa no sentido que ele apontava. Tome-se, por exemplo, a obra de Giovanni Battista Castagneto. Como não reconhecer nas marinhas luminosas do pintor a dedicação à pesquisa dos nossos “tesouros” de cor e de luz que Oswald de Andrade recomendava? Uma resposta possível é que Castagneto era um imigrante italiano; outra, é que a natureza brasileira que o escritor desejava que fosse explorada era a natureza do interior e não mais do litoral, como vinha sendo ao longo do século xIx e início do xx, no contexto acadêmico e mesmo fora dele (como os pintores do chamado Grupo Grimm).