2 minute read

ZÉ KETI, UM RAPSODO

Trabalhávamos quase na praça Mauá: ele, no Iapetec (um braço da Previdência Social, na avenida Venezuela); eu, numa empresa de navegação, na avenida Rio Branco. 1962, 63? Eu teria 27 ou 28 anos, ele, quinze anos mais velho. Mais velho? Que nada: um dínamo. O que nos aproximou foi uma casa de samba prestes a ser inaugurada, que tinha a intenção de fazer enriquecer duas nobres criaturas vocacionadas para a pobreza. Falo de Zica e Cartola, já então meus amigos e – dali a pouco – meus afilhados de casamento. Fiquemos, por enquanto, para contextualizar os fatos, no salão ainda vazio e em fase de pintura do que seria o célebre Zicartola. Como já testemunhei tantas vezes, e nem sempre vi com clareza meu pensamento ser transcrito, aquela casa de samba seria o reduto de alguns personagens que pensavam transgredir as regras do jogo, pensar o país de uma outra forma, prepará-lo para grandes mudanças.

Se não tínhamos vocação específica para guerrilheiros, sabíamos, entretanto, escandir com palavras a nossa indignação e tentar, com um mínimo de lucidez, seguir quem nos liderava. E o que seria liderar?

Considero, por exemplo, o Vianinha uma liderança. Ele atuava no Centro Popular de Cultura da UNE e, com Sérgio Cabral à frente, levava o pessoal do samba para cantar para a estudantada. As tribunas eram as mais diversas, e o Teatro Jovem uma delas, com um centro de dramaturgia exclusivamente brasileiro. Cada um fazia sua parte: Cabral tinha uma trincheira no Jornal do Brasil em defesa da nossa música programação das rádios. Rabiscava suas ideias, sonhando, que nem um Paulo Freire, com a inserção daqueles valores em um sistema menos submisso, mais humano, e que se enfeixasse em nossa realidade. Conversar com Zé Keti era aprender: ele era, como gostava de dizer o Elton Medeiros, um rapsodo. Todo aquele universo do samba, com seus fatos e personagens tão ricos, ele o transpunha para seus sambas extremamente originais e que já chamavam a atenção, por exemplo, do Carlinhos Lyra.

Em fins de 1963, inauguração do Zicartola. Levo Paulinho da Viola e Ismael Silva para as noitadas idealizadas e, enfim, concretizadas pelo Zé e apresentadas por Albino Pinheiro, Sérgio Cabral e por mim, em sistema de revezamento. Cartola, Nelson Cavaquinho, João do Vale, Padeirinho – eram noites esplendorosas. As filas serpenteando na porta do Zicartola, um sucesso estrondoso – e fugaz, se constataria depois. Veio o golpe militar em abril de 1964. Em dezembro estreiam o show Opinião , no teatro do mesmo nome, e o movimento Menestrel, com Clementina de Jesus e Turíbio Santos no Teatro Jovem; em março de 1965, o Rosa de ouro . A casa de samba agoniza aos poucos e morre. Zé Keti era um entristecimento só.

Muda o calendário, mas o cenário da praça Mauá é quase o mesmo. Cartola de contínuo, servindo cafezinho num ministério alocado no antigo edifício d’ANoite , onde ficava a Rádio Nacional – isso depois do fechamento do Zicartola. Numa tipografia perto do escritório onde eu trabalhava, volta e meia ia bater papo com o grande sambista Alvaiade, da Portela.

E Zé Keti, Zé Quietinho, sempre ele, pespontando, talvez sem o saber, o enredo de nossas modestas vidinhas. *