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Raul Cesar Gottlieb
OS VIOLINOS DA ESPERANÇA
Temos violinos que estiveram em Auschwitz. Que estiveram nos guetos. Que foram jogados pelas janelas dos trens que levavam os judeus para os campos. Nem todos os violinos estiveram na Shoá. Mas todos foram profundamente afetados pela Shoá.
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Fotos de Marina Ventura Gottlieb
Raul Cesar Gottlieb
Chegamos, Marina e eu, no endereço indicado em Tel Aviv, um prédio residencial comum. Descemos a escadinha que leva ao subsolo do prédio e abrimos a porta vermelha sem bater, conforme a recomendação recebida. Amnon Weinstein, um dos mais conceituados fabricantes de violinos de Israel, desvia o olhar de sua bancada de trabalho e diz: “Vocês devem ser os jornalistas brasileiros que marcaram hora comigo. Entrem, sejam bem-vindos”.
A oficina está atulhada de estantes, cada uma delas empilhando os violinos que ele está fabricando ou consertando. Muitas dezenas deles, o olhar não consegue achar um único espaço onde não haja um instrumento. Trocamos um pouquinho de conversa casual e logo mergulhamos no motivo da visita. Queremos entender o que são os “Violinos da Esperança” (Violins of Hope), o projeto que ele inventou e que compartilha com o filho.
De onde provêm os violinos do projeto?
De todo o mundo. Eu tenho muita experiência e confio muito no meu julgamento. Percebo com facilidade se posso ou não acreditar na pessoa. Muitas pessoas, que ouviram que eu colecionava estes instrumentos, vieram aqui com seus violinos, violas e violoncelos. Para alguns poucos o contato acabou com eu olhando para a pessoa e depois para o instrumento e depois de novo para a
pessoa e falando [numa frase bem israelense]: “Veja, ali há uma porta, vá até lá, saia e feche-a atrás de você”.
Mas 99,9% das pessoas foram muito bem-vindas. Elas estiveram lá, na Europa, durante a guerra, e a história que elas contaram sobre suas famílias, sobre os instrumentos, me convenceram que aquele violino era um dos que eu estava procurando.
Por que este interesse nos violinos?
Veja: meu pai era um artesão nascido na Polônia que fabricava violinos. Ele também era um sionista e em 1938 ele e minha mãe vieram para Israel a partir de Vílnius. Eu nasci aqui em 1939.
Durante a Shoá a minha família perdeu uma quantidade enorme de membros, eu não sei precisar quantos, mas a estimativa do meu pai indica um número gigante! Em torno de 400. Então, eu não queria tocar na Shoá. Meu pai teve um ataque do coração quando lhe contaram o que havia acontecido com a família dele. Então, eu tinha medo do assunto.
Mas isto mudou. Essencialmente porque em 1936 o Sr. Bronislaw Huberman fundou a Orquestra Filarmônica de Israel [naquela época chamada Orquestra Filarmônica da Palestina]. Huberman não sabia que a Shoá estava vindo, mas ele sabia que os músicos judeus estavam sendo escorraçados das orquestras da Alemanha nazista e quis ajudá-los [Amnon aponta para uma foto na parede atrás dele, onde se vê Huberman falando com Einstein, e nos explica que Huberman pediu ao cientista, e a tantos outros, para que o ajudasse a levantar os fundos necessários para o suporte aos músicos].
Os músicos que vieram pelas mãos de Huberman eram alemães, austríacos e poloneses e eles eram os melhores dos melhores dos melhores. Assim, a Filarmônica foi um sucesso desde o seu começo. O concerto inaugural foi regido pelo grande regente italiano Arturo Toscanini.
Em 1945 soubemos em Israel o que aconteceu na Eu-
ropa. Antes disso havia apenas rumores, não tínhamos certeza de nada. Mas depois que tivemos certeza teve início aqui um enorme boicote a tudo que vinha da Alemanha, incluindo, é claro, instrumentos musicais e seus acessórios.
Os músicos que tinham vindo da Europa haviam, obviamente, trazido consigo seus instrumentos e os melhores deles tinham sido fabricados na Alemanha. Muitos destes músicos procuraram o meu pai e disseram: “Se você não comprar este violino eu vou quebrá-lo, ou queimá-lo”.
Meu pai era um fabricante de violinos e sabia que não tinha havido problema algum entre os fabricantes de violinos alemães e os judeus. Alguns haviam até mesmo tentado proteger seus amigos judeus. Além disso, para ele, quebrar um violino era um quase sacrilégio. Então ele passou a comprar os violinos alemães trazidos para cá pelos músicos judeus. Comprar e guardar. E por anos ninguém queria ver estes violinos, ouvir falar deles, ter nada a ver com eles. Ficaram apenas aqui na oficina.
Até que um dia um aluno meu, um alemão de Dresden, viu aquela quantidade de violinos primorosos, enfileirados um ao lado do outro, cobertos por uma grossa camada de poeira, e me perguntou “por que isso?” Eu contei para ele a história toda. Ele nunca tinha ouvido nada so-
Seis milhões de judeus bre a música e a Shoá. E ele me pediu para perderam a voz na Shoá fazer uma conferência na cidade dele soe estes violinos são a bre os músicos judeus e seus instrumentos alemães. Eu não quis fazer a conferência. voz deles agora. Cada Mas ele não se conformou. Sentou aqui um destes instrumentos [aponta para o banco onde Marina está conta uma história. sentada] e ficou repetindo, faça, faça, faça. Fui para Dresden e fiz a palestra de duas horas para a Associação Alemã de Fabricantes de Violinos e Arcos. Eles ficaram chocados. Eles não sabiam nada sobre o que havia acontecido. Você sabe, na Alemanha Oriental [onde fica Dresden] não se falava sobre a Shoá, então aquilo realmente os abalou imensamente. Me perguntaram: “Você tem certeza que aquilo aconteceu?” “Existem provas?”, “Como foi possível?” e coisas assim. Na volta para Israel, dei uma entrevista no rádio contando sobre a palestra e pedi para quem tivesse um instrumento ou a história sobre um instrumento usado na Shoá que, por favor, me procurasse. E aí começou uma bola de neve. Um violino, dois violinos, cinco violinos, um violoncelo, duas violas, e assim por diante. Hoje temos 89 instrumentos na coleção. Cada um deles conta uma história. Temos violinos que estiveram em Auschwitz. Que estiveram nos guetos. Que foram jogados pelas janelas dos

trens que levavam os judeus para os campos. Nem todos os violinos estiveram na Shoá. Mas todos foram profundamente afetados pela Shoá.
A maioria foi trazida por judeus, mas nem todos. Vejam, temos na coleção o violino de um policial não judeu, que era músico amador e que falsificou muitos documentos para salvar judeus. Ele é considerado um dos “justos entre as nações” pelo Iad Vashem. Com certeza este violino também conta a história da Shoá.
Na Holanda havia uma família judia que era vizinha de uma família não judia. As mulheres se divertiam tocando violino juntas. Antes de ser deportada, a senhora judia pediu para a amiga guardar o violino dela até que ela voltasse. Mas ela nunca voltou. Um dia a amiga ouviu falar sobre o Violinos da Esperança e veio, junto com toda a família, me entregar o instrumento aqui em Tel Aviv.
Em outra ocasião recebi um violino de um senhor que me disse ter tocado na orquestra do campo, enquanto selecionavam os prisioneiros para a câmera de gás ou para o trabalho escravo. Ele me disse que nunca mais iria tocar violino algum, mas queria consertar aquele para que seu neto pudesse tocar nele. Quando abri o instrumento vi que havia um pó preto dentro dele. Só havia uma razão para aquele pó estar ali: ele tinha caído das chaminés do crematório. Nem todas as pessoas Seis milhões de judeus perderam a voz expressam seus na Shoá e estes violinos são a voz deles sentimentos com agora. Cada um destes instrumentos conta palavras. Uma boa uma história. São as vozes que restaram parte não fala nada. para aqueles que partiram. São dezenas de Mas todos – músicos, histórias e elas ainda não pararam de cheplateia – demonstram uma emoção profunda. gar. E eu ainda não tenho nenhum violino que esteve no Brasil, mas quem sabe um dia…[diz Amnon sorrindo].
Mas o que é o “Violinos da Esperança”?
Este é o projeto que eu fiz com o meu filho Avshai para usar estes instrumentos históricos. Fazemos concertos com eles em todas as partes do mundo. Nós não vendemos os violinos. Levamos eles – um, dois, vinte, a quantidade que for combinada – para o local e organizamos concertos onde músicos locais – os melhores músicos locais – usam os instrumentos. Depois fazemos palestras sobre eles, falamos sobre a música na Shoá em todos os seus aspectos. Meu filho, que é quem faz toda a logística da operação, me disse ontem que, assim que os céus estiverem abertos de novo [nossa entrevista se deu no final de 2020, no meio das restrições da Covid-19], nós estaremos ocupados até 2023. Só a partir dali teremos datas disponíveis. E vocês têm que estar num desses eventos para entender o que acontece lá.




Nem todas as pessoas expressam seus sentimentos com palavras. Uma boa parte não fala nada. Mas todos – músicos, plateia – demonstram uma emoção profunda. A maior parte dos músicos, quando devolvem o instrumento no qual tocaram, têm os olhos úmidos. Alguns choram. Volta e meia temos problemas. “Posso ficar com o violino mais um pouco?” “Quero levar ele comigo.” “Não consigo me separar dele.” Mas realmente nós jamais vendemos os instrumentos.
Quais os concertos que mais te marcaram?
O primeiro concerto foi num lugar inusitado: em Istambul. Fui fazer um evento de música clássica lá e conheci uma pessoa maravilhosa, o filho de um Cádi [clérigo muçulmano]. Contei a história dos violinos para ele e tivemos juntos a ideia de fazer um concerto usando-os. Foi um sucesso, fizemos mais um concerto lá e depois me convidaram para Paris. Tivemos medo de que não haveria ninguém na audiência, mas depois de uma pequena notícia na televisão, a sala encheu. Depois fizemos um concerto em Jerusalém e o projeto foi ganhando corpo.
Fizemos um concerto com a Berliner Philarmonic, talvez a melhor orquestra do mundo. Eles me disseram que houve uma lista de espera não atendida com mais de 1.300 pessoas. Lá me deram um prêmio superprestigioso ao nosso projeto.
Cada evento é diferente do outro. Em alguns temos um solista apenas tocando o instrumento, em outros, parte da orquestra, em outros, toda a seção de cordas. Tocamos em igrejas, sinagogas, salas de concerto, parques, em todas as partes. A única coisa que não varia é o uso dos instrumentos. E também o fato que lotamos todos os lugares.
O concerto que mais me impactou foi feito em Birmingham, no estado de Alabama, nos Estados Unidos. Houve um ataque terrorista numa igreja lá e quatro meninas morreram. Fizemos um concerto em lembrança a essa tragédia. Todas as cores da humanidade estavam presentes nesse concerto. O ataque foi contra os negros e nós estávamos todos juntos no repúdio ao ataque. O maestro era negro, o solista era negro, tocando um violino usado por um judeu na Shoá, e eu estava celebrando junto com eles a esperança por um mundo melhor. Isto é algo que você experimenta apenas uma vez na vida.
* * * Marina e eu saímos para a rua com seu movimento normal de começo de noite fria em Tel Aviv. Olhamos para o prédio atrás de nós e nos certificamos mais uma vez de que era um prédio comum, banal. Mas agora sabíamos que ele escondia em seu porão um tesouro desconhecido pelos que passam todos os dias por ali. Assim é Israel: cada porta tem o potencial para revelações estonteantes. Veja mais sobre o Violinos da Esperança em: a) https://www.violins-of-hope.com; b) YouTube, buscando por Violins of Hope. Garanto que vale a pena!
Raul Cesar Gottlieb é o diretor de Devarim. Apesar do que falou Amnon, ele não é jornalista e sim engenheiro.