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A vida do rabino
Breno Casiuch
Lá pelos idos da minha juventude, quando comecei a refletir sobre os caminhos profissionais que poderia seguir, cogitei estudar para virar – quem sabe algum dia?! – rabino. Felizmente, ou infelizmente, a vida me ofereceu outros rumos e acabei optando por seguir na direção do mundo corporativo, dos contratos e litígios. No entanto, desde que essa possibilidade passou pela minha consciência, volta e meia, especialmente quando o horário permite e consigo ir à sinagoga para o shabat e lá chegando aceno de longe para o rabino que reza solitário no púlpito, me vejo às voltas refletindo a respeito de como deve ser a vida do rabino? Afinal, o rabino pensa no bem de todos, mas quem pensa no bem do rabino?
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Rabino não é presidente, mas precisa saber liderar. Servir de liderança espiritual e religiosa para indivíduos tão diversos quanto aqueles que integram o microcosmo da comunidade judaica, deve demandar uma dose cavalar de esforço, paciência e bom senso, que talvez nem o mais experiente e astuto dos políticos possua. Não há espaços para erros ou passos em falso. Saber fazer política comunitária é uma arte. É entender que para uns o problema é quantos pães serão ofertados no cafezinho e que outros estão preocupados em aumentar o número de associados vinculados à instituição. É conseguir, a despeito dos ensinamentos do ditado popular, estar disposto a discutir religião 24 horas por dia e sete dias por semana.
Ainda que seja objeto de debate, há quem afirme que o termo “rabino” decorre da palavra rebe, que significa “grande” ou “sábio”. Não há, portanto, pequenas aspirações para o rabino.
Rabino não é jornalista, mas precisa Rabino não é professor, Curiosamente, ao mesmo tempo em saber contar histórias. Suas prédicas não mas precisa saber dar que é tratado como popstar, o rabino prepodem ser simples, objetivas, cartesianas; suas respostas não podem ser binárias sob conselhos e ensinar. Para cisa ser acessível a todos. Ele precisa estar sempre pronto para um abraço ou um pena de parecerem simplórias. Elas preci- cada problema formulado, aperto de mão. O grande problema é que, sam ser parabólicas, metafóricas, tortuo- ele precisa conhecer o como bons judeus que somos todos, consas, mágicas e complexas. Precisam ir, vol- fundamento religioso fundimos a acessibilidade rabínica com tar e ir novamente até chegarem ao seu final extasiante. Precisam confundir e esclarecer ao mesmo tempo. Precisam ser da possível resposta e, de quebra, algumas intimidade. O rabino é sempre nosso melhor amigo. Aquele a quem podemos contar tudo. E cobrar também. Como um arprofundas e cheias de perguntas retóricas. histórias interessantes tista a quem pedimos um autógrafo, pois E na maior parte das vezes, ao contrário sobre o tema. julgamos conhecê-lo de tanto que o vedos grandes escritores, eles precisam ler mos, o rabino precisa aparentar sempre seus textos em voz alta para todos, ao vivo e em cores. felicidade – e se por algum motivo isso não ocorrer, oy vey.
Rabino não é professor, mas precisa saber dar conse- Não me lembro, talvez por falta de intimidade, de ter vislhos e ensinar. Para cada problema formulado, ele preci- to algum rabino triste, soturno, cabisbaixo, chorando. Isso sa conhecer o fundamento religioso da possível resposta e, pareceria errado. Rabinos não podem transparecer fragilide quebra, algumas histórias interessantes sobre o tema. E dade. Precisam ser fortes a todo momento. como todo bom judeu, precisa saber as inúmeras posições Rabino vota? Ele é republicano ou democrata? Pode divergentes. E histórias interessantes para essas também. existir rabino de direita? Nesse caso, qual seria o papel do O rabino precisa ser sensível e distante. Ele precisa enten- Estado na correção das desigualdades sociais? E rabino de der os problemas das pessoas e compreender que os mes- esquerda para quem o livre arbítrio não seria assim tão immos problemas podem demandar conselhos e soluções dis- portante? Afinal, o rabino é coxinha ou comunista? Taltintas dependendo do mensageiro. Ao mesmo tempo, ele vez centro. Rabino no “Centrão”, então? Acho que não... deve transparecer uma imagem altiva e de distanciamento. Rabino não é jogador de futebol, mas seus momentos Rabino não pede conselhos. Ele os dá. E de graça. E sem- de glória também ocorrem à noite e nos finais de semana. pre que é chamado. Embora não seja médico, ele é sempre O seu trabalho é o descanso dos outros. Até mesmo no dia chamado a oferecer a cura. Ainda que seja objeto de deba- santo, ele labuta. Sexta-feira é o dia do shabat. Sábado é o te, há quem afirme que o termo “rabino” decorre da pala- dia de casamento. Todas as manhãs há as rezas matinais. vra rebe, que significa “grande” ou “sábio”. Não há, por- Ele trabalha nos feriados religiosos, assim como nos feriatanto, pequenas aspirações para o rabino. dos laicos. E tal como um atleta – expostos a vitórias e der-
Rabino não é celebridade, mas é tratado como uma. rotas –, o rabino também precisa conviver com turbilhões Ele sujeita-se ao escrutínio da comunidade e ao julgamen- de sentimentos antagônicos. Se em um dia celebra um cato eterno das pessoas, e ele precisa estar razoavelmente samento e comparece a uma circuncisão, no outro preciconfortável a respeito disso. Há vida pessoal do rabino? O sa comparecer a um hospital para confortar uma família rabino dirige, tem apartamento, paga contas, toma multa com um parente doente ou até mesmo a um enterro. Eu de trânsito, irrita-se com atendente de telemarketing, xin- costumo ficar confuso quando saio de uma reunião e enga, mente, assiste futebol nas noites de quarta-feira, recla- tro em outra logo em seguida – imagine comparecer a um ma do valor dos impostos ou vai ao cinema? Confesso que casamento e logo após a um enterro. Se fosse eu, é possível se eu visse um rabino correndo na Lagoa, descansando no que desejasse mazal tov ao defunto e enterrasse a esposa. clube ou talvez até falando que assistiu a uma série policial E há os aspectos mais mundanos. Rabinos não ganham do Netflix, acharia que algo cósmico está fora de lugar. Tal- bônus, mas são cobrados por performance. Rabino não faz vez mais do que celebridade, o rabino é tratado como uma greve, rabino não pode almejar cargos mais altos, rabinos entidade. Ele não pode transparecer alegria exacerbada ou não são sindicalizados. Com quem o rabino almoça em tristeza profunda. É simplesmente o rabino. uma segunda, uma terça ou uma sexta-feira? Não há happy
hours ou festas de final de ano. Quais são Rabino não é celebridade, treita tentando não cair para os lados, ao os desejos profissionais de um rabino? E mais importante ainda: quem é o seu chefe? O presidente da sinagoga, seus memmas é tratado como uma. Ele sujeita-se ao mesmo tempo em que precisa segurar sua kipá para que ela não caia no chão. Como, em meio a essas funções, deveres, bros associados, o conselho, sua consciên- escrutínio da comunidade obrigações e realizações, é possível achar cia ou “apenas e tão somente” Ele? e ao julgamento tempo e inteligência para oferecer respos-
Em meio a tantas dificuldades, sejam eterno das pessoas, tas a tantas perguntas difíceis? O que é elas mais profundas ou meramente superficiais, há de se perguntar, então, por que alguém decide virar rabino, assumine ele precisa estar razoavelmente confortável Deus? O que é a religião? De onde viemos e para onde vamos? Como se equilibrar entre as contradições inatas à religião do essa vida repleta de ônus, limitações e a respeito disso. Há vida em um mundo cada vez mais orientado desgastes? Talvez seja uma questão de vo- pessoal do rabino? pela ciência e pela tecnologia? Será que, cação, de dom mesmo, de caráter. A pes- ao conversar com seus filhos sobre uma soa não vira rabino – ela sempre foi. Talvez, as satisfações aula de biologia, ele tenta convencê-los de que o big bang que essa posição gera superem em muito os problemas e a evolução das espécies são teorias conspiratórias? Que o dela decorrentes. Talvez, exercer atividades rabínicas apro- ser humano e os símios não são parentes distantes? Como xime-o de uma paz interior. Quem sabe o exercício dessa se modernizar em um ambiente naturalmente propenso à função preencha um senso de propósito, de dignidade, de tradição? Como incentivar os jovens a buscar a religião e humanidade – há pessoas que se preocupam com si e seus como oferecer conforto aos mais velhos? Como oferecer próximos e há pessoas que se preocupam com os outros. respostas às perguntas existenciais mais profundas? Talvez seja tudo isso junto. Confesso que não sei. Talvez por isso eu não seja ra-
Vamos concordar que a vida do rabino não é fácil, por- bino… que ele é, antes e acima de tudo, um equilibrista que caminha, sempre de terno e embecado, em uma linha es- Breno Casiuch é advogado e sócio da ARI.
