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Narkomfin: Experimentação
Narkomfin: Experimentação
O Narkomfin foi projetado para ser um protótipo para todos os subsequentes edifícios habitacionais estatais a serem construídos na URSS (BUCHLI, 2017, p. 162). O edifício deveria abrigar 50 famílias de funcionários do Partido, trabalhadores do Comissariado do Povo para Finanças. Para Victor Buchli (2017, p. 387), o Narkomfin é o arquetípico condensador social e representa uma das mais completas realizações da arquitetura da vanguarda soviética, exercendo o slogan da época de que “a existência material determina a consciência”. Ainda de acordo com Buchli, o projeto foi pensado de forma a possibilitar a transição do capitalismo burguês para o socialismo, e então para uma sociedade comunista, através de suas formas arquitetônicas.
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A sua natureza experimental, junto à vocação de protótipo com a qual foi concebido e avaliado, fizeram dele o maior exemplo do trabalho do Stroykom colocado em prática (MOVILLA VEGA, 2015, p. 311). O conjunto habitacional soviético também ficou conhecido na historiografia da arquitetura como edifício moderno pioneiro na utilização da tipologia duplex como solução arquitetônica. É perceptível o impacto das tipologias duplex F e do Narkomfin no Ocidente, influenciando diretamente Le Corbusier no projeto de Unidade de Habitação de Mar-
Fig. 53 Robert Byron. Fachada Sul do Narkomfin. 1930s.
selha(1946-1952)1 .
Para o processo de desenho e construção, Ginzburg – então coordenador do Stroykom – contou com a ajuda de alguns profissionais. Nos desenhos, seu aluno Ignaty Milinis; o engenheiro Sergey Prokhorov, para direção da obra; o pintor e professor da Bauhaus Hinnerk Scheper2 para direção de plano de cores; e outros colaboradores pontuais, como o próprio Comissário Milyutin, que interviria de forma ativa no desenho (MOVILLA VEGA, 2015, p. 311). Ginzburg era o arquiteto construtivista mais celebrado na Rússia e o cliente, o Comissário Milyutin, era um dos mais influentes teóricos do planejamento urbano soviético (BUCHLI, 2017, p. 160). O edifício está localizado na Avenida Novinsky, região central de Moscou, ao Norte do Rio que leva o nome da cidade. O local abrigava o Monastério de Novinsky, construído no século XV e demolido no
1 Segundo Sabrina Fontenele (2018, p. 30), em 1930, Le Corbusier sugere que a próxima edição do CIAM acontecesse em Moscou, devido às pesquisas e produção arquitetônica que vinham sendo realizadas pelos soviéticos. O impacto das visitas de Corbusier à URSS é visível em sua obra, principalmente no que diz respeito à habitação. O conjunto de Marselha é desenvolvido sob influência direta da tipologia F, procurando eficiência econômica e aproveitamento de áreas. O edifício também se insere em um contexto histórico de necessidade de produção habitacional em grande escala em uma França pós-Guerra. 2 Hinnerk Scheper encabeçava o Workshop de “House-Painting” da Bauhaus entre 1925-1933 (com exceção de sua estadia em Moscou de 1929-1930). Utilizava um esquema de cores instintivo, em que o contraste de tons tornava os elementos arquitetônicos facilmente distinguíveis. Esse esquema é utilizado na casa de Oskar Sklemmer em Deassau, projetada por Heinrich Schlemmer, onde as portas de cômodos adjacentes são pintadas em cores fortes de tons diferentes. Scheper incorpora essa técnica ao edifício da Bauhaus em Dessau (ambos de 1925-1926). Ginzburg visita ambos os edifícios em 1927, durante sua estadia na Alemanha, e incorpora esses elementos na sua obra. Nos corredores e as escadas do Narkomfin, são utilizados tons que permitem um rápido entendimento da organização espacial. Por exemplo, as portas são pintadas de preto ou branco para que os residentes não confundam seu apartamento com o do vizinho; nas escadas, os degraus têm seus planos verticais pintados de cores diferentes dos planos horizontais, para evitar tropeços; e cada andar do edifício recebe uma cor distinta (VRONSKAYA, 2015, p. 95).

século XVIII, de grande importância na memória histórica da Moscou. O terreno era vizinho de duas mansões aristocráticas de caráter neoclássico, então utilizadas como habitação coletiva para trabalhadores que chegavam à cidade3, e de um grande parque arborizado, aberto ao que então ainda era campo (BUCHLI, 2017, p. 167). O projeto do conjunto passou por modificações até seu estado final. No projeto original, havia dois blocos de caráter residencial, um centro comunitário ligado ao bloco residencial principal, um volume cilíndrico que abrigaria a creche para os filhos dos moradores do complexo e dois volumes de serviço retangulares, que abrigariam a lavanderia mecanizada coletiva e uma garagem comunitária. A creche, o bloco secundário residencial e o segundo volume de bloco de serviços foram descartados no projeto final e não chegaram a ser construídos (GOMES, 2020, p. 67). A ideia inicial era que as famílias utilizassem seus apartamentos para tarefas que necessitassem de privacidade, como dormir, relaxar, higiene pessoal, vida sexual, e projetos pessoais de trabalho ou estudos. As atividades domésticas deveriam ser realizadas de forma coletiva nos equipamentos alocados nos outros volumes. Por meio do projeto, Ginzburg e sua equipe procuraram induzir uma convivência intensa entre seus habitantes (FONTENELE, 2019, p. 21).
Fig. 54 Hinnerk Scheper. Design de cores para apartamento F do Narkomfin. 1929.
3 Resultado da migração a trabalho da NEP (1921-1926) e início do Primeiro Plano Quinquenal.
O bloco residencial consiste em um volume linear elevado sobre pilotis, orientado segundo a direção norte-sul, de modo a receber maior luminosidade. O bloco se organiza em 6 pavimentos elevados, um sótão e cobertura habitável, alcançando uma altura de 17,05 m por 82,86 m de comprimento. São 47 apartamentos, destinados a abrigar em torno de 200 pessoas, ou seja, uma média de 4 habitantes por unidade habitacional (MOVILLA VEGA, 2015, p. 335). Em seu interior, o edifício organiza-se por meio de corredores de circulação, com altura de 2,30 m, que servem as células habitacionais. O projeto original consistia em células do tipo K e do tipo F, e o restante eram variações dessas mesmas plantas. O projeto construído mantém essas células residenciais, porém introduz o tipo C4 .
As unidades K, dispostas ao longo do primeiro corredor do bloco, foram projetadas com o objetivo de acomodar arranjos domésticos pré-existentes. Em outras palavras, eram células autossuficientes, que não necessitavam das dependências coletivas do complexo. No primeiro piso, cada apartamento possuía uma pequena cozinha e um cômodo coletivo de pé direito de 5 metros. No segundo, havia mais três cômodos e um mezanino interno que dava para o grande cômodo coletivo (BUCHLI, 2017, p. 170). Buchli (2017, p. 171) nomeia dois apartamentos específicos como tipo “K-articulado”, por serem significativamente maiores e mais elaboradas que as unidades K, com um banheiro adicional e uma sala de jantar no térreo. Os dois apartamentos possuíam varandas em formato de meio-círculo: o primeiro apartamento, onde morava Ginzburg, tinha uma única varanda no primeiro andar, já o segundo, uma varanda em cada andar.
4 O número de unidades e sua nomenclatura apresentaram divergências na bibliografia consultada. Assim, optou-se por não quantificar as tipologias devido à irrelevância que isso tem para este estudo. De acordo com Daniel Vega, seriam no total 47 unidades, diferente do que considera Cramer, um total de 51 unidades. Outro exemplo, para Buchili, são 9 células tipo K; Vega considera 8. Já as questões de nomenclatura são mais relevantes para essa tese e serão apresentadas a seguir.
A B


A
C E
D
Fig. 55 Plantas das unidades K. (A) Cômodo Coletivo (B) Cozinha (C)Quarto do casal (D) Quarto dos filhos (E) Banheiro.
Fig. 56 Varanda das Unidades “K-articulado”, localizadas na fachada sul do edifício. 1930.
Entretanto, para Vega (2015, p. 368), essa denominação é confusa. O autor considera que o tipo K, não representava uma tipologia específica, mas sim um esquema espacial interior característico: disposição em dois pavimentos de altura precisa, articulação espacial da casa por meio de um cômodo principal de pé direito duplo, e a presença de um programa diurno no nível inferior, e um programa noturno, no nível superior. O esquema K seria o aprimoramento das tipologias A e D definidas pelo Stroykom.
As unidades F se distribuíam ao longo do segundo corredor do edifício. Desenhadas para um morador ou casais que não pretendiam ter filhos, ou os deixavam aos cuidados da creche, no prédio anexo, eram a expressão da vida coletiva e do novyi byt (BUCHLI, 2017, p. 172). O corredor do pavimento dava acesso ao hall dos apartamentos, onde também se localizavam os banheiros com espaço para duchas. Todas as unidades possuíam duas alturas, 2,30 m e 3,60 m; as do piso inferior eram de planta única e, as do piso superior possuíam dois níveis (VEGA, 2015, p. 371).
Resumidamente, as funções básicas a serem realizadas nesse modelo de apartamento seriam: dormir, higiene pessoal e trabalho intelectual. Essas unidades, adaptações das Tipologias F do Stroykom, não tinham cozinha; elas possuíam um pequeno nicho para acomodar a cozinha-armário (BUCHLI, 2017, p. 172). Segundo Gomes (2020, p. 70), durante o processo de execução do projeto, a parede que acomodaria o armário, no primeiro piso, foi retirada, resultando em uma maior integração física e visual do espaço. Entretanto, com a concretização do byt socialista, a cozinha se tornaria desnecessária e poderia ser facilmente removida.
De acordo com Buchili (2017, p. 171), nas unidades F e K, os espaços cujas funções não eram compatíveis com o modo de vida coletivizado eram propositalmente escondidos da visão pública, como
A
C

B A A
C
B
os quartos para as crianças – que contrariavam a ideia de cuidado Estatal da prole – ou as cozinhas individuais – utilizadas em vez dos refeitórios coletivos. Os únicos espaços enclausurados das unidades eram banheiro, cozinha5, e quarto para as crianças, no caso da unidade K. As disposições desses elementos sofrem diversas variações durante o processo de desenho. Posteriormente, como relata Vega (2015, p. 373), a cozinha, a ducha e o lavabo das células superiores F alocam-se junto ao quarto, liberando o espaço da sala principal.
Assim, as unidades duplex do Narkomfin, tipo K e tipo F, ofereciam uma variedade espacial que não era necessariamente a representação do novyi byt, porém eram claramente entendidas por Ginzburg como tipologias experimentais de transição, ou, como cita Wilfried Wang (2016, p. 31), tipologias vestigiais.
5 Como já vimos, a cozinha-armário podia ser facilmente ocultada. Já nas unidades K, a cozinha era um cômodo separado Fig. 57 Plantas das unidades F. (A) Cômodo Coletivo (B) Dormitório (C) Nicho removível para cozinha-armário.




As unidades 2-F – basicamente a junção de duas unidades F – destinavam-se às famílias nucleares e possuíam duas configurações; a primeira em duplex, com cozinha completa, banheiro, sala de jantar no nível da entrada, e dois cômodos com pé direito de 5 metros – um dormitório e um de estar – no andar debaixo. As unidades de um andar só possuíam os mesmos elementos. As tipologias C, concebidas durante o processo construtivo, seguiam o esquema do Stroykom, em que um corredor servia apartamentos de planta única. As quatro unidades C construídas se situavam na cobertura e tinham 2,60 m de altura. Duas delas tinham aproximadamente 15 m², destinando-se a casais sem filhos. As outras duas tinham aproximadamente 12 m² e se destinavam a solteiros. As habitações tinham cômodo único e as células se organizavam por pares em torno de um núcleo compartilhado de ducha e lavabo6 .
Fig. 62 Plantas das unidades 2-F.
6 Por serem concebidas durante o processo construtivo, não há documentação gráfica dessas unidades anteriores a sua edificação. Para esse estudo, foram levados em conta os levantamentos posteriores do edifício. A informação dos núcleos compartilhados é citada por Daniel Vega (2015, p. 397), que utiliza como fonte o próprio Ginzburg (Opyt pyatiletney raboty nad problemoy zhilishcha. Moscú: Gosudarstvennoye nauchno tekhnicheskoye izd-vo stroitelnoy industrii i sudostroyeniya, 1934. p. 86). Fig. 58 e 59 Cozinha e banheiro de unidade Tipo F. 1929-1933.
Fig. 60 e 61 Cozinha de uma Unidade K, em cômodo separado e “enclausurado”. 1970.


Fig. 63 e 64 Fotografias do apartamento de Milyutin. Armário embutido e por trás, a cozinha ocultada. Pós-1930. Um apartamento na cobertura, desenhado por Milyutin para seu uso próprio também foi adicionado ao projeto durante seu processo construtivo. De acordo com Buchli (2017, p. 180), a cobertura assemelha-se às unidades K. No primeiro piso, possuía hall com cozinha e um cômodo principal de pé direito duplo; no segundo piso, possuía dois quartos, dois closets, mezanino para o cômodo principal e acesso a uma varanda.
A relação entre os elementos de circulação e as tipologias estabelecia um alto grau de eficiência. A aposta no aumento do pé direito das unidades e na concentração do sistema de circulação, proporcionada pela redução do número de corredores, teve resultados positivos. Os apartamentos compactos transmitiam amplidão devido ao pé direito duplo e o compartilhamento de corredores por dois andares de apartamentos tornava encontros entre moradores mais prováveis, além de possibilitar a ventilação cruzada (UDOVICKI-SELB et al., 2016, p. 37). O programa deste bloco de apartamentos era fundamentalmente residencial, porém, ele também abrigava elementos de uso coletivo em alguns níveis do edifício. É o caso da cozinha coletiva, localizada no terceiro pavimento e organizada em quatro ambientes de 30 m².


Ginzburg concebeu esse espaço de cozinha coletiva como serviço auxiliar, principalmente para as células F, complementando os serviços do centro comunitário (GOMES, 2020, p. 70). As unidades habitacionais se conectavam por meio de uma ponte ao bloco comunitário do Narkomfin. O bloco consistia em dois pavimentos de pé direito duplo. No primeiro, havia um ginásio com vestiários, duchas e banheiros. No segundo andar, havia um refeitório, com área para descanso e sala de leitura. O bloco da lavanderia foi construído de acordo com o projeto original, e funcionou plenamente até meados dos anos 1960 (BUCHLI, 2017, p. 174). Já o bloco comunitário, imediatamente foi utilizado como creche para substituir o edifício que abrigaria essa função, no centro do parque, mas que não chegou a ser construído (UDOVICKI-SELB et al., 2016, p. 69). Dessa forma, a creche acabou migrando para o centro comunitário, e ocupou o seu volume inteiro, com exceção da cozinha. Consequentemente, o ginásio, as salas de leitura e descanso, e o refeitório nunca chegaram a funcionar. Apesar da cozinha operar plenamente e conseguir suprir as necessidades da maioria dos inquilinos, eles preferiam retirar a comida e levá-la para comer em casa. Posteriormente, o centro comunitário fechou as suas portas por motivos econômicos (VEGA, 2015, p. 534).
Fig. 65 Interior do Centro Comunitário. Data desconhecida.
Fig. 66 Georges Dedoyard. Centro Comunitário. 1932.


Fig. 67 Proposta da Casa Narkomfin desenvolvida por Ginzburg e Milinis (1929–30): térreo e segundo andar, primeira versão. Fig. 68 Proposta da Casa Narkomfin desenvolvida por Ginzburg e Milinis (1929–30): quarto, quinto e sexto andares (acima), primeira versão.


Fig. 69 Proposta da Casa Narkomfin desenvolvida por Ginzburg e Milinis (1929–30): seções dos edifícios residenciais e comunitários, primeira versão.

Fig. 70 e 71 Interior do Mezanino de apartamento tipo K de Ginzburg, usado como estúdio.


Fig. 72 Interior do Mezanino de apartamento tipo K de Ginzburg, usado como estúdio. Fig. 73 Sala de jantar de Milyutin nos anos 1970s.


Fig. 74 e 75 Charles Dedoyard. Narkomfin. 1932.

Fig. 76 e 77 Robert Byron. Narkomfin. 1930s.


Fig. 78 e 79 Robert Byron. Narkomfin. Centro Comunitário. 1930s.
