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Dividir casa, a solução que pode virar problema

Por Maria Eduarda Macedo

Morar junto é uma ótima opção para quem tem um relacionamento sério, mas também é uma alternativa para aquelas pessoas que precisam se mudar da sua cidade natal para estudar ou trabalhar, e querem dividir os custos, subsidiando os gastos. Historicamente, a divisão de moradia entre universitários tornouse comum a partir do século XIV, com as repúblicas estudantis, organizações geralmente sem fins lucrativos, que foram criadas com o intuito de acomodar estudantes do ensino superior durante suas formações e que existem até hoje. Bastante comum no Brasil, a moradia compartilhada tem como principais vantagens a diminuição dos custos e a oportunidade de fazer novas amizades.

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Porém, a ideia de compartilhar um teto com um desconhecido pode assustar, tendo em vista os possíveis casos de furto de pertences pessoais, irresponsabilidade ou, até mesmo, de violência. O último caso, apesar de não ser convencional, pode acontecer e ter resultados fatais, como por exemplo, no episódio de 17 de dezembro de 2022, na cidade de Aracaju.

Nesse dia, a população foi surpreendida pela notícia do esquartejamento de um estudante universitário, cujo culpado foi o seu amigo de infância. Henrique José de Andrade Matos, de 23 anos, foi assassinado e teve seu corpo desmem- brado por Ícaro Ribeiro da Silva, de 22, seu amigo de longa data. Em depoimen- to para a Polícia Civil, Ícaro relatou que tudo começou com uma discussão que perdeu o controle e o final, infelizmente, foi o mais drástico possível.

Os estudantes moravam no condomínio Del Rey, localizado no bairro Farolândia, perto da faculdade que frequentavam , a Universidade Tiradentes (Unit). Ícaro, na tentativa de esconder o corpo, colocou-o em sacos de lixo e jogou na parte de trás do prédio. Esse caso, apesar de atípico, reforça como uma boa relação de confiança é um dos primeiros pilares para se observar antes de começar a compartilhar a vida com outra(s) pessoa(s), até mesmo quando se trata de uma amizade de longa data. Por vezes, mesmo que não ocorra agressão física ou verbal, algumas atitudes, como invasão de privacidade, furto de pertences pessoais e falta de compatibilidade entre os moradores, podem servir de alertas que são suficientes para construir uma insegurança na relação.

TODO PROBLEMA É POSSÍVEL

Maria Heloísa, de 20 anos, cursa Direito na Universidade Tiradentes (Unit) e morava no condomínio Del Rey, no andar abaixo de onde ocorreu o homicídio de Henrique. Durante todo o ano de 2022, ela dividiu apartamento com um colega de curso que conheceu no início do semestre e acabou sendo a única opção encontrada, já que Heloísa precisou com urgência se mudar de Itabaiana, no interior de Sergipe, para Aracaju.

Visto que o critério de seleção foi realizado superficialmente, é provável pensar que o problema tenha sido com o colega, mas a relação de ambos era tranquila e ela até afirma que por estudarem muito, tinha dias que eles mal se viam. O problema para a estudante veio em dezembro de 2022, quando recebeu várias mensagens dos seus amigos perguntando se ela estava bem, pois saiu a notícia de que seu vizinho tinha esquartejado uma pessoa.

Ela comenta que desde sempre foi uma pessoa ansiosa e que, apesar da preocupação com sua segurança e a distância da família, o colega nunca foi uma ameaça. Contudo, o caso de violência ocorreu tão próximo a ela que a deixou preocupada , e o medo e insegurança se instalaram novamente. A estudante diz que isso mexeu muito com o seu psicológico, e que só conseguiu voltar ao apartamento para buscar os seus últimos pertences, já para se mudar. “Onde ele deixou o corpo dava para ver da minha janela, se isso tudo tivesse acontecido e eu ainda estivesse no processo de procurar apartamento, eu desistiria, porque eu não iria conseguir de jeito nenhum”, relembra.

Essa insegurança gerou traumas em Heloísa, e atualmente, a estudante tem dado preferência a morar sozinha, além de ter ampliado o seu nível de segurança: “na minha casa tem três trancas hoje em dia, além de um portãozinho por fora, e todos os dias eu tranco cada uma”.

São muitos fatores que englobam os desconfortos da moradia compartilhada, e eles não são necessariamente tão drásticos e fora do comum como o anterior. É o exemplo de Davi Dias, de 22 anos, morador de Aracaju mas aluno de Percussão da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Davi dividia apartamento, em Salvador, com mais três colegas que conheceu em eventos de música. Além da vida corrida que levava, pois ficava quatro dias na capital baiana e três em Aracaju, o estudante precisava lidar com as inconsequências e irresponsabilidades dos parceiros de apartamento.

Davi afirma que não foi tão criterioso na hora de selecionar os parceiros, e comenta que durante os dois anos que passou com eles, todos os afazeres da casa iam para as suas costas, “muitas vezes eu perdia mais tempo em casa arrumando as coisas do que dentro da própria universidade, que era exatamente o meu intuito.” Ele diz que os colegas faziam muitas festas sem avisar e que isso atrapalhava sua rotina, porque quando ele chegava da faculdade, a casa estava cheia de pessoas que ele nem conhecia, inclusive dentro do seu quarto.

O estudante acrescenta que, no início de 2022, chegou até a evitar viajar para Salvador e preferia faltar à aula para não precisar ter mais contato com os colegas. Ele relata, ainda, que o que lhe permitiu aguentar essa rotina, mesmo com muita dificuldade, foi a terapia.

“Quando vi, eu já estava ficando doente,foi quando comecei um acompanhamento psicológico. Eu fiquei desesperado, mas isso me ajudou bastante a continuar”.

Porém, a luz no fim do túnel veio no final do ano, quando Davi lembrou de uma tia que morava em Salvador, a qual ele não via há mais de 10 anos. Ele conta que já tinha passado pela sua cabeça recorrer a ela, mas que estava esperando o semestre acabar para fazer isso de forma mais organizada. No entanto, confessa: “eu não aguentei, antes mesmo de terminar eu fui para a casa da minha tia [...] Quando eu fui para lá, eu respirei fundo, aliviado”.

Atualmente, Davi continua oscilando entre as duas cidades , mas agora, o lugar que fica quando está na Bahia é a casa da tia. Ele afirma que os custos aumentaram um pouco, porque a casa dela é mais distante da UFBA, mas que, por seu conforto e saúde mental, o esforço vale a pena.

A psicóloga Carolaine Nascimento, em um breve contato com as histórias de Heloísa e Davi, explicou que o medo e receio sucessivos aos acontecimentos, mesmo que com situações diferentes, podem ter gerado um estresse pós traumático. “O estresse é uma resposta do nosso organismo a determinadas situações que o indivíduo interpreta como ameaça”, podendo ser desenvolvido não só por quem passou pelo trauma, mas também quem teve proximidade com o evento traumático, “ainda mais em situações graves e de violência”. Dessa forma, é possível compreender o porquê dos estudantes desenvolverem maiores inseguranças ou recorrerem à ajuda psicológica.

Além de Maria Heloísa e Davi, Gabriella Sobrinho também viveu um pesadelo durante os 3 meses em que passou dividindo moradia em duas casas diferentes. A estudante de 21 anos atualmente está morando em sua cidade natal, Salvador, mas durante o final de 2021 e o início de 2022, enquanto cursava Jornalismo na Universidade Federal de Sergipe, precisou dividir casa com outras pessoas durante parte desse período. Ela conta que os maiores problemas foram na segunda casa, na qual morava ela, um amigo e uma outra menina.

A estudante relata que, inicialmente, a relação entre ela e a outra garota sempre foi muito conflitante, devido a noções divergentes com relação à limpeza da casa e separação das tarefas. “Os utensílios não eram lavados imediatamente após o uso, sendo acumulados por dias na pia ou sobre o armário pois a moradora não se incomodava de sujar todos os copos e pratos”, além disso, a garota chegou a consumir alimentos que eram de Gabriella. Contudo, apesar dessas irregularidades, o que mais assustou a estudante foi a invasão da sua privacidade.

De acordo com Gabriella, ela recebia fotos do outro morador, seu amigo, mostrando a garota entrando no seu quarto sem permissão. Como o quarto da estudante era o único com televisão, sempre que a garota queria assistir, ela aproveitava que Gabriella não estava em casa para entrar no seu quarto e usar a TV, e em outros momentos, a estudante afirma que já reparou a garota observando se ela estava dormindo, apenas para usufruir do quarto.“Meu amigo me perguntou como eu não sabia que ela vivia no meu quarto, já que ela sempre postava foto assistindo à televisão, que era minha. Eu não usava muito o celular e acredito que ela tenha me silenciado de propósito, para eu não ver”. Além disso, por conta desse último relato sobre a garota ficar a observando, a estudante conta que até plotou o vidro da janela, mas que mesmo assim a insegurança e o medo lhe tiraram o sono e atrapalharam a sua vida acadêmica. Por conta disso, mesmo antes de trancar a faculdade, ela já tinha voltado para perto da família.

O último estudante é Eric Almeida, de 27 anos, fotógrafo natural da Chapada Diamantina, que desde 2015 passou a morar em Aracaju devido aos estudos. Ele dividiu casa com o filho de um excolega da sua mãe durante um ano, mas a experiência não foi muito positiva, ele percebeu que o outro morador só acei- tou a sua presença pelo fato da amizade entre a mãe do Eric e o pai dele. O fotógrafo comenta que o menino não fazia questão de compartilhar nada com ele e seus posicionamentos políticos eram contrários, o que criou uma “frieza” e “polaridade” na relação deles.

Nada de drástico chegou a acontecer com Eric, mas ele afirma que era desgastante morar com alguém que não gostava da presença dele: “dividir moradia é igual a um casamento, tem que ter pelo menos uma simpatização, um consenso sobre as preferências, e ele simplesmente não dividia nada comigo, às vezes eu precisava de uma ajuda por não conhecer nada da cidade, e eu nem podia contar com ele.”

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A reportagem tentou entrar em contato com a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE), porém não obteve sucesso, ainda assim, um ex-servidor público que trabalhou lá, João Victor Soares, durante o ano em que passou no emprego, se deparou com, pelo menos, três casos de violência e roubo entre pessoas que dividiam apartamento, incluindo o caso de esquartejamento abordado no início da reportagem. Em vista disso, o profissional orienta que procurem os antecedentes da pessoa(s) que irão dividir moradia, optem por conhecidos e acima de tudo “informem aos parentes e amigos sobre a pessoa, de onde ela era. É importante também que tenham, pelo menos, uma pessoa de confiança para qualquer emergência, pode até ser um professor.”

Além disso, a psicóloga Carolaine Nascimento adverte que o acompanhamento psicológico durante esse processo é crucial, para que a saúde mental dos estudantes permaneça equilibrada. Entretanto, nos casos de trauma, ela comenta que a prática mais comum nos consultórios é a terapia de exposição, na qual, de forma individual e gradativa, o paciente é exposto ao que lhe amedronta , e vai se restabelecendo, diminuindo os impactos causados pela situação traumática.

Também, quando questionados sobre o que mais pesa ao ir morar sozinho, os estudantes citaram a saudade da família e dificuldades de logística. Davi até relembra: “houve dias que eu precisei deixar de jantar para guardar a comida pro lanche.” Em síntese, todos afirmam que é necessário que haja um cuidado na hora de escolher quem estará ao seu lado nessa jornada, tendo conhecimento de que apesar de ser um grande desafio se mudar para uma cidade distante, a divisão de moradia é uma alternativa que alguns deles precisam optar até o fim da formação, e, mesmo que não seja uma garantia evitar certas zonas de perigo, é possível que alguns critérios sejam restabelecidos na hora de selecionar o(s) morador(es), como dito pelo servidor.