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Contra falta de informação e preconceito, Cannabis medicinal vira pauta em Sergipe

Aprovação de lei estadual que institui um incentivo ao uso de derivados da maconha para fins terapêuticos no estado traz esperança a quem precisa da planta para viver.

Por Vinícius Aciole

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Odebate em torno da Cannabis repetidas vezes é motivo de discussão nos setores político e científico do Brasil. O tema enfrenta desde sempre o tabu associado à falta de conhecimento e ao preconceito com uma planta milenar, considerada uma farmácia natural. Mas esse olhar de desconfiança começa a mudar quando o estado de São Paulo, considerado a maior potência econômica do país pelo IBGE, aprova uma lei que regulamenta o uso e a distribuição de medicamentos à base de Cannabis no SUS. Agora, a abordagem sobre a maconha ganha cada vez mais projeção nacional e chega nas demais regiões do país, inclusive no Nordeste.

No dia 28 de dezembro de 2022 foi protocolado na Assembleia Legislativa de Sergipe (ALESE), o projeto de lei nº 331/2022 que institui a política estadual de Cannabis para fins terapêuticos no estado. O projeto de lei (PL), de autoria do deputado estadual Luciano Pimentel (Progressistas), visa dar apoio técnicoinstitucional para pacientes, seus responsáveis e associações de pacientes, como também promover o incentivo à pesquisa científica nas universidades do estado. Além disso, o PL prevê a capacitação de profissionais para prescrição, atendimento e distribuição na Rede Estadual de saúde, incluindo o SUS, dos produtos à base de Cannabis.

Com a passagem do ano e como manda a legislação, o processo sofreu desarquivamento. E somente dois meses e meio depois, em 15 de março de 2023, o PL foi aprovado por unanimidade na assembleia, tendo passado tanto pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) quanto pela Comissão de Saúde. O texto foi sancionado pelo governador do estado, Fábio Mitidieri (PSD), no último dia 11 de abril.

O deputado Luciano Pimentel diz que a ideia para elaboração dessa pauta política surgiu da demanda popular cada vez maior em busca desse medicamento.

“Recebemos pedidos de pais e mães de pessoas com autismo e outras enfermidades, que precisam usar o óleo da Cannabis para melhoria da sua saúde e assim verificamos a possibilidade de fazer esse projeto”, declarou. O parlamentar ainda destacou que o alto custo para aquisição do medicamento foi outro ponto fundamental para que esse projeto fosse à votação . “Um deputado aqui da casa importava o óleo por 600 dólares. Nos dias de hoje, ele consegue comprar em Recife por 200, 300 reais”.

Maria Carla conta que, no início do tratamento de seu filho João Pedro, de 13 anos, comprava o óleo, que surgiu como uma alternativa para tentar diminuir as convulsões provocadas pela epilepsia, por cerca de 1.800 reais. “ João tinha 2 anos quando nós descobrimos a epilepsia. Desde os 6, ele vinha sentindo fortes convulsões e por isso tinha que viver à base de medicações que acabavam por não resolver o problema. No início de 2020, fui indicada por um médico, a procurar um neurocirurgião que informou a necessidade de uma cirurgia de emergência no crânio do meu filho”, disse.

A dona de casa fala que com a chegada da pandemia na mesma época, o procedimento cirúrgico teve de ser adiado, e foi nesse momento que a Cannabis entrou na vida de Maria Carla e João Pedro, “quando soube da necessidade em adiar a cirurgia, sugeri ao neuro um medicamento à base de Cannabis que havia visto em um programa de TV. No início ele não tinha gostado da ideia, mas resolvemos testar, já que não tínhamos outra opção”, afirmou.

Apesar do óleo ter apresentado resultados positivos para João Pedro, o garoto não conseguia se manter bem fisicamente sem as antigas medicações, que também aumentaram de preço e, consequentemente, não puderam mais ser compradas por Carla. Para arrecadar fundos, ela divulgou nas redes sociais uma “vaquinha”, junto a um vídeo do filho tendo convulsões em decorrência da epilepsia. As imagens chegaram até a associação SALVAR, uma organização sem fins lucrativos, que tem como objetivo oferecer acompanhamento a famílias de pacientes que necessitem da Cannabis medicinal e também incentivar a realização de estudos e pesquisas na área. A partir daí, a instituição prometeu a Carla que arcaria com os custos da compra do óleo de canabidiol para João Pedro.

A SALVAR foi idealizada em 2019 pelo empresário e presidente da empresa, Paulo Reis, e dispõe de diversos profissionais especializados, como o diretor jurídico da instituição, Paulo Thiessen, além de médicos, psicólogos, fisioterapeutas, odontólogos e enfermeiros, que acompanham os associados em todas as fases para conseguir o acesso ao medicamento. Atualmente mais de 200 pessoas fazem parte da única instituição que des- tina capital para ajudar pessoas que precisam da Cannabis medicinal em Sergipe.

Meu filho estava há mais de seis anos sem ir pra escola. Eu e ele vivíamos em estado vegetativo porque sempre que a gente saía, João tinha convulsão. Hoje conseguimos ter uma vida muito melhor.

Maria Carla, dona de casa.

No dia 15 de março, a associação recebeu uma autorização legal do juiz da segunda vara judiciária do estado, Ronivon de Aragão, para cultivar, armazenar, pesquisar, produzir, manipular e transportar a Cannabis sativa para fins medicinais. A decisão é válida não somente para o óleo da planta, como também para suas flores que podem ser usadas como comestíveis e extratos da maconha.

O empresário Paulo Reis conta que a ideia de criar a associação surgiu da procura por ajuda a um amigo próximo que estava com câncer já em estado de metástase – estágio no qual a doença atinge outras partes do organismo. Durante esse período, Paulo tentou entrar em contato com a ABRACE (Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança), que também auxilia pessoas necessitadas do medicamento à base da Cannabis, mas que não obteve sucesso, “na época eles estavam com uma lista de espera muito grande. Foi quando eu resolvi importar a semente, cultivei, extrai e fiz o medicamento para ele”, disse o empresário.

Maria Carla e João Pedro tiveram a oportunidade de mudança em suas vidas graças à Cannabis medicinal. Mas nem sempre é assim. A palavra “maconha” assusta aos que a associam com algo ruim, periférico, marginalizado, quando na verdade a planta pode ser a salvação não só de uma pessoa, mas sim de famílias. É preciso coragem para trazer esse intenso debate à tona, pois só a informação pode derrotar o preconceito.

A CANNABIS E O NOSSO CORPO

O uso da Cannabis de forma recreativa é usualmente feito por meio da queima da folha in natura, podendo provocar a descarboxilação da substância. Esse processo, responsável pela quebra de um grupo molecular do carbono, é o que proporciona o efeito psicoativo da planta. A maconha possui mais de 500 substâncias químicas e 100 canabinoides, substâncias capazes de ativar os receptores canabinóides CB1 e CB2, que já estão naturalmente presentes em nosso corpo e que quando combinados com componentes internos formam o sistema endocanabinoide. Esse sistema é responsável pela percepção da dor, por comandar as funções cognitivas (ligadas ao conhecimento) e motoras, pela regulação do apetite e também está relacionado ao controle do estresse.

Os compostos químicos que compõem a maior parte da cannabis são o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), cujo mecanismo de ação se concentra no nosso Sistema Nervoso Central (SNC). O THC é um psicoativo com propriedades euforizantes, enquanto o CBD é um calmante com propriedades anticonvulsivantes. O THC ainda apresenta efeito analgésico e contra náuseas, ao mesmo tempo que o CBD também pode atuar como antipsicótico e anti-inflamatório.

A Cannabis é usada de maneira medicinal para tratamento comprovado de mais de 20 doenças, como epilepsia, ansiedade, depressão, doença de Parkinson, esclerose múltipla e cefaléia.

Porém, pesquisas também mostrara resultados positivos da utilização do óleo por pacientes portadores de outras patologias, a exemplo do câncer, onde ele pode agir como um aliado contra os efeitos da quimioterapia, e do Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Um estudo realizado em 2019 por pesquisadores de Israel, mostrou que aproximadamente 80% dos pacientes com TEA que participaram da pesquisa, apresentaram melhoria em diversos sintomas. É importante ressaltar que o óleo da Cannabis reage de maneira singular de acordo com cada distúrbio ou problema de saúde apresentado, e que cabe ao profissional da área reconhecer a necessidade ou não da utilização do medicamento.

O Que Diz A Lei

No Brasil, uma das legislações mais conhecidas que trata do uso da Cannabis é a Lei de Drogas nº 11.343/2006, que proíbe o plantio, a colheita e a exploração, mas permite a manipulação e cultivo dessas substâncias para fins medicinais e científicos, desde que mediante licença prévia. A importação de produtos a base de Cannabis se iniciou em 2015 com a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 17/2015 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que é o órgão responsável pelo controle sanitário de produtos e serviços, e também da entrada de medicamentos no país. A RDC retira o canabidiol da lista de substâncias ilícitas e permite o seu uso de forma excepcional e controlada.

Em 2016, a agência reguladora autorizou a prescrição e a manipulação de medicamentos à base de Cannabis sativa, e no ano seguinte incluiu o fármaco como planta medicinal na lista de Denominações Comuns Brasileiras (DCB), que cuida do registro de remédios e medicações. Vale destacar que em 2020, com a RDC nº 335/2020, a Resolução de 2015 foi revogada. A decisão promoveu maior facilidade na importação dos produtos, uma vez que por meio dessa medida não se tornou mais necessária a apresentação de laudo médico e também foi ampliado o prazo de cadastro do usuário do medicamento para dois anos.

Já no ano de 2017, a ANVISA aprovou o primeiro registro de um medicamento à base de Cannabis sativa no país, o Mevatyl, que é indicado para tratamento da esclerose múltipla. Hoje, o Brasil possui mais de 20 medicamentos à base de Cannabis autorizados para fabricação no país. Para conseguir a compra de algum deles em farmácias, o paciente deve estar munido apenas de prescrição médica comprovando a necessidade do produto. Já para importação, além da prescrição, é necessária também uma autorização da ANVISA, que tem um prazo de análise e resposta de até três dias.

UM POUCO DE HISTÓRIA

O preconceito em relação ao uso da Cannabis no Brasil tem raízes desde o período colonial com a chegada da planta por meio dos escravos africanos, em 1549, que foram forçados a virem ao país para serem comercializados. O cânhamo, como também é conhecida a popular maconha, se popularizou na época não só pela “onda boa” que ela provoca, mas principalmente pelo seu interessante potencial terapêutico.

A coroa portuguesa chegou inclusive a incentivar o seu comércio entre os mais ricos, que usavam-na como um calmante natural e, até mesmo, para tratamento contra asma. Contraditoriamente, apesar de cada vez mais explorada, a planta trazida pelos escravos passou a ser demonizada quando associada a essa “classe social”, denominação usada no período, que era vista como desprezível pela grande maioria da elite portuguesa e mestiça.