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Rafael Coutinho Talocchi Mãe contra o pai

destrancada, e reconheci a silhueta que surgiu no batente.

— Aqui está a fujona — disse o homem que me puxou pelo que pareceu uma eternidade de volta para esse lugar.

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— É ela mesma. — falou a voz que me atormenta há tantos anos.

As coisas passaram a ser um borrão de imagens e sons, e tive a impressão de que os dois homens imundos continuaram trocando palavras, mas só consegui enxergar e ouvir com mais nitidez, ainda que tudo parecesse ocorrer de forma vagarosa demais, quando caí, de alguma forma, no chão do corredor de entrada.

Só então percebi que havia uma sensação estranha entre minhas pernas, algum líquido escorrendo por elas e uma dor que se assemelhava às que sentia durante meus incômodos mensais, só que mais intensa. Mas, naquele momento, só conseguia prestar atenção no dinheiro sendo passado de uma mão à outra e ouvir, ainda que parecesse distante, a voz mais repulsiva que conheço me mandando entrar.

Estava sendo puxada pela gola de meu vestido surrado enquanto tentava absorver o que estava acontecendo. No esforço que fiz para levantar, o sangue escorreu entre minhas coxas. Sabia o que isso significava, já tinha visto outras mulheres passarem por isso.

Meu filho não haveria de vingar. Chegou ao mundo como uma massa disforme de líquidos e materiais orgânicos. Morto. Rafael Coutinho Talocchi

Mãe contra o pai

Cândido levava meu filho para o que para mim significava a morte. Ele ia andando pelas ruas até onde eu não pudesse mais vê-lo, com meu filho no colo. Eu tinha consciência que não o veria mais, que ele iria embora para sempre e que nunca, jamais conseguiria esquecê-lo. Como deixei isso acontecer? Me perguntei. Então comecei a refletir sobre meu passado.

Não me lembrava de meus pais, lembrava apenas de sempre ter estado com minha tia Mônica. Por mais que não me lembrasse de nada, sabia que nem sempre havia sido daquela forma. Certa vez em uma tarde qualquer estava conversando com tia Mônica e o assunto se tornou o foco da conversa, ela me contou sobre meu passado antes de estar com ela. Contou que antes de estar com ela, eu morava com meus pais que eram de extrema pobreza. Quando nasci, eles não tinham condições de cuidar de mim e por isso a colocaram na roda dos enjeitados, que foi onde a tia Mônica acabou me adotando.

Desde pequena, sempre morei com a tia Mônica. Quando criança, costumava brincar com as outras crianças da região e tinha lembranças de que minha infância havia sido muito boa. O tempo passava e eu estava me tornando mais velha e agora começava a me interessar em ter namorados e encontrar alguém para me casar. Nunca cheguei a me envolver em algum relacionamento sério. Tive vários namorados, porém nenhum deles se intereressava muito por mim

e nem eu me interessava muito por eles também. Quando a noite caia me recolhia para as costuras. Passei anos repetindo este ciclo e já estava exausta. Certa vez, encontrei um homem chamado Cândido Neves que à primeira vista não era diferente dos outros, porém após conhecê-lo melhor comecei a me interessar por ele. Outro motivo pelo qual estava com mais disposição a me comprometer em um relacionamento com Cândido era que já estava cansada de ficar sozinha e nunca ter algo sério. Cândido era um homem razoavelmente bonito, mas não tinha quase nenhum dinheiro. Era muito pobre e trabalhava como caçador de escravos. Era um trabalho que exigia muito esforço físico e pouco recompensado. Mesmo assim acabei casando com Cândido.

Tia Mônica não gostava muito de Cândido, já que quem sempre tinha que bancar as contas da casa era ela. O tempo foi passando e eu acabei engravidando. Mantive segredo por muito tempo, porém certo dia a criança nasceu e não foi mais possível manter segredo. Com a notícia, minha tia ficou indignada e sabia que era impossível manter mais uma pessoa naquela casa onde ninguém tinha dinheiro. Com isso ela nos expulsou de casa e disse que só poderíamos voltar se colocássemos a criança na roda dos enjeitados. Eu não tinha capacidade de fazer isso, já que para mim seria como matar meu próprio filho já que nunca mais o veria. Mas não teve jeito, Tia Mônica estava certa. Nós não tínhamos condições de criar aquela criança. Então Cândido pegou meu filho e o levou em direção a roda dos enjeitados. Eu não me aguentei de dor e comecei a chorar incessavelmente, pensei que ia morrer de um ataque do coração. Foram horas de puro sofrimento e a demora de Cândido só piorava as coisas.

De repente, vi Cândido bem longe ainda retornando com nosso filho no colo. Não conseguia compreender tal situação, pois para mim estava claro que nunca mais veria meu filho. Fui tomada por uma alegria que jamais havia sentido. Não conseguia me acalmar de tanta ansiedade para ter meu filho de volta.

Quando Cândido chegou, perguntei-lhe como ele havia feito para não perder nosso filho e ele começou a me explicar.

Ele me contou que no caminho para a roda, encontrou uma escrava que havia fugido de seu senhor e estava tentando escapar. Ele não perdendo tempo partiu para a captura e pegou a escrava, contou também que a escrava estava grávida e que na captura acabou perdendo seu filho.

Com esta notícia, perdi minha alegria e fui tomada por um forte sentimento de culpa, era como se tivesse trocado meu filho pelo da negra e que por mais que a moça fosse apenas uma escrava, ela também era mãe e agora neste exato momento estava sentindo a mesma dor insuportável e eterna que eu havia sentido quando levaram meu filho.